O JOGO DO PAU, Origens e evolução

 

 

Nuno Curvello Russo

 

 

(Comunicação na Conferência Internacional “Os Portugueses e o Mundo” (1985), VI Volume: “Artes, Arqueologia e Etnografia”. Fundação Eng. António Almeida, Porto, 1989. 202 pp.)

 

 

I  -UM POUCO DE HISTÓRIA

 

O chamado JOGO DO PAU é uma técnica de luta em que a arma é um simples pau direito e liso, da altura aproximada de um homem e manejado adequadamente por cada um dos contendores que com ele procuram, por um lado, atingir o ou os adversários e por outro defender-se dos golpes por este ou estes desferidos. O JOGO DO PAU, nestes termos genéricos, foi praticado em todo o Mundo, conservando-se ainda hoje a prática desta técnica em vários países europeus, como, por exemplo, Portugal, França. Inglaterra (quarterstaff) e também na maioria dos países orientais, principalmente na índia, China, Japão (bo-jiutsu), Tailândia, Vietname e Afeganistão. Neste último, que ainda hoje conserva intactos costumes de combate medievais, qualquer turista que se aventure um pouco para o interior do país pode assistir a sangrentos combates com pau, tanto individuais como entre clãs.

No momento em que o Homem se conhece como homem a habitar este planeta, ele tomou consciência que tinha de lutar para sobreviver e a sua inteligência logo lhe fez compreender que, se aproveitasse certos materiais que o rodeavam como instrumentos de trabalho, a vida lhe seria muito facilitada. Foi aí que o pau, utensílio simples e fácil de adquirir, começou a ser utilizado para os fins a que se propunha. E porque o homem primitivo era um ser rude e guerreiro e mesmo que o não fosse, outros dos animais seus contemporâneos o eram, o homem atacava e defendia-se também utilizando o pau. Com a evolução dos tempos e porque infelizmente havia necessidade de lutar com o seu semelhante, o homem criou uma série de movimentos específicos, ataques e defesas, próprios para combater com o pau. A partir desses ataques e dessas defesas feitas com esse pau e o constante contacto com esse mesmo pau, irão desenvolver-se, conforme as condições geográficas, as diferentes raças e outros aspectos, a formação de diferentes maneiras de luta de pau características. Esta nova técnica de luta é, em todos os países, própria das gentes e da cultura campesinas, variando não só de terra para terra, como também consoante as medidas do pau que em comprimento nunca ultrapassa os dois metros.

Mas se há países. como por exemplo o Afeganistão e a índia, onde se utiliza para combate ou treino qualquer pau independentemente do tamanho ou da forma, outros há, como a Inglaterra, onde. como o nome indica -QUARTERSTAFF-, a sua arma específica é um pau robusto com cerca de dois metros de altura que se empunha e maneja com as duas mãos; e, tal como o Jogo do Pau Português, ele reveste a dupla forma de combate e desporto.

No entanto, as diferentes técnicas utilizadas para os diversos tamanhos de paus são muito semelhantes tanto nos países Orientais cuja fonte inspiradora foi a técnica indiana, como na maioria dos países Ocidentais, como por exemplo na Inglaterra e França. Os diferentes jogos de pau e o complexo belicoso em que eles se integram (nomeadamente na forma que eles apresentam seja em que país for, sobretudo nas zonas rurais), por eles próprios criado ou alimentado e que Ihes dá um tom característico, parece resultar de fundas tendências do homem em que a agressividade não se dissocia de um ludismo basilar, e que neles encontram um campo particularmente adequado para se expandirem. A grande diferença entre estes países do Ocidente e os do Oriente reside sobretudo na mentalidade com que praticam a sua técnica.

Contudo, em Portugal desenvolveu-se uma técnica muito rica, adaptada a um tipo de pau, «o varapau ou cajado», que não é, porém, apenas elemento específico de tal jogo ou luta, ele faz - e sobretudo fazia - parte da indumentária normal do homem do campo, associado essencialmente às suas deslocações a pé e também a cavalo como companheiro e apoio e, sobretudo, como arma elementar para se defender de eventuais agressões de gente e de animais.

Como arma de ataque ou de defesa, o pau é uma forma tão simples que a etnologia, em geral, não o inclui na categoria das «armas que se seguram com as mãos». No entanto, um bom jogador de pau não receia enfrentar qualquer adversário que use essas outras armas. Põe-se assim o problema de saber se o uso do pau como arma representa apenas um aspecto do uso do pau como implemento de carácter geral, ou se, pelo contrário, o uso do pau em geral representa a ampliação a outras funções daquilo que principalmente e basicamente era apenas uma arma.

No Norte de Portugal (sobretudo Minho), o pau era o companheiro dos moços rondadores, dos viandantes ao longo dos caminhos, dos pastores no cume das serras; o seu ofício era múltiplo: no caminho era uma ajuda, ora a subir as encostas ora a descê-Ias, descansando-se nele o peso do corpo; quando um regato cortava o caminho, saltava-se por cima dele apoiando-se no pau. O pastor no monte e o feirante na feira carregava nele o seu peso, aliviando assim deste as pernas; também o pastor tangia com ele o gado, e, quando era preciso, afugentava o lobo, tanto em defesa própria como na do gado que lhe estava confiado; e «só se largava da mão enquanto o jovem conversava com a sua namorada na lareira da casa desta; então o pau ficava à porta, para indicar aos outros que nada tinham que fazer ali». Além disso, nessas terras o varapau era a arma por excelência, com ele se resolviam os problemas diários que provinham sobretudo de rivalidades entre aldeias, de namoros, desvios de água de irrigação, etc.

O rapaz tinha-se já por moço quando arranhava o seu varapau e ia de ronda com os outros: era uma coisa assim como ser armado cavaleiro.

Quem em Portugal não ouviu falar das lutas com paus em feiras (não só no Norte como em todo o país), onde aldeias inteiras se defrontavam em combates sangrentos e até mortais?

Também as romarias e festas rematavam sempre com paulada entre moços de freguesias diferentes.

O varapau era sem dúvida uma arma eficaz. Bem jogado punha nas mãos do seu dono grandes vantagens na luta. Afirmam-no bem alguns casos que deixaram memória entre as gentes daquelas terras nortenhas. Eis aqui um sucesso já de fins do século passado que teve lugar numa feira da Galiza e que é narrado por um galego XANQUIN LORENZO FERNANDEZ, de Orense, num artigo enviado por ele para o jornal o “Comércio do Porto” em 1950, intitulado “O VARAPAU”.

Diz Fernandez

“passou-se a coisa na feira de Porqueiróz. feira de ano, em que se juntaram feirantes de toda a comarca e fora dela. Os das diferentes freguesias iam com o seu gado e com os seus frutos fazendo-se uma das melhores feiras da Galiza daquele tempo. Uma vez, ignora-se porquê, começou uma rixa entre os feirantes e dois Portugueses que, vizinhos moradores naquelas terras havia já em tempos, acudiram a Porqueiroz. A rixa assanhou-se e chegou. como sempre a hora dos paus. Um dos portugueses ao ver o perigo berrou ao seu companheiro:

-"oh irmão! junta costa com costa!!!» - Postos deste jeito, cada um com o seu varapau, defenderam-se os dois sozinhos dos que os atacavam. Durante muito tempo mantiveram-se firmes, a despeito dos muitos atacantes; pouco a pouco, foram-se desfazendo dos adversários; uns feridos e outros acobardados. O triunfo coube-lhes a eles, que sozinhos, «desfizeram a feira». Tal era a superioridade que Ihes dava a sua perícia em «Jogar o Pau»”. E. Fernandez continua: “no resto da Galiza, desconheço tal arma. E assim, parece-me evidente que se trata de um instrumento de origem portuguesa o facto do seu emprego preferente nas terras raianas, e não no resto da Galiza; o de este se encontrar pelo contrário, de uso muito corrente em Portugal; a nacionalidade dos seus mais famosos cultivadores.”

O jogo do pau fazia, pois, parte da vida do Português do Norte. Por toda a parte havia escolas onde se juntavam grupos de rapazes novos ávidos de aprender, em volta de velhos mestres e que se faziam pagar bem alto pelas suas lições. Os próprios pais enviavam os filhos a esses mestres para que aprendessem essa disciplina que fazia parte da sua educação, tal era a importância dada ao jogo do pau nessa época.

Era vulgar nas longas noites de Verão ver-se nas eiras grupos jovens exercitarem-se desportivamente no manejo da vara em treinos que muitas vezes se prolongavam quase até ao romper da aurora.

Mas estes tempos de lutas de pau nas feiras e romarias são águas passadas. Realmente, por volta dos anos 30, o jogo do pau no Norte foi atingido pela decadência. As razões desta quebra foram várias e estão intimamente ligadas entre si: depois de todas as lutas em feiras, a acção das autoridades policiais fez-se sentir, proibindo o uso do pau nos recintos de feira. Também a emigração para o estrangeiro e as migrações para as grandes cidades. feita geralmente pelos chefes de família que não conseguiam tirar o sustento da terra que cultivavam, originou um enorme desfalque nos que poderiam vir a ser futuros "puxadores» (nome pelo qual eram designados os jogadores nortenhos).

Por outro lado, a facilidade de aquisição de armas de fogo contribuiu também para a «desnecessidade» de jogar o pau, pois a justiça pessoal feita com a vara exigia um treino bastante moroso para realmente alguém poder confiar eficiência na sua arma.

Assim, por estas e por outras razões de menos peso, esta arte de combate no Norte de Portugal foi-se reduzindo deixando apenas a representá-Ia pequenas escolas onde pequenos grupos de antigos jogadores se treinavam apenas para jogos de exibição ou onde velhos mestres carolas preparavam um punhado de miúdos também para o mesmo fim de demonstração.

Entretanto, o jogo do pau sofreu, também, uma migração importante. Partindo do seu núcleo original que foi o Minho, repousando francamente em Trás-os-Montes, ele parte em grande velocidade, passa na capital, atravessa o Tejo e vai-se fixando na zona Sul, principalmente na Estremadura e Ribatejo.

Nesta viagem ele expandiu-se pelas mãos de vários mestres profissionais que percorriam o País fazendo estágios em várias localidades, sendo entre eles os mais famosos: mestres Calado Campos, pai e filho, mais conhecidos pelos «pretos», que ensinaram desde o Minho até Setúbal. Neste meio do jogo do pau foi também conhecido o profissionalíssimo mestre Joaquim Baú que sempre montado na sua mula percorria Portugal vivendo única e simplesmente dos donativos que recebia em troca das lições que dava.

Também os jornaleiros vindos do Minho e Trás-os-Montes fazer empreitadas no Sul do País foram grandemente responsáveis pela transmissão do jogo do pau para esta zona.

Desde os fins do século passado que o jogo do pau se alastrou a Lisboa, onde se veio a implantar.

Na cidade, sob condicionalismos muito diferentes dos da Província, o «espírito» do jogo do pau altera-se. Liberto que está dos imperativos de luta que o acompanhavam nas origens, em época e em região, vemo-lo agora virado para o aspecto desportivo.

Os primeiros ginásios onde foi aberta a prática desta nova modalidade foram o então Real Ginásio, hoje Ginásio Clube Português, o Ateneu Comercial de Lisboa e o Lisboa Ginásio Clube. Além destes centros existiam ainda os chamados «Quintais», que eram recintos ladeados por um muro fazendo-se a prática do jogo no pátio interior. Os quintais encontravam-se espalhados por toda a Lisboa e neles treinavam centenas de jogadores que recebiam lições do mestre ou do contramestre da escola (estilo) que escolhiam.

Estes famosos Quintais não eram, longe do que muita gente da nossa burguesia supunha, frequentados por desordeiros, nem por criaturas de espécie pouco recomendável. Homens de trabalho, na sua maioria provincianos de Trás-os-Montes, Minho e outras províncias chegadas ao Norte, tinham um gosto especial por este exercício que era praticado com admiração nas terras das suas naturalidades. Era sempre grande o entusiasmo destes homens em aprender porque apreciavam o ensino, e sabiam dar o devido valor ao sacrifício que faziam para o pagar, pois apenas 10 minutos de lição correspondiam naquela época ao salário diário de um operário.

É fácil de compreender que um homem que às vezes não ganhava mais do que quatrocentos réis por dia, a arrancar pedra numa pedreira, ou quinhentos ou seiscentos réis diários em qualquer outro mister extenuante, não ia pagar ao mestre por snobismo.

Mas também aqui em Lisboa o auge desta arte pouco durou devido a variadíssimos factores, tais como o desenvolvimento de novos desportos trazidos do estrangeiro e que na altura faziam moda. Por serem novidade, vieram cativar as gerações mais novas, deixando um vazio de uma geração e, se não fosse carinhosamente conservado nas mãos de carolas apaixonados, o jogo do pau (que hoje está de novo a reviver com grande entusiasmo numa homenagem àqueles tempos heróicos dos velhos puxadores) teria visto em perigo a sua existência, pois praticamente nada havia escrito sobre o assunto, sendo toda a técnica transmitida por via oral.

 

II - A TÉCNICA PROPRIAMENTE DITA

 

O jogo do pau que hoje se pratica em Portugal é a evolução do antigo jogo minhoto, tecnicamente muito menos rico e que se caracterizava sobretudo pelo manejo da vara pelo meio com as duas mãos afastadas, de forma semelhante à técnica que ainda hoje se utiliza em vários Países orientais.

A nossa técnica actual evoluiu no sentido do melhor aproveitamento possível do comprimento e, consequentemente, do alcance da vara, pelo que se passou a empunhá-Ia por uma das pontas, com uma só mão ou com as duas mãos quase juntas. Além disso, e também em consequência deste acréscimo no comprimento da vara, passou a técnica a basear-se na rotação desta, o que se traduz, não só numa maior rapidez e potência no ataque, como também nos permite uma maior maleabilidade e eficácia no combate contra vários adversários.

Criaram-se também defesas novas e adequadas para este tipo de trabalho. É de notar que esta evolução do jogo minhoto, que se operou em relativamente pouco tempo e que foi resultado ou de estudo propositado ou da necessidade de fazer face às diversas circunstâncias do combate real, não teve, durante esses anos de evolução, interferências de técnicas estrangeiras, mas sim, tudo se processou dentro do próprio País, o que vem provar a afirmação do mestre Frederico Hopffer, no seu livro «Duas palavras sobre o jogo do pau», quando diz que de entre todas as actividades físicas que se praticam em Portugal, é, decerto, a mais genuinamente portuguesa.

O jogo do pau actual divide-se em duas grandes escolas que por sua vez se subdividem em diferentes «estilos», conforme as várias regiões e o jeito próprio de cada um dos mestres ou jogadores.

Estas duas grandes escolas, que se situam em áreas geográficas diferentes, são chamadas a ESCOLA do NORTE e a ESCOLA de LISBOA.

A Escola do Norte tem a feição predominante do jogo de combate, mais duro e rude e com características acentuadamente rurais, a que dá o verdadeiro sentido do jogo do pau Português.

Tecnicamente caracteriza-se por um jogo, sobretudo às duas mãos, quase sempre aproveitando a rotação do pau tanto no ataque como na defesa (guardas em movimento). É um jogo a curta distância mas com uma espantosa maleabilidade pluridireccional, ideal, sobretudo no combate contra vários adversários. É o chamado jogo de feira ou varrimento.

Aqui todo o treino é orientado no sentido de proporcionar as diversas circunstâncias do combate real contra vários adversários.

Em Fafe, terra de grandes tradições de jogo do pau (basta recordar a tão temida «Justiça de Fafe», na qual o símbolo da execução da justiça é representado por um grande cacete), além de todo este manancial técnico, conservou-se ainda um tipo de jogo muito antigo (descendente directo do antigo jogo minhoto). Este tipo de jogo é usado apenas num combate de homem para homem, não surtindo qualquer efeito quando usado contra mais de um adversário.

Se bem que nesta técnica haja um desaproveitamento em espaço e potência das possibilidades de ataque com um modelo actual de pau, isto porque aqui ele é seguro ao meio com as duas mãos afastadas (desaproveitamento da distância) e os ataques são feitos directamente e não em rotação (desaproveitamento da potência), no que respeita às defesas, pelo contrário, porque também são feitas directamente e usando a força conjunta de bracos e corpo, permite uma maior rapidez e certeza na sua execução.

Por outro lado, esta técnica é francamente eficaz em combate, quando a distância é muito curta.

Nos tempos áureos do jogo nortenho, em que o jogo era «a matar», não havia de observar regras e todos os meios e golpes se usavam, constituindo a mestria somente uma garantia maior de vencer.

Por vezes, nesses combates «a matar», o pau era munido, numa das pontas, de uma lâmina ou choupa, recoberta de uma cápsula de metal que se arrancava quando a luta era iminente. Outras vezes, em vez desta lâmina usava-se uma pequena foice (a foice roçadora), que era um instrumento usado pelo homem do campo principalmente para cortar silvas e outras ervas daninhas, e que se encaixava no pau por meio do seu cabo que era oco, servindo também para estes fins bélicos.

Existia, no entanto, uma espécie de «código táctico", que os bons jogadores seguros de si, e de um modo geral, as pessoas bem formadas, não deixavam de cumprir, o que exprimia o próprio valor do jogo: não se atacava o inimigo que não levasse pau. Quintas Neves mostra o «Manilha» atirando o seu pau para o chão depois de com ele ter desarmado e desmoralizado totalmente três adversários que lhe haviam saltado ao caminho. E ouvimos a história de um grande jogador do Porto, o Carvalho, feirante de gado, que na feira do «26» em Angeja, perto de Aveiro, depois de se ter aguentado sozinho contra todos os que ali se encontravam coligados, tropeçou e caiu ao chão, tendo então o mais forte dos seus adversários saltado por cima dele, em sua defesa, intimando os demais a não tocarem no valente, sob pena de terem de se bater também com ele.

A chamada escola de Lisboa engloba não só a técnica do jogo do pau praticada na capital portuguesa como também aquela que é praticada no Ribatejo e no resto da Estremadura. Nesta zona Sul predominou, durante largos anos, o jogo desporto e o «assalto» de exibição. Ao contrário do jogo nortenho. em que o jogador se preparava sobretudo para enfrentar vários adversários, o jogo de Lisboa, de características desportivas, cultivou o chamado «contrajogo», que é aquele em que se opõem apenas dois adversários. Esta escola é uma modificação relativamente recente da ESCOLA DO NORTE, adaptada para o combate de homem para homem, e que atingiu o seu auge no início deste século, em Lisboa, com o grande mestre Frederico Hopffer que estudou e codificou a sua técnica. Diferencia-se do contrajogo da ESCOLA DO NORTE, principalmente por haver agora uma cooperação em percentagem igual do trabalho das pernas e da vara, ao passo que aquela é fundamentalmente baseada no trabalho da vara, estando o movimento das pernas inteiramente dependente desse mesmo trabalho. Além desta diferença fundamental, temos ainda a notar os ataques que são executados principalmente com uma só mão, facto que vem contribuir para um alcance ainda maior no comprimento destes; as defesas (mais vulgarmente chamadas cobertas) que são feitas directamente e não aproveitando o movimento de rotação de pau e também o uso dos «cortes» (pancadas destinadas a prejudicar activamente o efeito da outra pancada que não foi tomado com uma guarda), técnica revolucionária que faz parte da defesa avançada das escolas de Lisboa.

Na região do Ribatejo acontecia, porém, que, à semelhança do que se passava no Norte de Portugal, os homens iam também para a feira, bailes e certas festividades munidos do seu pau e não raro havia desacatos e lutas de pau. Mas essas lutas, conquanto densas de carga agressiva, diferem essencialmente das batalhas campais que eram vulgares nas regiões do Norte, as quais se relacionam estreitamente com as estruturas tradicionais dessa zona, os padrões da cultura local, os conceitos e a visão do mundo das gentes dali.

No que respeita ao instrumento fundamental do «jogo», o Pau ou Varapau, este não deve ser excessivamente pesado mas resistente, suficientemente flexível e macio (não deve transmitir a vibração das pancadas às mãos de quem o segura). O seu comprimento é 1 ,60 m, medida que nunca deve ser excedida, a fim de evitar que a vara toque no chão quando se volteia. O peso será aproximadamente 600 g. Quanto ao seu feitio, deve ser de tal forma que uma das extremidades seja levemente mais fina (aquela por onde se empunha o pau) do que a outra (aquela que bate).

As madeiras mais usadas são de marmeleiro, freixo, carvalho, castanho e lódão. Segundo informação do mestre Pedro Ferreira, antigamente, no Minho, naqueles tempos heróicos dos varredores de feiras onde todos os problemas se resolviam às pauladas, os velhos mestres aconselhavam a vara de salgueiro, quando se procurava ou esperava desordem, porque a sua resistência e peso permitiam o combate prolongado contra vários adversários. No entanto, as madeiras mais usadas são as de castanho e lódão (Celtis Australis, Lineu), sendo esta última incontestavelmente a preferida, a vara típica de todos os bons jogadores em todos os tempos, por reunir em si todas as qualidades que deve possuir um bom pau para o nosso tipo do jogo (resistência, flexibilidade, maciez e beleza natural).

Estes são, pois, os requisitos normalmente requeridos a um pau do jogo ou de combate. Contudo, aconselha-se para treino o uso dos paus pesados e defeituosos, para obrigar o praticante a um trabalho mais intenso, de modo a permitir adquirir mais facilmente uma maior maleabilidade no seu trabalho.

A partir de um certo estado de adiantamento, é normal que um jogador escolha a vara a que melhor se adapte, pelo seu feitio, qualidade, peso e mesmo altura. Quanto ao «local» de jogo, não há esquisitices, qualquer um é bom (ginásios, campos de ténis, terra batida, areia da praia, etc.), sendo extremamente agradável treinar ao ar livre.

 

A UNIÃO DAS ESCOLAS

 

Actualmente, o mestre Ferreira (actual mestre do A.C.L.), conhecedor profundo da Escola do Norte, que muito novo começou a praticar, assim como da Escola de Lisboa, sobretudo no estilo dos mestres do A.C.L. e do estilo do mestre Hopffer, de que foi honroso sucessor, estudou, aperfeiçoou e codificou estas duas grandes escolas, do Norte, de Lisboa, formando um estilo próprio (a que os seus alunos puseram o nome de Escola Pedro Ferreira), onde se não distinguem já nem uma nem outra, estando ambas inseridas nesta nova grande escola.

Este Mestre, juntamente com um grupo de antigos mestres e praticantes do A. C. L., fundou, em Maio de 1977, a Associação Portuguesa de Jogo de Pau, a qual destaca nos seus Estatutos posteriormente remodelados:

Capítulo I - Denominação. Sede e Fins

Art.º 1.º-A Associação Portuguesa de Jogo do Pau com a sigla A.P.J.P., é um organismo de carácter desportivo e cultural, tem duração indeterminada e rege-se pelos presentes Estatutos, pelas normas regulamentares em conformidade com a entidade responsável pelo respectivo sector.

Art.º 3 - A A.P.J.P. tem por fim o estudo, a prática, a divulgação e a dignificação do jogo do pau como arte tradicional.

 

III - BENEFíCIOS

 

Sob o ponto de vista de actividade de carácter psicológico, o jogo do pau encerra em si extraordinárias possibilidades, e da sua prática de carácter técnico se pode, desde já, focar o desenvolvimento da coordenação motora; a alusão empírica dos antigos mestres de que «o olho vê, o pé anda e o pau bate» refere uma atitude conjunta do aproveitamento dos recursos anatómicos e fisiológicos; a existência dum objecto exterior, cujo manejo implica grande destreza, envolve um melhoramento de capacidade de percepção e, consequentemente, uma melhoria da própria consciência do corpo.

Os diferentes ritmos a que a prática sujeita, nos seus esquemas tradicionais de treino, são tema de situações e períodos de dispêndio de energia que se enquadram, quer no trabalho dito de «endurance», aeróbico, entre as 120/140 pulsações/minuto, e que se encontra nas execuções de aperfeiçoamento técnico, de intensidade moderada, quer no trabalho dito de resistência, anaeróbica, entre as 140/180 pulsações/minuto, e que se encontram nos períodos de maior intensidade, caso de combate ou do treino mais intenso; desta forma se adquire também controle respiratório e melhoria na capacidade de recuperação.

Da prática se desenvolve o equilíbrio dinâmico, o que se associa à correcção de hábitos posturais, bem como a relaxação, linhas mestras de eficácia de execução; há ainda que considerar que a execução, de um carácter rítmico, nos esquemas técnicos de base, corresponde a um melhoramento analítico dos movimentos, que, pela sua natural correcção, visto serem originados por respostas intuitivas às solicitações surgidas, virão a ser criadas durante o contrajogo ou qualquer outro tipo de jogo; como em outra qualquer técnica de combate, nota-se um desenvolvimento aturado da percepção psicocinética, elemento que, associado aos restantes, contribui para uma melhoria geral do esquema corporal.

No tocante ao desenvolvimento da potência, o trabalho incide essencialmente na execução em velocidade, se bem que, com determinados intuitos específicos, haja vantagens na utilização de cargas superiores para aperfeiçoamento técnico.

Note-se que, não sendo o jogo de pau uma técnica de oposição directa, não é óbice o peso, a força, a idade (caso corrente o jogador encontrar a sua melhor forma entre os 30 e 50 anos) ou o sexo: existem actualmente diversas raparigas a praticar , principalmente na escola do Poceirão (concelho de Palmela), do mestre Custódio Neves.

Não deve. no entanto, o jogo de pau deixar de estar inserido em esquemas de treino mais vastos, e, consequentemente, em simbiose com as leis de programação e metodologia de treino, que, sendo correctamente definidas, não vem, como se verifica, dissociá-Io das suas características fundamentais.

Sob o plano psicossociológico, o jogo de pau é de um extraordinário valor educativo, visto que é solicitado quer o esforço individual, quer em oposição a um ou mais adversários (treino, contrajogo, jogo de um para dois, de um para três, do meio, etc.) quer em esforço coordenado com o de outros, em jogos de grupo contra grupos, jogo de quadrado, da cruz. etc.. campos que reflectem os aspectos multifacetados da sociedade em que vivemos, sendo ao mesmo tempo uma escola de desenvolvimento das qualidades pessoais e sociais. O carácter extraordinário de modalidade que busca o constante aperfeiçoamento é corolário daquilo que o jogo de pau representa como ARTE TRADICIONAL PORTUGUESA, que, na sua pureza, traduz uma maior integração na civilização nacional, bem como a aceitação e manutenção de uma legítima herança.

É, pois, necessário não deixar morrer esta arte, este desporto tipicamente nacional. A todos os bons portugueses se lança este alerta, muito especialmente àqueles que gostam de exercício físico em geral e também a todos aqueles que têm a cargo a difusão do desporto no nosso país.

O apoio tão necessário como merecido às escolas já existentes, a criação de novas escolas a nível nacional, a maior difusão da modalidade nas camadas jovens, a realização de encontros interescolas e regionais como também a criação bem orientada de um ambiente leal e desportivo pode ainda permitir e contribuir para que este jogo possa, sem perder o espírito bem português que o criou e o caracteriza, acompanhar a evolução dos tempos e ocupar na terra onde nasceu o lugar que bem merece.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

ANTÓNIO NUNES CAÇADOR, «Jogo do Pau (Esgrima Nacional)», Lisboa 1963.

ERNESTO VEIGA DE OLIVEIRA, «O Jogo do Pau em Portugal», no suplemento da Revista da Sociedade de Geografia de Lisboa, Geographica n.º 32- ano VIII- outubro 1972.

FREDERICO HOPFFER, «Duas Palavras sobre o Jogo do Pau», Lisboa 1924.

GUIA DE PORTUGAL-IV- Entre Douro e Minho, II Minho.

JOAQUIM ANTÓNIO FERREIRA (da Cidade de Guimarães), «A Arte do Jogo do Pau», Porto 1886.

J. LEITE DE VASCONCELOS, «Tentame de Sistematização», volume VI, Lisboa, Imprensa Nacional- Casa da Moeda- 1975.

MARCELLO CAETANO, «Ordalios Prova Testemunhal e Documental», em História do Direito Português (1140-1495), Verbo.

«O Pauladas», nº 00, n.º 1 e N.º 2/3, Boletins Informativos da A.P.J.P.

RUI SIMÕES, «Jogo do Pau», do Boletim Informativo 00 A.E.P./A.P.J.P.

XANQUIN LOURENZO FERNANDES. «O Varapau», em Cultura e Arte, página cultural de «O Comércio do Porto», ano VIII. n.º 8, 10 III 1959, pp. 5-6.

 

Agradecemos, especialmente, as preciosas informações fornecidas pela secção de pesquisa da Associação de Jogo do Pau de Lisboa, sem as quais não teria sido possível a compilação deste trabalho.

 

 


 

Nota:

 

O Mestre Pedro Ferreira, natural de Melgaço, nasceu a 26 de Março de 1915 e faleceu a 24 de Setembro de 1996.