◄UE

 

voltar

Capítulo III — Modernidade e condições de emergência da Experiência Patrimonial

 

1.                Introdução.

 

2.                Onde estamos; as temporalidades da relação;

2.1              A extensão dos presentes e o que daqui se vê;

 

 

3.                Experiência e Modernidade — da experiência indivisa à sua fragmentação;

3.1              Fixar o devir; as estratégias da estabilização;

3.2              A racionalização da experiência: Max Weber e o desencantamento do mundo;

 

 

4.                A estetização da Experiência;

4.1              A dimensão afectiva;

4.2              A insondável imagem emotiva;

4.3              Do espaço envolvente e vivido; caracterizações da experiência específica;

 

5.               Formas específicas de racionalização e estabilização — as funções técnica e jurídica;

5.1           A Formação da Experiência Patrimonial como uma forma de Estabilização;

                  

6.             A fundamentação positiva do campo do Património pelo Direito;

6.1           O que se passou em Portugal

6.2           O Direito positivo aplicado ao património;

6.2.1        Práticas de classificação;

 

7.             Modos de agenciamento e emergência das

                 instituições administradoras do património;

7.1           A Museologização e a exorbitação arquivista —

                Museus, museologia e museologização social

7.2           O Lugar do Arquivo;

7.3           A institucionalização da experiência patrimonial; a rede positiva;

7.4           Um caso paradigmático — o arquivo de filmes e os museus de cinema;

 

8.             A Constituição de um imaginário positivo;

8.1           A produção de um agente ideal - "a defesa do património" e a sua ideologia;

 

9.             Património e ecologia; novos signos e totalidades;

                 narrativas e manifestações totais/absolutas, arche e telos ao mesmo tempo.

 

10.           Conclusão

 

 

 

 

 

 

 

 

        

1.IntroduçãoErro! Marcador não definido.

 

         Villes et ensembles anciens devenus patrimoine historique à part entière, les centres et les quartiers historiques anciens livrent aujourd'hui une image privilégiée, synthetique et en quelque sorte agrandie, des difficultés et des contradictions auxquelles confrontent la mise en valeur du patrimoine bati en général, et en particulier sa réutilisation, autrement dit son intégration dans la vie contemporaine. La conservation muséale des villes anciennes, maintenant investie par l'industrie culturelle, n'a pas disparu pour autant.  

            "Le Patrimoine à l'âge de l'Industrie Culturelle", in Choay, F.             L'Allegorie du Patrimoine, ed. SEUIL, Paris 1992 p.173

 

 

No capítulo anterior ensaiámos a problematização possível da experiência patrimonial e concluímos na observação da fragilidade de constituição do campo assente em normas e definições de património. Observámos igualmente algumas caraterísticas que ajudam a caracterizar a experiência patrimonial pelas suas formas de produção de rendimento simbólico, por exemplo através de imaginários mais reificados, assim como nas suas homologias com o sagrado.

Neste capítulo tentamos analisar o percurso e o perfil das formas de experiência que, desde o século passado, caracterizaram o campo do património, as mutações sofridas, assim como os elementos base de suporte para as ideias essenciais que dinamizam a acção que hoje se reivindica "do património".  Observa-se,  neste campo, o objecto como central e grande mediador na lógica da patrimonialização, entendendo-se aqui por objecto, aquilo que se materializa como foco de atenção do sujeito, numa experiência que assim se constitui, tanto do lado da emissão como da recepção. Interessa observar é como chegamos a esta objectualização tão materializante/objectulizante na actualidade, e que se caracteriza por essa necessidade de encontrar um objecto material e concreto a mediar todas as transacções e formas de relação, inclusivamente aquelas que tradicionalmente passavam ainda pelo imaterial. O que acontece é que os próprios objectos investidos do cruzamento de sentidos dominantes no social do seu tempo, acabam por se tornar igualmente grandes mediadores e "cofres" para a generalidade de categorias e conceitos institucionais vigentes: "direito", "propriedade", "herança", "património", "história", etc. Interessa-nos investigar o processo de constituição da "solidez" reificante dalguns destes conceitos, se possível para lá dos quadros tradicionais das taxinomias adoptadas pela História. Mais que isto, entendido que o património e o campo que o compreende só podem ser investigados enquanto forma de uma experiência dos sujeitos na história, cabe-nos agora procurar as suas condições históricas de emergência. Se não a sua totalidade, pelo menos as condições determinantes da configuração experiêncial que hoje ele assume.

Começamos, assim, por descrever minimamente a situação e o que caracteriza a actualidade neste âmbito do património para podermos, depois, descortinar os percursos que nesta experiência vêm desembocar. O primeiro levantamento debruça-se sobre o universo integrado e indiviso (pela tutela de Deus e a mão da Igreja) que se vem depois a fragmentar  e, em particular, o modo como ocorrem as formas de fragmentação da experiência na Modernidade; os protagonistas principais dessa fragmentação e a herança que até hoje nos chega da racionalidade investida  como forma de equilíbrio do universo despolarizado, agora na falta do anterior eixo central (Deus) e ordenador da experiência. Max Weber é quem melhor nos mostra a emergência dessa racionalidade e os processos de desencantamento do mundo numa experiência que atira para as margens, quando não para o proibido, toda a acção que se faça nortear por outra que não a racionalidade oficialmente estabilizada pelo tecido institucional.

 

 

2.      Onde estamos — as temporalidades da relaçãoErro! Marcador não definido.;

 

Ao atravessar os circuitos de produção e consumo do património, o campo que o enquadra e lhe dá sentido, é interessante encontrar, tanto paradoxos como "ajustes" absolutamente correctos, no puzzle das vivências sociais deste conjunto de fenómenos. Por um lado, nunca o passado, a História e a generalidade dos tempos pretéritos (com mais-valia de antiguidade e distância temporal) foram tão evocados, procurados, produzidos e necessitados como hoje. Esta, a de hoje, é uma contemporaneidade do presente, que não só é incapaz de observar outros tempos, para a frente (futuro) ou para trás, a não ser do lugar que ocupa na unidimensionalidade do seu presente, como obriga todos os "outros tempos" a transportarem-se ao seu presente; é esta uma boa época para todos os hermeneutas que se ocupam especialmente da produção de emulações[i], o discurso instrumental que permite trazer os "outros tempos" ao presente. O que acontece é, de facto, uma expansão do presente que se extensifica numa temporalidade de fronteiras indescerníveis. Apesar de se manterem activas as categorias racionais do passado e do futuro, o local exacto onde estes se colocam é mais indescernível e o presente parece estar, tal como o universo, em expansão."E se todos os lugares se tornam teatros da memória, se tudo é teatralizado por uma gestão das memórias prospectivas, parece prodizir-se uma alteração das figuras da temporalidade: o que sucede acontece simultaneamente com o que sucedeu. O passado, o presente e o futuro podem combinar-se a partir do momento em que o tratamento tecnológico das memórias permite este produção de uma simulteneidade temporal."[ii]

 

 

2.1      A extensão dos presentes e o que daqui se vêErro! Marcador não definido.;

 

Tudo isto se ajusta com suspeita perfeição nesta sociedade em que tudo é passível de ser levado ao domicílio. O paradoxo surge quando ao reflectir sobre isto, sobre a matriz (o "schema" em Kant) que conforma todas as experiências (lugar de destaque à linguagem, práticas e protocolos sociais) e a todas oferece uma padronização e inteligibilidade orientada, se descobre que é pela omni-presença do presente, inclusivamente nos "outros tempos" agora produzidos que está a origem da sua necessidade, da sua procura nunca satisfeita; afinal, a estratégia básica da excitação da procura pelo discurso publicitário (ou pelo político) que a única coisa que vende são promessas, isto é, estabilizações do futuro.

Entre estas formas de cristalização das práticas, como por exemplo o "schema" kantiano, que padroniza a experiência e lhe dá sentido, aquilo que também se pode chamar uma matriz de percepção do real. Esta tem na sua morfologia de constituição uma seda, parte do casulo protector que o indivíduo constitui desde a infância no processo de filtragem das relações ameaçadoras com o mundo exterior. A sua autonomia é inerante à sua capacidade de expandir o alcance da experiência mediada — "estar familiarizado com propriedades de objectos e eventos fora dos cenários imediatos do envolvimento sensorial"[iii]. É isto que em grande parte justifica os investimentos sociais e do Estado nos patrimónios estabilizados. É a força estabilizante da memória que aqui é investida de um amplo leque de funções. "(...) o passado introduz uma faixa larga de prática autenticada no futuro. O Tempo não é vazio, e um modo de ser consistente relaciona o futuro com o passado. Para mais, a tradição cria um sentido de firmeza das coisas que mistura tipicamente elementos cognitivos e morais. O mundo é como é porque é como deve ser."[iv]

Esta força estabilizante da memória só o é porque auxiliada pela generalidade das instâncias que a operam, pela sua força institucional, criando formas de evidência da  necessidade memorial.

 

Parece difícil aqui observar a genealogia da totalidade da multidão de instâncias que empreende esse trabalho de reconstituição e, por vezes, apropriação da memória colectiva. Mas podemos encontrar traços comuns na sua evolução e caracterização categorial no seu agenciamento social; podemos encontrar homologias estruturais no modo como o campo investe os objectos da sua força simbólica e agenciadora; podemos privilegiar as instâncias que mais se envolveram neste lógica da patrimonialização. A caracterização desta lógica de campo passa pela propriedade, no seu sentido total de "posse", como pela relação de proximidade e envolvimento do objecto possuído na vida do sujeito.

Temos então que prestar atenção às formas de modalização do património, em particular observando as formas de organização institucional da experiência durante a Modernidade, e o que hoje sobrevive em contacto com modos mais contemporâneos de experiência .

 

 

 

 

 

3.      Experiência e Modernidade — da experiência indivisa à sua      fragmentaçãoErro! Marcador não definido.;

 

O entendimento da experiência na Modernidade passa pela observação do modo como se opera a passagem, de uma ordem tradicional e globalizante da experiência indivisa,  para uma ordem Moderna de experiência fragmentada.

A sociedade tradicional é por natureza mágica e religiosa em toda a sua constituição e morfologia. Nesta, tudo o que acontece na natureza e ao homem é passível de entrar na herança da ordem comum e legitimado na sua totalidade. Na sociedade tradicional, o saber costumeiro inerente a toda a herança colectiva é o que legitima a totalidade dos campos da experiência, uma vez que estes não se distinguem uns dos outros na sua ordem. Deste saber tradicional decorrem as representações do mundo que dão coerência à totalidade da experiência. Saberes, práticas e instituições estão organizados em torno de uma esfera totalizante da experiência, a esfera do sagrado; as restantes esferas da experiência não têm autonomia nem visibilidade simbólica. É, assim, difícil hoje observarmos as visões tradicionais do mundo e as formas de sociabilidade que lhes corresponderam. A passagem ao modo Moderno de organização e autonomização das dimensões da experiência acontece no desvanecimento do eixo do sagrado em volta do qual tudo girava até aí. Depois do Cisma luterano e o início do movimento das luzes, um novo modelo de racionalidade desce à Terra para "iluminar" o sujeito agora mais incrédulo.

Com a generalização da prática da escrita e a introdução da imprensa no Ocidente, acentua-se a autonomização Moderna das diferentes esferas da experiência. O processo racional de secularização e desencantamento, desinveste a esfera do sagrado da ligação totalizante das diferentes esferas da experiência, assistindo-se à progressiva emergência de campos sociais, ao aparecimento de esferas de acção que pretendem passar a definir a sua própria legitimidade para imporem uma ordem de valores ao conjunto da sociedade e criarem formas de visibilidade independentementes da esfera religiosa tradicional. Esta segmentação moderna da experiência corresponde assim ao aparecimento dos campos  político, do direito, do saber, da medicina, e ao acantonamento do religioso apenas como outro campo.  Assim se instaura "uma nova instância de legitimação do discurso e do agir modernos, a instância do sujeito."[v] Com o processo de secularização, a esfera do sagrado deixa de servir de ligação totalizante das diferentes esferas da experiência, assistindo-se à progressiva emergência de campos sociais, ao aparecimento de esferas que pretendem passar a definir a sua própria legitimidade para imporem uma ordem de valores ao conjunto da sociedade e criarem formas de visibilidade independentemente da esfera religiosa tradicional. Esta segmentação moderna da experiência corresponde assim ao aparecimento dos campos religioso, do saber, do direito, do político, da medicina, como outras tantas esferas competentes para criarem, imporem e sancionarem ordens axiológicas relativamente autónomas, definindo espaços de interesses diferenciados e eventualmente divergentes. Mas a novidade passa por uma nova racionalidade redefinida a partir do mundo do sujeito; uma racionalidade agenciada pelo medium «escrita» que auxilia o sujeito enquanto instância autónoma de legitimação da acção, independentemente da esfera da modernidade em que a acção se situe.

Na pré-modernidade, a oralidade dominante não distingue a coisa-em-si da coisa designada pelo discurso enunciado. Neste contexto, a fala é por si só mágica, no poder imanente que tem de fazer emergir as coisas através do discurso na (re)presentação total. A sociedade moderna, racional e científica, não é menos crente na magia e religião. O legei que a anima é que é morfologicamente diferente, particularmente nos seus fundamentos, apesar dos párocos da nova crença se não distinguirem muito dos da religião tradicional na forma como exibem o seu saber pericial hoje, ontem o privilégio da relação com Deus. Mas a descolagem que, na modernidade o discurso faz do representado leva a uma especialização dos diferentes domínios da experiência em vários campos, cada um com a sua ordem de legitimação própria e formas de imposição do saber. O saber moldado pela ciência institucionalizada autonomiza-se pela mão do técnico e do perito que constituiram uma legitimidade exclusiva da palavra sobre o real. Uma legitimidade que, com os media e o imaginário democratizante, se estende à opinião pública, num processo doxológico que se complexifica no momento em que se perde a noção da identidade do sujeito falante, quando não se encontram respostas à questão — quem diz isso?[vi]

Neste contexto, e deslizando até aos dias de hoje, esta é de facto uma contemporaneidade paradoxalmente doxológica (sob o império da doxa) em que a palavra de ordem é "conformar" não importa a quê, porque esse quê está automaticamente legitimado, ontologizado,  pelo senso comum, expressão sinónima de "opinião pública", "maioria" e outras que possam aparecer.[vii] Quer pelo modo como operam a generalidade das instâncias de mediação, quer pela criação da comunidade de sentidos que se organizam, é um processo de estabilização e desfragmentação que daqui resulta.

 

O modo como estes "mecanismos" de estabilização da narrativa temporal se fazem operar da Modernidade até hoje, pode ser observado na junção de alguns conceitos heurísticos que os destacam. Estes podem encontrar-se pouco definidos na área da Análise Institucional, mas encontramos referências aceitáveis, por exemplo, em Anthony Giddens:

1- a reflexividade institucional, enquanto utilização organizada do conhecimento acerca das circunstâncias da vida social funcionando como elemento constituinte implicado na sua organização e transformação;

2- a desqualificação da vida quotidiana enquanto processo através do qual as competências e saberes locais são expropriados pelos sistemas abstractos e reorganizados à luz do saber técnico, desqualificação que é acompanhada de processos complementares de reapropriação e que assumem papel preponderante as condições que legitimam a emergência de todos os dispositivos distribuidores de

3- Segurança ontológica, como sentido de continuidade e ordem nos eventos, incluindo aqueles que não estão directamente presentes no ambiente perceptivo do indivíduo.[viii]

Entende-se melhor esta questão, mais à frente, quando se abordam os processos de racionalização da experiência moderna, explicados por Weber. Mas a fragmentação da experiência, que vai da ciência institucionalizada ao quotidiano do senso comum, é de tal modo abrangente, no espaço e no tempo, que nos envolve numa vivência estatuída e espurgada de questionamento. Parece ser um devir pré-algoritmado pela razão securizante, mas ao mesmo tempo desencantante. As formas de pensamento mítico fragilizam-se perante esta força, mas ao mesmo tempo, transferem-se para campos ainda marginais e que as possam admitir. A forma simbólica e o pensamento mítico são considerados, na época moderna, dispositivos de obscurantismo e dominação, entraves ao conhecimento positivo da indagação racional. De algum modo, "despojado de quadros explicativos susceptíveis de organizar coerentemente o desenrolar dos acontecimentos no mundo, o discurso dos media surge como a nova modalidade organizadora da experiência do aleatório. Fazem-no de modo especular, reflectindo e integrando num todo os fragmentos dispersos com que é tecida a trama do presente. A esta prosa do presente confia o homem moderno a função remitificadora da experiência, assegurando a constituição imprescindível de uma perspectiva unitária securizante perante a desintegração da identidade colectiva e de uma ordem identitátia que lhe devolva uma imagem coerente do destino."[ix]

 

 

 

3.1    Fixar o deviras estratégias de estabilizaçãoErro! Marcador não definido.;

 

Se observarmos algum nexo tradicionalmente causal na História que faz hoje emergir o Património e a activação do seu papel na sociedade contemporânea, notamos como uma das principais relações de preponderância o facto de, com a Modernidade e depois a industrialização, a dinamização das temporalidades sociais se ter acelerado consideravelmente. Terá acontecido um lento processo de irreversibilização do Tempo. De um Tempo cíclico e mais ou menos estável, ter-se-á passado à vivência de um Tempo irreversível e irrecuperável. Em termos relativos, basta que recuemos aos tempos anteriores ao nascimento do Dr. James Watt para verificarmos que era comum, aí, um individuo nascer, viver e morrer sem que os ambientes circundantes  (o ambiente social, humano, natural, etc) sofressem qualquer alteração. Com alguma rapidez, particularmente nos países com soberania da razão industrial, é precisamente essa razão da produção-consumo-rendimento acelerados que pode ser considerada "pivot" no universo das motivações e energização da conservação de certos objectos rapidamente desprovidos do seu papel produtivo. Emerge então aquilo que, em termos mais abstractos, é apenas uma expansão de uma atitude de fixação, "estatificação", atitude conservadora na preponderância do que se pode tornar estático num ambiente de dinâmica super-acelerada. Várias perspectivas deram rosto a esta atitude/comportamento; da História que lhe destaca precisamente as diversas modalidades de vivência do Tempo e das temporalidades nos diversos espaços de enraizamento; da Psicanálise que lhe destaca principalmente as necessidades mais ou menos conscientes de revivescência (memória) da infância e adolescência ; da Psicologia que lhe pode encontrar, com bastante nexo, a satisfação e complementaridade de uma série de necessidades de segurança relativamente ao ambiente envolvente e às expectativas quanto ao futuro; a Antropologia e a Sociologia que lhe destacam as necessidades de identidade, identificação, e hoje, o esbatimento que o tratamento espectacular do quotidiano investe na apropriação social/institucional do Tempo[x]; o Direito que, numa perspectiva ético-causídica, a partir daqui constrói o quadro que permite a defesa da soberania e o "sistema operativo" interno de um determinado território, etc.

 

Immanuel Kant definia bem o espaço e o tempo como intuições puras da sensibilidade que depois se fundiriam no conhecimento perceptivo ou empírico, síntese dessas formas a priori da sensibilidade com a matéria (as impressões sensíveis, que uns séculos mais tarde viriam a adquirir o apelido de substância/substancialidade). O que Kant dificilmente poderia prever (também não era com isso que se preocupava) era que à tridimensionalidade do espaço da altura, se viesse a juntar também, uns séculos depois, a tridimensionalidade do tempo que, no sec. XVIII, tinha ainda apenas uma dimensão.

É com atenção que devemos observar, também, esta tridimensionalidade do tempo que nas últimas duas décadas as insdústrias culturais conseguiram engendrar, por exemplo, em volta de produtos culturais como o(s) património(s).[xi]

 

 

 

 

 

3.2    A racionalização da experiência: Max Weber e o desencantamento do mundoErro! Marcador não definido.;

 

Essencial para se perceber a genealogia desta cultura patrimonial, é o modo como a generalidade das actividades e experiências na modernidade vieram progressivamente a sofrer o processo de racionalização em que ainda hoje vivemos. Alguns autores se destacaram nesta demonstração, entre os quais Max Weber,(particularmente em Economia e Sociedade, e A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo), Vilfredo Pareto (no Tratado de Sociologia Geral), e Georg Simmel (A Filosofia do Dinheiro e A Tragédia da Cultura). São ainda de referir Karl Marx, em todos os escritos reveladores dos processos de alienação e reificação dos processos produtivos e, mais recentemente, Michel Foucault, particularmente nO Nascimento da Clínica, na Arqueologia do Saber e As Palavras e as Coisas, em que este trabalha todo o processo de investimento disciplinar no social a partir da sua análise genealógica.

 

Vilfredo Pareto foi um dos primeiros cientistas sociais que conseguiu chegar a resultados mais interessantes no modo de observar os processos sociais de racionalização. Antes, já Thomas Hobbes havia delineado o quadro a explorar posteriormente. Para V.P., as ciências mais "mecânicas" e nomotéticas como a Economia, tenderiam a privilegiar uma racionalidade lógica primeira, circunscrita às acções dentro do seu campo. A sociologia teria vocação para tratar acções não lógicas, mas não necessariamente ilógicas: seriam antes diferentes tipos de racionalidade, acomodados a um quadro muito mais vasto de racionalização que a via anterior mais estrita. Pareto fica-se pela chamada de atenção a este quadro mais vasto e trabalhoso das racionalidades "menos lógicas".

Na Modernidade, a experiência é especialmente caracterizada pela ruptura com a tradição e a constituição de um espaço próprio de sociabilidade abrangendo mais que um campo do social, como por exemplo o da crítica e da opinião pública. É paradoxal o estatuto de que a modernidade investe o sujeito do seu tempo; ao mesmo tempo poderoso, pelo acesso aos instrumentos que a razão lhe disponibiliza, e impotente na infinitude do universo de que finalmente se apercebe. A modalidade moderna da razão teleológica, orientada para os fins precisos do perfil de homem que moldou, é diferente do logos tradicional assente na responsabilidade do costume e no respeito dos valores herdados; aqui era a comunidade directora da acção do homem que na modernidade se autonomiza num "eu" independente e "livre", com todas as consequências que se conhecem. Foi a todo este processo de racionalidade causalmente entretecida e imposta no Ocidente a partir do séc. XVII,  que Max Weber designou como um processo de "desencantamento do mundo" (Entzauberung) Erro! A origem da referência não foi encontrada. (...) [xii].

A razão moderna aparece como solvente de todas as visões míticas e mágicas da realidade, um verdadeiro "caça-fantasmas" clarificador do espírito que abre caminho aos iluminados. Estes aparecem quando é possível pensar-se já o progresso e uma linha histórica objectivável no futuro, em vez do eterno retorno tradicional. Aqui se cruzam, igualmente, duas perspectivas opostas, embora assentes no mesmo suporte: uma[xiii] que observa o devir histórico a partir da noção de projecto, na esperança da consecução futura dos ideiais do presente, e outra[xiv] observando no tempo uma regressão irremediável desde a plenitude das origens. Exemplos concretos destas perspectivas foram  ora os projectos futuristas e progressistas do início do século, ora os projectos românticos e restauracionistas do final do século passado, estes que, em termos de "enquadramento ideológico", são os que se encontram mais próximos da morfologia que constitui a actual "defesa do património".

Se, desde o séc. XVII até ao início deste século assistimos a uma configuração ondular do predumínio destas tendências, a partir da segunda grande guerra, tem-se vindo a observar a coexistência destas duas perspectivas articulando-se numa experiência ambivalente, ao mesmo tempo finalista, teleológica, progressista, e restauracionaista, arquetípica.[xv]

Na sociologia de Weber, o conceito de racionalização adquire diversas colorações semânticas, consoante este observa o suporte histórico ou o económico no raciocínio que leva a efeito. Para Weber, a racionalização envolve entre outras coisas, a separação dos trabalhadores mentais e manuais, uns dos outros e, ambos dos meios de produção. Esta separação — uma entre as muitas fragmentações — permitia o cálculo racional das actividades envolvendo diversos tipos de capital, aumentava a racionalidade administrativa criando condições optimizadas para o exercício da disciplina. Esta racionalidade envolvia um processo de subordinação de todas as áreas da vida a um certo tratamento e gestão científicos. Aqui se encontra a origem, com o apoio da fragmentação analítica, do domínio dos especialistas da ciência sobre as autoridades tradicionais em praticamente todos os campos de acção. Os modelos burocráticos, na sua hiper-organização das relações sociais e domínio do pessoal administrativo representante do Estado no controlo dos indivíduos, foram bem descritos por Weber. Em termos formais, este autor estabelecia dois tipos de racionalidade observáveis pelas ciências sociais:  uma racionalidade teleológica e uma racionalidade axiológica. A primeira apresentaria uma morfologia mais estrita num sentido rigorosamente lógico e suportada, como o nome indica, pela sua sujeição aos fins e objectivos da acção; a racionalidade axiológica descreveria a acção que contorna o esquema meios-fins sem, no entanto, cair na irracionalidade, sendo por isso possível encontrar-lhe uma racionalidade específica dentro de um quadro mais alargado e suportado pelas crenças e valores sustentados àpriori pelo actor social.

A racionalização investida na generalidade dos campos do social empurrava a sociedade, no seu todo, para um processo de desencantamento, desmitificação e desinvestimento mágico do mundo. Neste, a generalidade das acções estavam a ser reduzidas ao plano do cálculo prozaico, a caminho de um ponto radical que pode ser ilustrado pela máxima leibniziana que apontava a consecução da sociedade ideal no momento em que a verdade pudesse ser achada por cálculo. Este era já o vector orientado para a rotina administrativa de um mundo dominado por organizações gigantes em que a divisão do trabalho especializado se realizava melhor na expressão "burocracia".

A total racionalização da sociedade levaria à constituição de uma "prisão" (gaiola de aço), em que o indivíduo é esmagado na sua personalidade e liberdades. Destruindo a vitalidade humana, a sociedade burocrática regida por regras minuciosas levaria à especialização excessivamente estreita da maior parte dos individuos trabalhadores. A orientação racional e pesada adentro destes valores, levaria as pessoas a preferirem a acomodação à segurança das rotinas e a menosprezarem o exercício criativo e a responsabilidade necessários à manutenção das liberdades básicas que sustentavam as ideologias do Ocidente, particularmente depois da Revolução Francesa.

Todos estes aspectos da racionalização social viriam a produzir uma secularização em que a generalidade dos valores absolutos, sejam eles os da religião ou os das leis da natureza, descambam frente ao relativismo gerado pela sociedade moderna que apadrinha todas as éticas com base no cálculo e enfatiza toda a racionalidade instrumental. Max Weber estava essencialmente interessado em escalpelizar o problema sociológico da relação entre o processo de racionalização e o capitalismo; partilhava ainda assim, com Simmel, a curiosidade pelas "pontas soltas" e todos os restos que a racionalidade não abarcava, e se poderiam cruzar numa metafísica da modernidade. Depois apareceram mais "curiosos", tanto na sociologia como noutros campos.[xvi]

Para Weber, este racionalismo total desemboca no irracionalismo porque se perde o vector de ancoragem e direcção que oferece qualquer transcendentalismo ou ideologia universal. A individualização e fragmentação da experiência, trazidas pela realidade administrada burocraticamente na busca utópica de um objectivo universal para o interesse humano, não tem fim certo.[xvii]

Esta individualização e fragmentação da experiência em campos autónomos empurrou, na Modernidade, a maior parte da experiência inabordável, difícil de racionalizar, para cima do sujeito e da percepção. Aqui, passamos de um sentir (afectivo), para outro vizinho, pelo menos no corpo, mas que se não devem confundir na forma como o corpo do sujeito se ajeita para sentir. O facto de Aisthesis ser, em grego, a "tese da sensação", dos sentidos, ou a sensibilidade, ou ainda a defesa do sentir ­— a etimologia da Estética enquanto acto de sentir, receber as sensações dos objectos/sujeitos que nos rodeiam — não deve confundir-se com a institucionalização recente do campo estético, particularmente a partir da autonomização da disciplina na modernidade.

A Aesthetica de Alexander Baumgarten, publicada em 1750, argumentava pela "emancipação da percepção dos sentidos". Até aí, a percepção havia sido olhada apenas como um estado da transição na aquisição de conhecimento, um meio mais de chegar às ideias. Carl Dalhaus diz-nos que Baumgarten viria a mostrar que a percepção não é apenas uma fase preliminar, inicial e sombria do processo do conhecimento, mas uma espécie de conhecimento próprio... Então, uma vez que a percepção adquiria um carácter de conhecimento e uma capacidade de existir por si só, existiria em qualquer percepção que atingisse a sua completude, preenchesse a totalidade das suas possibilidades, uma multiplicidade que coalesce, uma variedade de percepções que se enformam a si próprias num todo. Ao que parece, e Dalhaus confirma-o[xviii], a noção de um todo é das poucas a única que sobreviveu intacta à evolução e transformação da estética na sua passagem de uma teoria da percepção a uma metafísica e, depois, a uma psicologia. "Baumgartem atribuiu uma perfeição própria, uma perfeição cognitionis sensitivae(...) Importava mostrar que a percepção não constitui um simples estádio preliminar, um começo obscuro e baço do conhecimento, mas sim um conhecimento."[xix]

Suporte desta película da percepção, no sentido Lyotardiano (Économie Libidinale), é a dimensão afectiva e a relação libidinal que a sustenta, também no sentido de observar o investimento do desejo feito nos objectos — a dimensão do que é mais ou menos "querido" e desejado.  O objecto ou obra que na sua produção envolvem um investimento de trabalho e também de vontade — da parte do produtor, vontade de reprodução/representação do seu ser e creatura — capacidade de criar, este objecto envolve igual e essencialmente um investimento da parte de quem o recebe. "A estética no sentido restrito é de origem metafísica recente: ela data de Kant e repousa sobre a "sensação" do sujeito que experimenta o prazer puro e desinteressado do jogo das suas faculdades. Ela não tem sentido senão como "prazer de reflexão" subjectiva. Esta estética acha-se duplamente posta em questão no seu princípio pelo pensamento heideggeriano da arte. Este pensamento recentra a reflexão sobre a própria obra, às custas do subjectivismo, é verdade, mas também à custa do "prazer" que, seja qual for o seu sentido, deveria ser reconhecido como tal, e contudo não o é. Fica assim abalado, ao mesmo tempo, o primado da fruição intelectual do sujeito-espectador soberano, e o primado do artista, do "criador" e seus estados de criatividade a que o subjectivismo atribui a origem absoluta da arte".[xx]

Uma das dimensões de construção e valorização do objecto que tratamos passa, na continuidade do curso da História e das suas narrativas mais ou menos lineares — como se observou no capítulo anterior — por uma dimensão adjacente e mais específica tratando dos juízos acerca do belo investido nos objectos produzidos pelo homem. Esta dimensão é importante; os modos de investimento do logos da Aisthesis na experiência, na sua produção e conversão em obra de valor referenciado; a especificidade desse logos/discurso por contraposição a outras lógicas de localização e valoração da experiência noutras dimensões igualmente importantes. Mas o que aqui nos preocupa é a forma como esse modo restante de experiênciar o mundo fora do racional se estendeu às diversas esferas que não se mostraram completas dentro do universo do racional e foram observando o modo esteticizante, particularmente como forma de compensação da ultra-racionalidade moderna.

 

 

 

 

4.      A estetização da ExperiênciaErro! Marcador não definido.;

 

No amplo processo de racionalização da experiência social que se instalou no Ocidente nos últimos três séculos, observámos o modo como a razão de Estado, tendo por núcleo o campo jurídico, cobriu a generalidade dos espaços de acção dos indivíduos em sociedade. Os humanismos renascentistas[xxi] e, depois,  a radicalização da racionalidade Moderna assente em todo o género de fragmentações operacionalizáveis, vieram a produzir, por compensação, uma estetização da experiência em volta do sujeito e do seu experienciar. É claro que, inicialmente, a aisthesis tende para a dimensão perceptiva e do sentir do sujeito. O domínio da apreensão localizada no sensível e estabilizada pela aisthesis, privilegia a noção de intuição, de uma capacidade de visão suprema aliada ao privilégio da experiência intelectual acumulada. A sua delimitação disciplinar à Estética, na esfera da filosofia, acaba por ser o balizar dessa circunscrição da parte da experiência que escapa à razão mais instrumentalizável e operacionalizável[xxii]. Até certo ponto, o belo, o gosto, o prazer, a sensação, enfim, os domínios mais próximos do sujeito e de mais difícil tangibilidade, deveriam igualmente ser dominados de uma maneira ou de outra. A razão Moderna esforça-se com todos os meios por agarrar essa parte da experiência que lhe escapa; a sua mestria observa-se em Kant ao desenhar todo o contexto de enquadramento transcendental que pode incluir esse indominado, utilizando como operador o juízo reflexivo.[xxiii]

Com a emergência do romantismo, no século passado, e o processo já em fase adiantada de total secularização da actividade artística e criativa, outros valores de imanência se impunham para reactivar toda a axiologia de um campo relativamente novo, já lutando pela sua autonomia, como o era o da produção artística.[xxiv] A atmosfera romântica do séc. XIX desencadeou todo um processo de valoração da obra artística com reflexo no seu criador, que produzia um efeito de divinização mítica da origem — o criador — e depois do objecto — a obra. A estabilização desta atmosfera algo compensatória da rigidez racional, tenta manter a exterioridade do seu vortex estético relativamente à razão. Esta era a  demarcação territorial[xxv] para a hipótese de construção de um espaço para o re-encantamento Moderno, numa re-acção aos processos de desencantamento e reificação dominantes: "este desencantamento é — malum — uma perda; mas esta perda é — bonum através de malum — compensada pela formação de um orgão de um novo encantamento (Verzauberung), que se torna na reparação precária da perda do anterior: este é, por isso mesmo, o orgão de compensação especificamente moderno da arte estética."[xxvi]

Por outro lado, o alargamento do território estético não aconteceu por acaso, mas sim porque estavam maduras as condições que o propiciavam, em particular, a saúde da generalidade dos agentes que "negociavam", num mercado em expansão, todas as mais valias do objecto artístico. O circuito-fechado do experiênciar estético e o "engordar" das auras. Cada vez mais, transbordavam os efeitos muito fora dessa experiência até atingir o valor financeiro ou de troca; neste mercado, o "jogo" levava a tocar e valorizar-se a obra em todos os campos sensíveis ao valor simbólico a ela imanentes. Este era já um trabalho de mercado muito próximo do contemporâneo, em que o jogo do valor se exercia entre as sinergias que a excitação simbólica nos diversos campos levava a efeito. A diferença, relativamente ao que se passava no final do século passado é que hoje, o universo mediático e a profusão produtiva, alguma sofisticação e subida do investimento auxiliar nos jogos do mercado,  alteraram ligeiramente os modos de investimento simbólico nas obras, assim como os modos de formação do valor a que estas se sujeitam. O que acontece é, segundo Pierre Bourdieu, o fechamento do campo ou do universo em que os objectos podem produzir efeito."Le principe de l'efficacité des actes de consécration réside dans le champ lui-même et rien ne serait plus vain que de chercher l'origine du pouvoir "créateur" (...)L'ouvre d'art, comme les biens ou les services religieux (...) ne reçoit valeur que d'une croyance collective comme méconnaissance collective, collectivement produite et reproduite. (...)le travail de fabrication matérielle n'est rien sans le travail de production de la valeur de l'objet fabriqué;"[xxvii]

Se é credível que a obra-de-arte só existe enquanto tal perante o olhar do esteta que lhe investe ou credita valor artístico, é natural que a generalidade dos dispositivos de difusão do valor do belo e do artístico, já existentes no século passado, se tenham aprimorado e difundido universalmente até à contemporaneidade.

 

Em termos simples, a estetização da experiência acontece sempre que, no acto, se observa o predomínio da forma sobre a função. Isto foi o que veio a acontecer desde o sec. XIX, inicialmente apenas no centro da classe então dominante mas, com a entrada do novo século, os meios de difusão e a difusão-imposição dos valores dominantes, a sua extensão a toda a massa atingida pelas indústrias culturais e, mais recentemente, à própria escola massificada.

 

 

4.1    A dimensão afectivaErro! Marcador não definido.

 

Esta perspectiva trata um campo medianeiro em que se observam os modos de envolvimento dos sujeitos e os modos da sua sujeição neste envolvimento, seja ele operado a partir das instituições ou de um mercado de solicitações autónomo, e os modos como interagem e se condicionam.

 

Nesta dimensão, emerge uma faceta a que se impõe dar o máximo destaque: o modo como o indivíduo gere as suas relações afectivas com o património envolvente; entenda-se, o modo como o seu pathos é mais ou menos sensível ao contexto patrimonial envolvente e ao possível encantamento que este pode gerar.

Apesar de uma ortodoxia mais positivista poder querer, na territorialização das ciências, outorgar esta faceta às psicologias, não se torna possível, de preferência com o auxílio dessas mesmas psicologias, abrir mão do tratamento suficientemente detalhado desta faceta neste fenómeno. É que a determinação do modo como se constrói uma identidade, como se vive um espaço, como se trata um objecto, como enfim se constrói um imaginário, seja ele individual ou colectivo, contam com a presença permanente do pathos[xxviii] investido na relação; por isto, neste trabalho, sempre que ocorre a abordagem a um objecto específico ou a uma dimensão de um fenómeno e análise do tipo de relações envolvidas, é natural que ocorra, em simultâneo, alguma reflexão acerca das características e morfologia dessas relações, particularmente quando o nosso arquivo dispõe de dados referentes a experiências e observações concretas. "A consciência prática, junto com as rotinas diárias por ela reproduzidas, ajudam a pôr entre parenteses essas ansiedades, sobretudo por acusa da estabilidade social que elas implicam(...)Elas fornecem modos de orientação que, ao nível da prática, "respondem" às perguntas que poderiam ser formuladas acerca dos enquadramentos da existência. É de importância central para a análise que se segue verificar que os aspectos ancoradores de tais "respostas" são mais emocionais que simplesmente cognitivos."[xxix]

É difícil, neste trabalho, empreender um novo debate crítico que se proponha destilar os humores que separam o conhecimento da emoção, e que há séculos tem vindo a ser feito. No entanto, quase nos satisfaz o estar alerta a todos os processos de envolvimento que hoje invadem, de um modo quase retórico[xxx], todos os dispositivos comunicacionais que procuram prender o sujeito a uma determinada mensagem. Estes começaram por ser observados com enorme frequência na generalidade dos media[xxxi], e estendem-se hoje a todo o tecido institucional que de algum modo desenvolve estratégias de preensão dos sujeitos. E em todo o sujeito se conta uma parte mais racional e outra mais emotiva e rebelde a qualquer domínio. Nesta questão não parece possível haver extremos: um sujeito estritamente cartesiano e racional e outro rousseauano e movido por paixões e desejos, isto é, estritamente pela emoção. Também não parece possível traçarem-se médias estatísticas deste fenómenos; há, quando muito, "casos". É por esta via que continuamos, ilustrando o melhor possível a nossa reflexão com casos concretos sempre que esta se ache imprescindível.

 

 

 

4.2    A insondável imagem emotivaErro! Marcador não definido.;

 

Até do ponto de vista mais racional, faz sentido olhar a perturbação emocional com alguma razão; é que o espaço do simbólico e do imaginário trabalham energizados por uma propulsão emocional que se auto-alimenta ou extingue consoante a fertilidade das fontes (de energia). Rousseau esboçara já uma teoria para a gestão destes investimentos emocionais num sistema de educação pública cuja operacionalidade passava por ritos, comemorações e festas públicas, precisamente no domínio de um imaginário colectivo politicizado e cujos princípios legitimariam o poder justo do povo soberano e a formação do cidadão virtuoso.

Os pensadores sempre foram sensíveis aos objectos que, no contacto com o sujeito, provocam alguma perturbação ou ressonância inquietante. A imagem e o objecto artístico "imaginado" - que se reflete no espelho da imaginação - têm esse privilégio. "As imagens interferem nas palavras e nos gestos, não estão imediatamente articuladas em elementos de frases ou fragmentos de cenas. Surgem com os sentimentos indescritíveis, as manifestações emocionais, as sensasões múltiplas e equívocas, em uma ausência total de objectivação."[xxxii]

O que se passa de inquietante para quem reflete sobre a proliferação da imagem portadora e desencadeadora de emoção, é o facto de esta se ter tornado, no quotidiano, algo de incontrolável na recepção, ao mesmo tempo que se constituiu como instrumento privilegiado de acesso  (a qualquer audiência). Geralmente encarnando uma trama narrativa simples, o "pathos" emocional é distribuido quase em bruto e tem vindo a revelar-se um excelente instrumento de perturbação da experiência. Se uma série de certezas havia quanto à incomunicabilidade da experiência[xxxiii], estas ficam ainda mais certificadas com a inundação de "pronto-a-emocionar" distribuido pelos media com o privilégio da imagem. A experiência eventualmente descritível a partir de um quadro racional de suporte, passa imediatamente ao inefável no momento da reverberação emotiva em que o sujeito é "massajado" no seu corpo animal, fora dos limites da racionalidade possível.

Antes do recente milagre da imagem fácil e instantânea, este trabalho de excitação emocional passava pela linguagem e os seus artistas eram os poetas[xxxiv]. Se observarmos esta metáfora na contemporaneidade, temos que atentar na mediação maquinal e electrónica, e ainda na generalidade de automatismos de composição por que a generalidade dos "poetas" de hoje enveredam. Também a generalidade dos objectos patrimoniais se expõem embrulhados numa narrativa poética, adentro do que H-P Jeudy chama a hegemonia da metáfora poética que reina entre a imagem e a emoção[xxxv]; é todo o trabalho dos dispositivos envolventes e administrantes do património, que vão do texto legal ao marketing dos valores museológicos, passando por todos os outros modos de contrair a atenção do sujeito para o objecto guardado, exposto e consagrado.[xxxvi]

 

 

 

 

 

4.4    Do espaço envolvente e vivido — caracterizações da experiência específicaErro! Marcador não definido.;

 

De um pequeno trabalho de sondagem e inquérito por nós empreendido e dirigido aos habitantes do centro histórico de Évora - cidade de Évora intra-muralhas - é possível extraír alguma noção do que aqui acontece sobre o modo como o património é sentido e vivido. Os resultados deste estudo não pretendem ser demonstrativos da totalidade das reflexões acima esboçadas, particularmente no que concerne às solicitações e investimentos institucionais,  mas são suficientemente indicadores de tendências gerais que se têm vindo a esboçar por todo o país.

A vivência quotidiana com o património envolvente não parece despertar, na maioria dos habitantes, uma relação afectiva especial, do género da que o senso comum, eventualmente modelado pelo imaginário patrimonial pode esperar do "privilégio de se habitar um centro histórico" classificado como património mundial.  Parece existir, de facto, essa relação especial de privilégio, mas apenas da parte dos habitantes mais recentes e com formação acima da média, dos encontrados dentro da amostra. Estes são constituídos por habitantes recentes com capacidade de aquisição ou aluguer de habitações dentro das muralhas. A procura de habitações intra-muralhas que se registou, particularmente nos últimos quinze anos, associada à limitação de habitações disponíveis, estas quase na totalidade apenas por morte dos anteriores proprietários ou arrendatários, fez subir vertiginosamente  os preços dos imóveis no centro histórico. Este é, aliás, um fenómeno comum em toda a Europa, mas que só recentemente, a par da difusão massiva dos valores patrimoniais, provocou efeitos inflaccionários e de valorização directa de propriedades. Assim se percebe que a generalidade dos novos habitantes dos centros históricos, não só pertençam a um estrato social com rendimentos bastante acima da média como, na decisão de habitarem o centro histórico esteja já implícita uma expectativa de relação privilegiada com o património envolvente. A generalidade dos restantes habitantes são mais idosos ou herdeiros que, de algum modo, não sofreram ou sentiram tanto as solicitações desta valorização mais recente.

Assim, e sintetizando:

1- É possível ainda discernir um grande grupo de habitantes "naturais" do centro histórico para quem a naturalidade da convivência quotidiana com o património nada de especial evoca nas suas mentes para lá de alguma "consciência patrimonial" mais ou menos distante, despoletada pela difusão geral e mais recente destes valores e do próprio investimento da autarquia na difusão da mensagem sobre a valorização patrimonial.

2- Um segundo grupo, menos natural porque oriundo de outras áreas da cidade ou mesmo de outras urbes, privilegia, de facto, as suas relações com o património envolvente, das formas mais diversas, mas todas de algum modo centradas na consciência de uma simbolicidade do valor patrimonial e no privilégio da sua vivência quotidiana.  Um privilégio articulando o seu fundamento na lógica de uma experiência específica, que lhe investe sentido e valor; uma experiência que modela maneiras de sentir e orienta a sensibilidade para os objectos, algo que veremos mais adiante.

 

 

 

 

 


 

5. Formas específicas de racionalização e estabilização — as funções técnica e jurídicaErro! Marcador não definido.;

 

 

Uma das traves mestras da estabilização social necessária à capacidade de exercício do consenso sobre o valor e à sua circulação, constitui-se no campo jurídico. A lei, os seus agentes de produção, interpretação e aplicação, autonomizaram-se num campo que estrutura um núcleo social forte de legitimação e imposição da generalidade dos valores racionalizantes e burocráticos (no sentido Weberiano) acima referidos. A lei e o seu campo constituem o núcleo da rede estabilizadora e estabilizante da acção dos sujeitos em sociedade, a par dos outros sectores institucionalizados para o exercício da força legitimada, tal como as barras de ferro e aço estruturam o "cimento armado"; "...a referência a valores transubjectivos que pressupõem a existência de um consenso ético; o recurso a formas lapidares e a formas fixas, deixando pouco lugar às variações individuais.   Esta retórica da autonomia, da neutralidade e da universalidade, que pode ser o princípio de uma autonomia real dos pensamentos e das práticas, está longe de ser uma simples máscara ideológica. Ela é a própria expressão de todo o funcionamento do campo jurídico e, em especial, do trabalho de racionalização, no duplo sentido de Freud e de Weber, a que o sistema das normas jurídicas está continuamente sujeito, e isto desde há séculos."[xxxvii]

 

Numa perspectiva um pouco mais pragmática e sintética, J.B. de Miranda, na sua "Analítica da Actualidade", observa a introdução do discurso jurídico enquanto dispositivo de estabilização e agenciamento do real. O acesso à experiência passa pela modelização e até ficcionalização do mundo em discursos de autoridade e/ou consenso, de modo a colocar o mundo "plasticamente ao alcance do agir". Os procedimentos de agenciamento sobre o mundo seriam, essencialmente, escriturais e tecnológicos que se estabilizariam em formas rígidas e institucionalizadas:

"1) ao nível escritural — a cristalização da experiência em normas e regras explícitas e codificadas, reduzindo a constituição da experiência ao rigor do formalismo jurídico; e 2) ao nível da tecnologia — a produção das práticas e das condições de existência (tempo, espaço e sujeitos), inscrevendo-as em automatismos de repetição "eterna". "[xxxviii] "Toda a estabilização institucional com base em dispositivos de enquadramento das acções colectivas e individuais é feita através de processos de escrituralização fundamentais: 1) por um lado, a escrita constitucional que, funcionando como contrato fundador do instituído, legitima de cima para baixo todo o conjunto de normas, estatutos e códigos que a ele recorrem como matriz (daí a crescente juridicização do quadro moderno); e 2) por outro lado, a crescente modelização da acção instituída, através do recurso maciço à linguagem informática, à comunicação instrumental de massas, aos processos de simulação, etc. (ou seja, todo o orgware de controlo colectivo)."[xxxix]  Trata-se aqui, na normativização da experiência, de estabilizar o agir através da normativização da linguagem escrita, medium supremo de inscrição e registo com importante papel na reprodução das condições institucionais e de criação do sujeito moderno.

A constituição destes dispositivos sociais na modernidade veio trazer, sobre o suporte da racionalização geral, alguns automatismos estabilizantes e libertadores (teleologicamente) mas ao mesmo tempo constrangentes quanto à autonomia do agir do sujeito."A convergência que postulámos entre os procedimentos de estabilização (a técnica e o jurídico) é absolutamente necessária para os processos de objectivização e de institucionalização, pois a escrita é a verdadeira matriz da "restance" (Derrida) e do arquivo. Mas o mesmo ocorre com a síntese da subjectividade, desempenhando um importante papel na formação do sujeito."[xl]

Ao cruzar os eixos destes dois procedimentos de estabilização — o técnico e o jurídico — que hoje, pela omnipotência do técnico e a positivização do jurídico, se confundem, é possível observar diversas incongruências e desajustes. Estes são reveladores dos modos desarticulados de agenciamento e execução dos dois eixos, também no espaço do património, particularmente quando o aparelho jurídico se atrasa relativamente ao técnico; mais raramente, quando o técnico é condicionado pelo jurídico.[xli]

 

Por exemplo, esmiuçar o conceito primeiro de património na sua acepção jurídica, implica o estabelecimento de relações entre outros dois conceitos importantes; o de bem, enquanto unidade num conjunto de bens, e o de propriedade, enquanto relação de pertença e usofruto de uma pessoa com esses bens.  No âmbito legal, é em volta destes conceitos, e no sentido da sua universalidade que o legislador trabalha. Isto implica o entendimento da noção de "universalidade do Direito"; uma noção que permite dar unidade a um conjunto de bens heterogéneos e que deve ser considerado na sua globalidade. É natural que as primeiras preocupações com esta questão nos tenham chegado da parte dos romanos, que necessitavam de cuidar das suas heranças.

O património apresenta-se, assim, na sua versão mais securizada, como uma universalidade jurídica. A reunião de um conjunto de bens, seja de género idêntico ou de espécies diferentes, a serem tratados de modo uniforme como se se tratasse de um bem único à disposição da vontade do seu proprietário. A unidade que forma este conjunto de bens permite-lhe ser objecto de operações jurídicas como contratos, por exemplo, sem que para isso se torne necessário ter em consideração, separadamente, cada um dos seus elementos componentes. Esta unidade mantém-se, independentemente das variações de composição que o conjunto venha a sofrer, não podendo influir na sua existência autónoma; entende-se que o conjunto existe enquanto tal, sendo a sua composição afectada apenas em termos de valor económico.

Nos termos da filosofia do Direito e na constituição da sua dogmática, existem algumas interrogações sobre o fundamento na coesão deste conjunto: na explicação mais clássica,  a coesão é justificada pela sua ligação à própria personalidade do seu titular; uma explicação mais recente, mas nem por isso melhor aceite, encontra o fundamento para essa coesão no objectivo para o qual tende a gestão do património; uma explicação teleológica. Esta pode ser uma explicação que pode já abranger os bens de domínio público e os modos da sua gestão. A indivisibilidade de um conjunto de bens indexado a uma entidade abstracta como um objectivo encarnado por um conjunto de pessoas — outra entidade abstracta — torna-se muito mais operacionalizável em termos de manipulação legal. De qualquer modo, o património aparece sempre mais como um continente do que como um conteúdo, apesar de, quotidianamente, à sua evocação, ser normal acontecer sempre a qualquer sujeito a presença imediata à imaginação de uma qualquer parte do seu conteúdo. Daqui a relevância que atribuímos, neste trabalho, ao imaginário, tanto pessoal como social, e em particular quando este acaba por se estabilizar e positivizar, um dos papéis da institucionalização.

 

Mas, do ponto de vista estritamente material, o património só pode ser aqui concebido nesta relação de pertença que passa pelo medium jurídico, e que liga a pessoa ao seu património. A pessoa concreta tornada pessoa jurídica produz uma emanação menos concreta com base no pivot jurídico: a "pessoa nação" adquire um correspondente jurídico a que fica afecto um "património nacional" só explicado com base na unidade e prossecução dos seus objectivos. Ligadas à herança ou não, as espécies patrimoniais são menos uma propriedade e mais uma possessão que segue o detentor no presente. Há uma transversalidade nesta observação que estabelece as relações entre o individual e o familiar, o familiar e o nacional e, depois, entre o nacional e o internacional (UNESCO, por exemplo)[xlii].

Por outro lado, esta mediação através da pessoa jurídica, permitindo facilitar as decisões acerca da gestão, inventariação e atribuição de bens, obriga a processos de avaliação patrimonial que reduzem os bens concretos a valores económicos ou pecuniários. Só o conjunto de bens economicamente avaliáveis podem constituir o património do individuo. É que enquanto certos direitos e bens apresentam interesse apenas para o seu titular, todos os outros são igualmente procurados por todos e constituem base do comércio jurídico.

É preciso aqui observar que, de cada vez que se introduz um novo medium, introduz-se igualmente uma nova operação de conversão e, eventualmente, novos modos de convertibilidade. Assim, para uma decisão, é necessário que um operador jurídico produza unidade num conjunto de bens diversos e os atribua a uma pessoa; é necessário ainda que esse conjunto de bens seja avaliado por uma instância isenta, de modo a que se lhe possa ser atribuído um valor pecuniário ou de troca.

Fica assim perceptível que o modo como se administra a relação das pessoas com as coisas passa por, pelo menos, três conversões e seus modos diferentes de representação:

 

1- no processo jurídico de determinação da propriedade e capacidade de gestão dos bens, a conversão do real, situação concreta, em situação jurídica, através dos modos de encaixe e movimentação de bens e pessoas em figuras jurídicas operáveis pelo aparelho legal: - a lei e as coisas;

2- no processo de inventariação, a conversão das coisas/bens na linguagem da lista representativa do conjunto de bens: - as palavras e as coisas;

3- no processo de avaliação, a conversão desse conjunto de bens inventariado, em unidade pecuniária aferível pelo seu valor económico no contexto de um determinado presente: - o valor e as coisas.

 

Mas como é que se estrutura a experiência patrimonial dinamizada enquanto propriedade colectiva, bem público, enquanto forma de estabilização de contingências menos controláveis?

 

 

 

 

5.1     A Formação da Experiência Patrimonial como uma forma de EstabilizaçãoErro! Marcador não definido.;

 

A emergência do património e da força do seu significante como dispositivo de valorização dos objectos "etiquetados" acontece, mais manifestamente, no início do século passado, em aplicação quase exclusiva aos monumentos históricos e restante património edificado, mas só na passagem para o século XX se solidifica como noção mais vasta e ainda com potencial de expansão. A descrição das práticas e legislação sobre o património edificado, particularmente a partir dos anos 20 do século passado e, essencialmente em França, (na vanguarda quanto às questões de protecção patrimonial com origem no Estado) é razoavelmente bem feita por Françoise Choay em L'Allegorie du Patrimoine[xliii].

O que nos interessa observar, tanto nas descrições históricas como nas abordagens teóricas a esta questão é, essencialmente, o modo como a noção de património vai sofrendo cambiantes semânticas ligeiras a médio e curto prazo, mas que no tempo mais longo assumem topologias (semânticas) completamente diferentes. Interessa-nos igualmente o modo como o sentido é recebido, produzido e reproduzido nos diversos campos que o significante atravessa.

Na análise deste processo tem um papel pivot o trabalho de Alois Riegl — Der Moderne Denkmalkultus (O Culto Moderno dos Monumentos)[xliv] — em que este elabora uma axiologia do património com base essencialmente nas práticas jurídicas relacionadas com a edificação e restauro de edifícios históricos. Este era para Riegl um objectivo apenas prático — elaborar o esboço para uma lei da conservação dos monumentos de modo a salvaguardar o que ía desaparecendo e a aquietar as polémicas que agitavam as diferentes escolas de arte e restauro. Em termos sintéticos, na passagem do século, o valor patrimonial advinha essencialmente da sua monumentalidade, isto é, a reverência reclamada pela obra edificada ao longo da história, na sedimentação das diversas atenções[xlv] e sentidos a que o objecto monumental se sujeitou como centro de comemoração e identificação colectiva. Mas o autor chama a atenção para o facto do valor do monumento poder ser observado como flutuante, prático e actual, mais dependente do nosso Kunstwollen («querer artístico») que de uma necessidade de comemoração ou antiguidade, uma vez que  só a partir do presente é possível julgar o passado. Segundo Riegl, o restaurador deverá observar em cada caso se não existem outros valores comemorativos ou de contemporaneidade mais importantes que os valores simples de antiguidade — um juízo a fazer por entre este conflito de valores. Assim, a problemática axiológica do património jogava-se entre os valores de "antiguidade" e "monumentalidade" das obras, valores isotópicos, apenas com ligeiras diferenças de perspectiva exclusivamente histórica e histórico-social; e os valores de uso mais contemporâneos e ligados já à relatividade da valorização exclusivamente estética da obra ou exclusivamente funcional. Ainda assim, Riegl acentuava a causa do valor histórico, mesmo tomando de empréstimo a Marx um Kunstwollen "actual" que é suposto determinar as nossas escolhas no universo do passado contra  a existência de um qualquer valor de arte absoluto. Do seu ponto de vista, enquanto valor actual/actualizado, o valor relativo da arte pode entrar em tensão com o conceito clássico de monumento; mas os monumentos são diferentes uns dos outros e comemoram tempos diferentes da história. Tudo, afinal, dentro do espírito Moderno que caracteriza Riegl. Percebe-se então que toda a obra valorizada reúne, em diferentes percentagens, a totalidade destas diferentes categorias de valorização; mas também se percebe bem a preciosidade heurística deste trabalho de Riegl, ainda que localizado no tempo.

 

Interessa-nos agora o que acima se destacou e veio a acontecer com mais força neste século, e que foi a primazia dos valores estéticos e de uso investidos na generalidade dos objectos, algo a que não é estranho todo o desenvolvimento da racionalização do social e consequente instrumentalização dos investimentos e das acções (até as discursivas). É nesta lógica que se inscreve a generalidade dos modernos e contemporâneos agentes  de valorização e difusão do valor das obras, em que se podem agrupar todo o género de Arquivos, Museus, agentes privados (antiquários e galeristas) e institucionais que, na sua quase totalidade, se apresentam na "bolsa da valorização patrimonial" jogando a estratégia do retiro, preservação e exposição do objecto exclusivamente preparado para o seu protagonismo expositivo e valorativo adentro desta lógica.

Já neste século, a dinâmica extensional do campo do património levou-o a uma vasta cobertura de bens de todo o género, cruzando esferas e agregando valores de várias origens. Algo que veio fazer "inchar" o termo «património» e dotá-lo da polisemia que hoje se lhe conhece. Já observámos parte do que está na origem dessa dinâmica, e mais observaremos. Por agora, ficamo-nos pela fundamentação positiva do campo que traça as fronteiras da sua solidificação. É daqui que poderemos depois partir, mais à frente, para observar outros cruzamentos intersticiais do campo com outras esferas, com o auxílio dos media de difusão.

 

 

 

 

6.      A fundamentação positiva do campo do Património pelo DireitoErro! Marcador não definido.;

 

 

Observámos a estabilização jurídica que se opera na Modernidade, a par da fragmentação da experiência e da hiper-racionalização da generalidade dos procedimentos administrativos. A fundamentação positiva do campo do Património através do Direito acontece com base, e a partir do património histórico edificado em meados do século passado, em França. O cuidado primeiro centra-se nos monumentos históricos e socialmente relevantes dos franceses pós-revolução. Será interessante observar, em síntese, os trabalhos que levaram à produção da legislação francesa[xlvi] que se tornou referencial na Europa, por ser a primeira e, depois, em todo o mundo, devido à racionalidade dos seus procedimentos.

É um caminho laborioso que leva à promulgação, em 1887, da primeira lei sobre os monumentos históricos. Entre 1830, altura em que Guizot cria, por decreto, o cargo de inspector dos monumentos históricos, e 1887, acontece uma longa e heróica fase de experiência e reflexão neste domínio."tout le dispositif (centralisé) de protection repose alors sur la foi et le dévouement de quelques hommes qui assistent bénévolement l'inspecteur. Ils ne disposent ni d'instruments spécifiques ni de services spécialisés pour les aider à accomplir la mission dont ils se sont chargés.(...) L'inspecteur a pour mission de déterminer, autrement dit, désormais, de classer les édifices  ayant droit au statut de monument historique. Il est bientôt assisté, dans cette tâche et dans la répartition des crédits d'État alloués à l'entretien et la restauration des bâtiments classés, par la Commission des monuments historiques, créée par circulaire du 10 août 1837. Les membres bénévoles de cette Commission et du Comité de travaux historiques créé en 1830 devaient pendant des décennies accomplir avec passion, compétence et régularité un travail discriminatif, à la fois réflexif et pratique, dont ils furent les premiers véritables professionnels."[xlvii]  As vantagens do sistema incluiam os procedimentos de classificação investidos da autoridade do Estado, e a centralização sob a dependência do ministro do interior, que se torna um bom instrumento aferição e controlo.

As primeiras regras de selecção não obedecem a nenhum especial critério mais erudito, mas apenas aos imperativos pragmáticos e económicos de uma política de conservação e protecção. Em 1850, em França, o número de monumentos classificados ronda os 3000 e são, na sua maioria, edifícios religiosos, seguidos de longe pelos restos galaico-romanos e os edifícios civis. O sistema tem, no entanto alguns inconvenientes como, por exemplo, o trabalho  hercúleo do inspector e de toda a comissão. A centralização que permitia uma unidade de acção inacessível aos ingleses que se espartilhavam por ideologias e posições doutrinais, criava alguns problemas à pequena comissão de voluntariosos que não aceitava a colaboração de outras entidades e competências locais, como antiquários e sociedades de arqueologia. Por seu lado, as sociedades de protecção continuam a prosperar em Inglaterra e a envolver-se directamente nas tarefas de conservação com a ajuda de algum mecenato. Em França, o orçamento estatal é mais magro e não comporta qualquer mecenato.

A primeira lei é finalmente promulgada em 1887 e completamente regulamentada em 1889. É-lhe dada uma forma definitiva em 1913, que constitui ainda hoje o texto legislativo de referência  da lei sobre os monumentos históricos: "c'est la mise en place d'un appareil d'État centralisé, doté d'une puissante infrastructure administrative et technique, le Service des monuments historiques, et d'une grille de procédures juridiques adaptées à l'ensamble des cas prévisibles."[xlviii]

Mesmo em Estados, na altura menos centralizados que o francês, a legislação francesa foi modelo. Em Inglaterra, com um modelo mais fragmentário, a administração e conservação do património estabilizou-se com o Ancient monuments protection Act de 1882.

Para os franceses, a lei de 1913 trazia os inconvenientes do peso da máquina do Estado centralizado: a burocracia ; o progressivo apagamento do papel estimulante, activo e anti-conformista dos agentes voluntários que eram substituídos por funcionários. A Comissão dos monumentos fica apenas com um poder consultivo que boa parte das vezes não é sequer tido em conta. Observa-se igualmente um vazio doutrinal sobre o qual assenta o quadro administrativo, técnico e jurídico dos procedimentos. Para a generalidade das ocorrências, faz fé a definição de monumento histórico: "móvel ou imóvel cuja conservação apresenta, do ponto de vista histórico ou artístico, um interesse público". Este núcleo básico da lei não foi mexido até hoje, suportando uma noção não sujeita a análise nem a critérios de descriminação prática, o que, ainda segundo Choay, provocou uma carência que se viria a revelar responsável pelo atraso Francês neste domínio durante o século XX.

 

O problema que, inicialmente à Comissão e, depois, aos funcionários do Estado se colocava após a classificação, era o do restauro. *  (reenviar p/teoria do restauro)

 

 

 

 

6.1    O que se passou em PortugalErro! Marcador não definido.;

 

Relativamente à genealogia do Património em Portugal, cabe-nos aqui, de novo, fazer a síntese possível, neste espaço charneira, para melhor percebermos a totalidade institucional envolvida neste campo.[xlix] Sobre esta questão, e dentro de uma perspectiva histórica, existem inúmeros documentos e publicações no nosso país, mas todos limitados aos seus campos de abordagem específicos, quando não aos seus tempos — caso das abordagens exclusivamente historicistas.* (publicações)

 

A primeira noção de uma necessidade de observar a guarda dos "Monumentos antigos que havia, & se podião descobrir no Reyno, dos tempos em que nelle dominarão os Phenices, Gregos, Penos, Romanos, Godos, & Arabios" aparece no primeiro diploma que reveste uma vertente patrimonial de protecção, e que era o alvará de D.João V, de 20 de Agosto de 1721, passado a favor da Academia Real de História Portugueza, Eclesiástica & Secular. Para lá do alargamento do conjunto de bens a perservar[l], este documento proíbe a destruição de qualquer edifício "que mostre ser daquelles tempos, ainda que em parte esteja arruinado, & da mesma sorte as Estatuas, Marmores , & Cippos em que estiverem esculpidas algumas figuras, ou tiverem letreyros (...) ou Laminas, ou Chapas de qualquer metal que contiverem os ditos letreyros, ou caracteres; como outrosim medalhas, ou moedas, que mostrarem ser daquelles tempos, nem dos inferiores até o reynado do Senhor Rey Dom Sebastião." Fica ainda determinado que as "Camaras das Cidades, &Villas deste Reyno tenhão muyto particular cuidado em conservar, & guardar todas as antiguidades sobreditas, & de semelhante qualidade". Dá igualmente conta das penalidades a aplicar aos infractores: incorrerão "no meu desagrado, experimentarão também a demonstração que o caso pedir, & merecer a sua desatenção, negligencia ou malícia".

 

Em resultado daquele decreto, como informa Vilhena Barbosa, recebeu a Academia nos trinta anos do reinado de D. Joao V, um grande número de objectos arqueológicos, em mármore e em diferentes metais, descobertos em escavações casuais em diversas partes do país mas, principalmente, no Alentejo que, infelizmente, se perderam com o terramoto de 1755. Meio século passado, em 4 de Fevereiro de 1802, por ordem de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, republicar‑se‑ía o alvará de 1721, agora a favor da Real Biblioteca de Lisboa.

 

Aos 26 anos, Alexandre  Herculano reagindo "apaixonadamente", como escreveu Joel Serrão, à Revoluçao de Setembro de 1836,  demitiu‑se ‑ para não trair o seu juramento de fidelidade à Carta Constitucional ‑ do cargo público que ocupava desde 1833, quando trocara as fileiras liberais por um lugar de segundo‑bibliotecário da Biblioteca Pública do Porto, fixando‑se então em Lisboa.O jornalismo aparece como alternativa e, assumindo o encargo de redactor d' O Panorama, o conhecido jornal litterario e ínstructivo da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis.

Vai ser nas páginas desta publicação semanal de larga difusão que Herculano, anonimamente, irá dar à estampa em 1838‑1839, quatro artigos fundamentais sobre a questao do património.[li]

Estes textos de Herculano destacam-se pelo desafio que levantam e acções ulteriores sobre o património que levam a desencadear-se:

‑ sensibilizando, por uma primeira vez, a opiniao pública nacional para a importancia da salvaguarda dos "monumentos pátrios";

 

‑ denunciando o vandalismo[lii] (e como Herculano repete este termo) dos "modernos Hunos"[liii], esses "economistas das alavancas, os philosophos das picaretas"[liv], bem como da incúria das instituições e, concretamente, dos eleitos, como refere ao escrever de modo cáustico "os carros, as cavalgaduras, e os vereadores passam tranquillamente sobre os ossos do passado"[lv];

 

‑ defendendo a criaçao de uma "associação" de defesa do património, cujo trabalho ligasse os seus membros dispersos por todo o reino[lvi];

 

‑ sugerindo que se redigisse "uma lei de monumentos, já que se fazem leis para tudo";

 

‑ chamando a atenção para o valor económico dos monumentos ‑  estava-se em 1838/39 ‑"É a economia a sciencia do nosso tempo. ‑ Todos fallam em capitaes, em industria, em riquezas sociaes, em valores: mas que serão os velhos edificios; que serão essas admiráveis machinas de marmore e granito? São resultado ou producto da concepção, da applicação, e da execução: são, portanto, uma riqueza social: e porque, e para que anniquilaes vós essa riqueza? Dado que ella representa um capital morto, deveríeis acaso lançar este fóra? Todavia um monumento, recommendavel como objecto de arte, é um capital productivo. Calculae quantos e quantos viajantes terão atravessado Portugal, durante um século. Certo que não é para correrem nas nossas commodas diligèncias por nossas bellas estradas, ou navegarem nos nossos rapidos vapores por nossos espaçosos canaes; certo que não é para aprenderem a agricultar com os nossos agricultores; nem a fabricar com os nossos fabricantes; mas para admirarem o mosteiro da Batalha, o templo romano de Évora, o castello da Feira, a collegiada de Guimarães, o convento de Belém, e enfim, tantas obras primas de architectura, que encerra este cantinho do mundo. E dizei‑nos: credes que o

estrangeiro alcança o fim da sua peregrinação, sem despender muito ouro. Ignoraes que este ouro se derrama por mãos de portuguezes? ‑ E fallaes vosoutros de Economia Política; e aniquilaes o capital dos monumentos"[lvii]

‑ afirmando de modo incrívelmente actual, que os monumentos não devem ser encerrados em museus, "porque estes são apenas cemitérios das artes", pois, como escreve logo a seguir, "os fragmentos de um edifício, tirados do seu logar, sem destino, sem união, sao mortos; sao cinza e pó de marmores[lviii].

 

- criando uma "escola", verdadeiros sucessores do seu trabalho, onde se destacarao nomes como Almeida Garrett, Mendes Leal, Luciano Cordeiro, Latino Coelho, entre outros.

 

 

 

O que acontece de mais relevante perto da extinção da Monarquia Constitucional é a introdução nos diplomas legais da noção de monumento nacional e o início de uma trabalho de inventariação[lix] no qual colaboram Câmaras Municipais e são feitos levantamentos envolvendo questionários, como em 1894, os de Gabriel Pereira que eram questionários destinados "a obter notícias dos muitos edifícios e objectos com valor archeologico, historico e artístico que ainda se conservem no paiz, por acaso ou milagre, raros por amor ou attenção consciente, salvas as diversas especies de vandalismo que tantos destruiram ou deixaram perder"[lx].

No entanto, só nas vésperas da revolução da república, o Ministério das Obras Públicas, Commercio e Industria, por Decreto de 16 de Junho de 1910, na sequência do trabalho do Conselho dos Monumentos Nacionais, publica uma lista oficial em que classifica como monumentos nacionais cerca de quatrocentos e cinquenta edifícios.

 

O trabalho da Primeira República, passou mais pela acção educativa e depuradora de conceitos como os de "obra de arte" ou "objecto arqueológico"[lxi] O empenho na acção educativa e Instrução Pública, de que era tutelar João de Barros, é visível numa circular de 27 de Maio de 1915 em que se pede aos directores e professores, "o melhor empenho em despertar e manter no espírito dos alunos [...] o respeito por todos os monumentos, e pela própria paisagem nacional, como sendo uns e outra, por assim dizer, a história e a alma da terra portuguesa, devendo até, por isso [...] procurar dar aos outros o conhecimento conveniente da origem e valor histórico de tais monumentos, de maneira a firmar nos educandos o caracter cívico e patriótico, ao mesmo tempo que se lhes desenvolve o gôsto e amor pela arte"[lxii]."Estas recomendações", acrescentava João de Barros, respeitavam não só "a um importantíssimo capítulo da educação ‑ a educação cívica ‑ mas ainda porque, sendo o nosso país tao frequentemente visitado por estrangeiros, a conservação, o respeito, o carinho com que êles vejam tratados os monumentos e a paisagem serão o exemplo inestimável do melindre patriótico da nossa educação e do nosso ensino"[lxiii].

Durante o Estado Novo pode dizer-se, com Luis Raposo, que "se dá corpo a toda uma política de enquadramento legal e institucional do património cultural que, para além do seu carácter antidemocrático, e por vezes tecnicamente pouco esclarecido, há‑de pelo menos ter‑se por coerente e escrupulosamente executada, especialmente nos primeiros anos da ditadura, quando a dinâmica da transformação ainda se fazia sentir"[lxiv]. Em 1929 nascem, ao mesmo tempo e pelo decreto 1638, de 9 de Janeiro, a Junta da Educação Nacional e a Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, que vinha já na sequência, na integração da Direcção de Obras Públicas, com quatro repartições, uma das quais com atribuições específicas respeitantes aos Edifícios e Monumentos Nacionais (desde 1919). É assim que a actuação da DGEMN[lxv] se rege, nas primeiras duas décadas de existência por uma valoração das obras mais simbólicas da nação, em processo de reconstituição meticulosa.

"Nos anos seguintes, sucede­m-se uma série de disposições regulamentares de interesse menor, até que em 1932 se publicam alguns dos textos legais que, durante décadas, irão constituir a tecitura básica da organização administrativa do País na área patrimo­nial: a criação das Comissões Municipais de Arte e Arqueologia (que o Código Administrativo de 1940 acabará por reconhecer e integrar na estrutura municipal), a revisão do conceito e dos mecanismos de classificação dos monumentos nacionais e a primeira disposição legal moderna regulamentando a prática de escavações arqueológicas. Com efeito, não obstante a falta de democraticidade de toda a estrutura (que ía até ao pon­to de garantir na composição das Erro! A origem da referência não foi encontrada. a mais sólida obediência política ao regime), a verdade é que se montou um sistema que tinha a coroá‑lo um organismo de grande credibilidade institucional (órgao de consulta directa dos membros do Governo, constituído por representantes credenciados das mais diversas instituições académicas e científicas, assim como dos organismos da Administração Pública) e ter­minava numa rede de comissões municipais e delegados concelhios, onde o professor, o padre, enfim, o notável de cada terra poderia encontrar um espaço próprio de afirmação e utilidade social.

De salientar também a componente eminentemente técnica e consultiva da estrutura referida. Competia‑lhe, acima de tudo, propor ao Governo as linhas de interven­cão técnico‑política a serem prosseguidas, recolhendo sugestões a partir das comissões municipais e de todos os organismos públicos e privados envolvidos na gestão e estudo do património cultural nacional."[lxvi]

Esta estrutura funciona razoavelmente até à primavera marcelista, altura em que se começa a reorganizar o que tinha sido gizado nos anos trinta.

"Com o avançar dos anos cinquenta, esta reacção vai acentuar­se na desestruturação da ideologia patrimonial do Estado Novo. Contudo, seria apenas nos anos sessenta ‑ altura em que também teve lugar a reorganização da estrutura patrimonial instalada na década de trinta ‑ que os modelos do Estado‑Novo vão ser paulatinamente abandonados, "por manifesto desfasamento técnico‑ideológico acentuado e pela forma das iniciativas renovadoras, que não cessaram de aumentar ao longo deste período"[lxvii].

 

 

Depois do 25 de Abril de 1974,  surge um maior interesse pela questão patrimonial em vários campos, nalguns casos com um envolvimento excessivo. Com o florescimento das Associações de Defesa do Património, envolve-se cada vez mais a sociedade civil.

"Aproveitando um clima propício, ‑proporcionado inclusivamente pelas preocupações existentes neste domínio a nível internacional — sobretudo no âmbito da UNESC0 —, compartilhando da intensa animação cívica, associativa e cultural desencadeada pelo 25 de Abril, acicatado pelas destruições mais ou menos escandalosas (como o caso da igreja romanica de Joane, no concelho de Famalicão) ou pelas ameaças que diariamente surgem sobre as áreas antigas das cidades (como exemplarmente acontece em Lisboa, com o projecto relativo ao Martim Moniz, e mais recentemente a Alcantara com as "torres do Tejo"), estimulados por alguns sucessos na mobilização da opinião pública contra projectos de depredação dos bens patrimoniais (que permitiam evitar perdas significativas), enfim, tendo conseguido obter o apoio financeiro e o reconhecimento de alguns poderes públicos ‑, nestas circunstancias, o movimento das associações de defesa do património rapidamente ganhou força, prestígio e influência notáveis"[lxviii].

É a Constituição da República de 1976 que impõe ao Estado Português "a obrigação de preservar, defender e valorizar o património cultural do povo português" (art.º78) Dois anos depois, o Dec.-lei 1/78, de 7 de Janeiro, transfere para a Secretaria de Estado da Cultura a atribuições de defesa do património cultural. O Instituto Português do Património Cultural é criado pelo Dec. regulamentar nº 34/80, de 2 de Agosto, entrando para o tecido institucional e administrativo do Estado como uma autêntica vaca sagrada dos anos oitenta.[lxix] Luis Raposo, em texto recente e revelador de experiência e conhecimento da matéria, observa assim a instituição:

 

"A lógica mais profunda da máquina administrativa acabará no entanto por impor-se dentro do IPPC, fazendo perder aos próprios funcionários e dirigentes, assim como aos políticos, o sentido da contenção e do lugar que um instituto daquele tipo (e a Secretaria de Estado no seu todo) deveriam ocupar dentro de estrutura do Estado.(...) A realidade sobre a qual o IPPC deveria incidir crescia exponencialmente cada ano: o Instituto tornava-se  cada vez mais um complexo labirinto de corredores e gabinetes, onde se acumulavam funcionários e, sobretudo, tarefeiros, sem tempo para definir e pôr em prática políticas consertadas (...) Os políticos, com a sua proverbial incultura e falta de perspectiva histórica, especialmente numa época em que as capacidades que mais se prezam são as gestões? Com certeza. Mas tam­bém os cidadãos, incluindo todos os que mais de perto vivemos e sentimos o desenvolvimento dos temas patri­moniais, porque não soubemos ir mais além da consigna panfletária e do apelo ao Erro! A origem da referência não foi encontrada.. Mas também muitos técnicos, funcionários e pequenos dirigentes, que, talvez de forma imperceptível, foram preferindo exercer o seu modesto poder, aumentar as suas áreas de influên­cia, assegurando os seus lugares em busca de consagra­ção hierárquica e mundana, em vez de terem a ousadia de pensarem a prazo maior do que o de cada dia, cada direcção administrativa ou cada equipa política."[lxx]

 

 

 

 

 

6.2    O Direito positivo aplicado ao patrimónioErro! Marcador não definido.;

 

 

Após a síntese da evolução constituinte do Património em Portugal, tentamos observar neste ponto, igualmente longo, a articulação legal do Património, e algumas das vicissitudes por que tem passado. Dada a especialidade do tema, é imprescindível voltar a notar que a nossa perspectiva é, quando muito,  a da Sociologia do Direito e da matéria sobre a qual este produz  discurso legal, assim como a das instâncias que o executam. Para isto, consultámos a lei e o seu articulado, alguns especialistas, a sua opinião e modos executivos, e observámos alguns casos concretos que, por serem extensos e não preponderantes (pela extensão da amostra e objectivo primeiro deste trabalho) aqui não incluímos.

 

 

 

A Lei do Património Cultural Português

Lei nº 13/85 de 6 de Julho

 

"A Assembleia da República decreta nos termos dos artigos 164.º, alínea d), e 169º, nº2, da Constituição, o seguinte

Título I

Princípios fundamentais

Artigo 1.º

"O património cultural português é constituido por todos os bens materiais e imateriais que, pelo seu reconhecido valor próprio, devam ser considerados como de interesse relevante para a permanência e identidade da cultura portuguesa através do tempo. (...)"

 

 

As intenções do legislador

 

A lei, quer se queira quer não, é sempre um ponto de ancoragem onde se acaba por ir dar em qualquer processo de abordagem envolvendo o social[lxxi].

Esta lei nº13/85 foi farta de debate, é problemática, e ao que tudo indica, é de difícil exequibilidade.

Observando a definição que fica estatuída no artigo 1º desta lei transparece, e perguntamo-nos até que ponto isso não é normal no discurso legal, um exagero de simplicidade na definição de uma "matéria" de tão difíceis contornos. Várias questões nos surgem logo à cabeça:

- como é que o legislador vai conseguir tocar e, eventualmente, fazer com que a lei domine ou abranja os bens imateriais?;

A expressão "reconhecido valor" implica o envolvimento de inúmeras instâncias; particularmente as de valorização e as de reconhecimento. Quem é que dá valor e quem é que reconhece? A opinião pública? O Estado? Os especialistas?

Este "reconhecido valor" implica, à partida, a existência de um consenso generalizado sobre o objecto, consenso esse que, por vezes, necessita de séculos para se estabilizar. Neste caso, o conjunto de objectos, materiais ou imateriais que recairíam na área do Património a protejer, seria então reduzidíssimo.

Onde é que se situa, por outro lado, a fronteira  que determina ser o objecto de "interesse relevante" ou não?

Somos levados a observar que, de um modo geral, a década de oitenta trouxe (até hoje) uma maneira-de-estar dos orgãos executivos do Estado que, privilegiando um certo tipo de performatividade ‑ o "fazer coisas" ‑ são frequentemente levados à pordução de alguns disparates, pela não existência de preparação ou trabalho prévio, neste caso, o inventário; esta também uma figura problemática, mas sobre a qual existe algum consenso: Quando esta lei foi produzida, o inventário tinha apenas começado a ser executado, e os técnicos entravam  quase numa aporia: não se podia acabar o inventário sem lei que determinasse o "inventariável" e, por seu lado, o legislador escudava-se na abrangência da lei que tudo abarcasse, no desconhecimento do que pudesse surgir  pois, segundo esta lei, tudo é potencialmente patrimonializável.

Também no que diz respeito ao Património Cultural Português, é preponderante o "tudo ou nada", que no fim acaba sempre com a eliminação do "tudo". Aqui, a generalidade dos textos normativos sobre o património são quase letra morta, pois todos apontam e utilizam como referência a classificação de móveis e imóveis, materiais e imateriais; acontece que a generalidade dessas tarefas de inventariação ainda há pouco começaram. O que existe, ou o que se determina que é, deve acontecer no momento ou após o inventário, o levantamento do conjunto de objectos formando um corpus; o que se arrola em conjunto para determinar o arranque de um projecto.

É por isto que a lei nos pode servir aqui apenas para esmiuçar algumas das intenções do legislador e apurar os condicionalismos e os momentos políticos que geraram essa lei.

Actualmente, a trama de textos normativos já é bastante grande e esta continua assente numa "bolha de ar" no que diz respeito a essa solidez jurídica, "quando as competências se atropelam, quando os interesses privados possuem uma protecção que levanta muitas interrogações.(...) O que o legislador português fez com a lei nº13/85 (...) foi avançar a definição da "quadratura do circulo" protestando trazer à estampa os cálculos da operação. O resultado está à vista, temos uma legislação com uma concretização de futurologia, decerto bem intencionada, mas incontestavelmente ineficaz.(...)Com efeito, a lei 13/85 não desenvolve nem regulamenta inúmeros conceitos utilizados pelo legislador, que carecem de complementarização, desde logo, o próprio conceito do que seja património cultural."[lxxii]

Estas considerações de João Vaz Rodrigues parecem evidentes no que respeita à ineficiencia de uma lei que deve implicar uma capacidade operacional e executiva elevadas. Mais adiante veremos como este problema é, por vezes, contornado, e outras vezes, não.

 

Para já, ocorre-nos observar a lei do "Patrimonio Histórico Español", uma vez que podemos, pelo menos, comparar formas de constituição dos principais artigos das leis, que determinam o que é e o que não é «Património».

A Ley 16/85 de 25 de junho, "del Patrimonio Histórico Español" é bastante completa e articulada nos seus pormenores; começa com um preambulo em que o legislador se sente na obrigação de fundamentar a existência da lei e a forma da sua constituição tal como ela é.

O ponto principal que nos interessa aparece no "Título Preliminar - Disposiciones Generales", e é o artigo 2. que determina o universo de aplicação da lei:

- "Integran el Patrimonio Histórico Español los inmuebles y objetos muebles de interés artístico, histórico, paleontológico, arqueológico, etnográfico, científico o técnico. También forman parte del mismo el patrimonio documental y bibliográfico, los yacimientos y zonas arqueológicas, así como los sitios naturales, jardines y parques, que tengan valor artístico, histórico o antropológico."[lxxiii]

Com base neste artigo, é depois desdobrada uma regulamentação pormenorizada acerca de cada um dos campos abarcados.[lxxiv]

 

O que salta logo à vista, em ambas as leis - portuguesa e espanhola - é que, com base neste articulado, tudo pode cair sob a alçada do Património e da sua regulamentação; tudo é potencialmente patrimonializável. Em primeira e última instância, essa decisão cabe aos "especialistas" designados para tal, assim como a quem os nomeia.[lxxv]

 

 

 

 

6.2.1 Práticas de classificaçãoErro! Marcador não definido.

 

Relativamente ao que se pode observar na lei, pouco mais há a dizer. A acção acontece no momento em que a lei é interpretada e aplicada; boa parte desse processo é levado a cabo pelo IPPAR, com destaque para os bens imóveis que, actualmente, e com base no Decreto nº45/93, de 30 de Novembro, conta 2712 bens imóveis classificados em Portugal continental. Segundo a Lei do Património Cultural, o processo de classificação de um bem imóvel pode ser desencadeado pelo Estado, autarquias locais, ou por qualquer pessoa singular ou colectiva. As propostas de classificação são apresentadas ao IPPAR que organiza o processo administrativo conducente a efectivação da mesma, após apreciação das propostas. Estas devem conter a identificação do proponente; a identificação cartográfica do bem a classificar;  a descrição do bem com informação geral, tipologia, utilização actual, infraestruturas existentes e estado de conservação; e documentos gráficos sobre o bem - fotografias, e plantas se possível.

Sobre os critérios de classificação, é a própria publicação do IPPAR - Património, Informar para Proteger - que nos dá conta de que a "classificação de um bem imóvel visa distingui-lo pelo seu valor histórico, cultural ou estético, e garantir a sua conservação e fruição pela comunidade, conferindo-lhe uma protecção legal e um estatuto priveligiado.(...) As decisões de classificação de bens imóveis são sempre fundamentadas segundo critérios de autenticidade, qualidade e originalidade, ou também pela possibilidade desses bens constituirem testemunhos documentais de natureza histórica, arquitectónica arqueológica, artística, científica, técnica ou social."[lxxvi].

 

Por outro lado, através do seu gabinete jurídico, o IPPAR observa a lei que regulamenta a classificação, e foi na pessoa do Dr. Joaquim Veríssimo, que nos inteirámos da prática nos processos de classificação.

A frágil intervenção da lei inicia-se pela 1-instrução do processo de classificação; processo que é instruído a partir das instâncias envolvidas, público (comunidade) ou técnicos que decidem classificar um determinado bem; a constituição desse processo deve respeitar minimamente a lei 3/85 e a lei de 1932.

2‑ O processo é entregue ao Presidente do IPPAR que faz reunir o Conselho Consultivo (arquitetos, professores de História da Arte, e outros experts, etc) que se pronuncia sobre o processo.

3- O processo é homologado, ou não pelo Secretário de Estado da Cultura e só é válido depois de ser publicado sob a forma de Decreto-lei no Diário da República.

Percebe-se então que, na prática, a lei e o Gabinete Jurídico, só têm interferência em caso de litígio; quando acontece o cruzamento ou choque de interesses no processo de patrimonialização. Por esta razão, é possível entender-se que não existe uma interpretação rigorosa da lei a não ser em caso litigioso.

Observámos alguns pontos charneira em que o Direito materializa a institucionalização dos processos que levam à positivização das práticas patrimoniais. Vamos passar à emergência das próprias instituições administradoras de patrimónios.

 


 

7.       Modos de agenciamento e emergência das instituições administradoras do patrimónioErro! Marcador não definido.;

 

O conceito de Património, mesmo a nível institucional, está ainda em fase de crescimento, estado nascente, na sua versão mais cultural e englobante. Pode dizer-se que não foi ainda totalmente cristalizado pelas instâncias sociais que se encarregam de situar e administrar a generalidade dos saberes e práticas que emergem no quotidiano social.  Este é ainda um espaço, como aliás a generalidade dos espaços ditos[lxxvii] "culturais",  onde o discurso político se pode refugiar sempre que as outras áreas mais bem demarcadas e endurecidas não oferecem o rendimento e resposta imediata às necessidades estratégicas dos poderes aplicados. Então, há que procurar novas áreas; criar novos Ministérios e Secretarias de Estado que, formalizando a posse da tutela de um campo, geralmente novo e menos submisso, formalizam a capacidade para a sua administração, legitimando ao mesmo tempo esse exercício. O Património não estando inserido num campo tão novo — "a Cultura" — não deixa por isso de ser, na contemporaneidade, uma emergência suficientemente recente para merecer esse tipo de atenção[lxxviii] que aos novos campos é dedicada. 

Quando se chega o património próximo do campo político, aclaram-se jogos interessantes. Sabe-se do primordial interesse deste campo pelos media e por todo o potencial instrumental, mesmo ilusório, que estes podem representar. Este interesse está ainda em crescimento, e no momento em que se percebe a cultura enquanto espectáculo/encenação, quando há a previsão de toque em instrumentos que acedem ao social — no caso do Património que encena outros poderes sempre tomados como de origem (a perspectiva genealógica e archetípica essencial aos poderes novos), então o campo político aproxima-se. Afinal é um manancial inesgotável de acesso ao imaginário social que não é desprezado por nenhum tipo de poder que de tal se aperceba.

Numa época em que tudo se esgota na reificação objectal do quotidiano, em que a justificação e a emergência do sentido na acção política passa essencialmente pelos seus efeitos materializáveis em objectos, é natural que qualquer campo material com ligação a algum espaço transcendental, venha sempre a despertar interesses, mesmo que instrumentais; e este é um deles[lxxix]. Não é, assim, necessária grande análise  para entender que o político que mais necessita do património para se identificar é o que, tendo força, não tem ascendência. Os mortos que lhe interessa comemorar são sempre os de tempos remotos e gloriosos, suficientemente inócuos para lhe não causarem fricção, ou os relativamente próximos-recentes, já dentro das suas áreas temporais e de domínio. Há inclusivamente uma parte de cultura tradicionalmente "subalterna" que começa, finalmente, a ser uma área interessante para qualquer poder, porque esta passou a ter a força da exposição e da selecção, tal como os media.

Na dialéctica que aqui se observa, a destruição precede sempre a conservação, ao contrário do que acontece na economia de 1ª escala em que o problema começa a ser a destruição/desintegração dos objectos produzidos. Ora, o político parece acomodar-se bastante bem à primeira; destruição e só depois conservação. O caso do incêndio do Chiado é disso revelador. Um acidente como este é particularmente propício a uma observação mais profícua, porque a velocidade de actuação permite o acompanhamento quase "in loco". Os outros, "acidentes-não-acidentes" como são todos os casos de degradação/ruina mais lentos e inexoráveis em que os agentes de corrosão, que são por vezes os próprios poderes e não só pela sua cumplicidade no acto, esses casos não permitem o "travelling" (acompanhamento em paralelo). Pondo a hipótese de que o Chiado estará, dentro de X anos, como é da actual vontade política, reconhecível como era dantes, não custa muito perguntar se, em vez de um acidente-catástrofe, os prédios tivessem observado um processo de degradação normal, vá lá de uns 100 anos, e fossem desabando um-a-um. Se isso acontecesse, qual seria a configuração do Chiado ao fim desses 100 anos? É que já não é só necessária a destruição antes da conservação, é preciso que se note a falta (alguém a note) do desaparecido para que se restaure. A convivência com a ruina gera naturalmente um hábito que torna mais fácil a demolição que o restauro.

No campo político, notar a falta do destruído, hoje, não é exactamente apenas sentir uma clareira, sentir a vontade de restaurar valores perdidos é, acima de tudo, observar um rendimento pela obturação dessa clareira. Qualquer abordagem pragmática nos diz que a vontade política se movimenta, quando se movimenta, com um horizonte relativamente curto e situado em convergência no efeito da acção; a arte de gerir o curto prazo. Pode portanto daqui inferir-se que o objecto em estado de ruina progressiva, se tiver o azar de não se situar na área de efeitos rentáveis aos poderes que lhe aparecem pela frente, esse "objecto" está condenado à ablação. Até que ponto este raciocínio se pode mostrar arrepiante, isso só pode ser estabelecido quando se tentar responder à questão porquê/para quê conservar tudo?

A urgência da conservação acaba por nos levar sempre ao encontro da relação entre o tempo e o poder; porque é preciso perceber que existem poderes específicos para gerir o Museu e o Património, e estes mais não são que os delegados de um outro Poder a definir melhor, que necessita permanentemente de se representar e identificar (com algo). O campo político contemporâneo é um espaço onde é realizada a arte de trabalhar o curto prazo com os instrumentos da contingência; é natural, por isto, que a solidez das crenças colectivas, tal como as ordens do longo prazo, sejam objectos de fascínio para qualquer poder actual. Num contexto de real que inscreve a todo o momento a marca do efémero em qualquer tipo de acção ou obra, seja a que poder for, justifica-se a tentação permanente de inscrever no imaginário social do presente e do futuro presente as regras que o poder presente acha deverem determinar o jogo da relação de forças porvir. Representar hoje a perpétuação do corpo e ideias das forças vigentes é para o presente passado a única garantia da sua sobrevivência. Como é que essa representação/representatividade é produzida? Como é que hoje se constroi a imagem perene que se quer adquirir? Como é que a actual racionalidade instrumental  e os seus modos de investimento actuam inflaccionando o valor de certos objectos, "esquematizando" e construindo uma matriz para a aferição e condução da experiência? Qual o modo como são produzidas e administradas as estratégias de investimento de sentido nos objectos? Como é que se produz o consenso num campo social segmentado?

Há, de facto, por parte desse Poder uma busca permanente dos lugares, pontos nodais óptimos para a operacionalização das diversas redes de memória colectiva, as memórias de amanhã. É na construção destas redes que laboram os outros pequenos poderes profissionalizados acima referidos. O simples acto de preservar algo de entre os perecíveis, implica o destacar esse objecto de entre os outros não preservados; depois, submeter o objecto ao olhar do social. O "como" e o "porquê" disto é natural que ofereçam o sentido do acto, da sua evocação e eventualmente da sua vontade de significação — pelo menos o sentido pragmático. É precisamente no seio deste "holding" de segmentos de cultura e poder que é possível observar o património objectivo de uma cidade e o seu enriquecimento, o modo como tudo aí se objectiva e se impõe ao social cada vez mais a partir de fora, do exterior do sujeito (utente?). É este parcelamento e objectivação que produz, também, um número crescente desses pequenos poderes em que aparecem papéis sem actores e estes, quando surgem, se definem pela sua responsabilidade limitada; limitação socialmente legitimada por uma maneira-de-estar de "quem-não-quer-a-coisa". Não podendo integralmente responder a partir do seu papel pela limitação do poder que lhe é consignado, curiosamente sempre inferior às funções socialmente superiores que o papel reivindica, na construção destes poderes crescem então os grupos, as associações de poderes e as intrigas, de ligações cada vez mais frágeis e complexas na construção dessas redes para o investimento e partilha de valores. Por cima disto, há toda a economia normal por onde passa a valorização de objectos, passando uns rapidamente a dejectos, e outros assumindo, depois de recuperados, o estatuto de património preservável.[lxxx] A abordagem a este contexto de investimentos/desinvestimentos e corrosão de objectos (no caso da técnica) é primordial, particularmente no que diz respeito ao jogo económico observável nessa rede de sentidos (significações) que se conjugam uns com os outros no cenário do social. Fazer ou construir aqui uma economia da relação de forças de valor e sentido, recorrer a uma semântica que observe as oscilações e as dinâmicas de sentido nessas relações é algo para que, em termos científicos, existem já instrumentos razoavelemnte bem desenvolvidos e aplicáveis à experiência de pesquisa que este campo eclético implica.

Mas observemos melhor o procedimento central de conservação que passa pelo institucional arquivo-museu.

 

 

 

 

7.1    A Museologização e a exorbitação arquivista — Museus, museologia e museologização socialErro! Marcador não definido.

 

 

Tínhamos já referido alguns elementos que, neste percurso, activaram a intervenção do Estado nas diversas práticas de patrimonialização e estetização da experiência; um processo de institucionalização que exige uma abordagem mais promenorizada, de modo a podermos decantar, pelo menos, um modus operandi dos agentes envolvidos nessas práticas. Desses agentes, os que mais se destacam contemporaneamente, pelo seu papel social em mais que um campo, e pela quantidade de investimento que exigem, são os arquivos e os museus, operadores por excelência da conservação e exposição selectivas, na sua generalidade com base em narrativas do presente, para a modelação de um determinado passado.

 

 

"Derriére les préocupations habituelles de la sauvegarde des patrimoines se manifeste le désir d'investir les mémoires collectives des sociétes. (...) Par-delà des plaisirs obsessionnels de la sauvegarde des objets apparaît un mouvement de consécration de tous les signes culturels. (...) Rien ne semble pouvoir échaper à cette entreprise de stockage et de classification(...) les mots "patrimoine", "memoire collective", ou "identité culturelle" perdent dèjá leur pouvoir conceptuel en devenant des expressions vagues qui finissent par désigner l½'épuisement même de leur sens. Ils apparaissent comme des "mots d'ordre" (...) La culture n'est plus dans la tête des gens mais devant eux, composé d'une multitude de signes à repérer et à interpréter, ou encore à revivre comme l'expression d'une tradition incontestée. Le bsoin de culture se traduit par une objectalisation des cultures."[lxxxi]   

 

 

Ao observar a criação do arquivo/museu, é difícil negar que antes, à partida,  é uma intencionalidade o que é possível encontrar no seu arranque — a vontade de preservar. O património institucionalizado será então a materialização e o "eco social" dessa vontade.

Dando esta premissa como assente, torna-se mais fácil estabelecer uma relação (mesmo que não cheguemos ao ponto de a definir) entre essa necessidade de preservação e as grandes necessidades de deslocação.[lxxxii]

Jankelevitch define-as bastante bem;  não é só a estreiteza da sua finitude (as implicações da morte) que o homem tenta ultrapassar, é também o seu presente, lugar a que está preso e de que em permanência deseja libertar-se.  Aqui, o tempo — sempre que este conceito ou noção chegam à consciência entram nesse espaço, que é um espaço com forma muito próxima da objectiva — exterior; acaba por ser sempre um tempo projectado nesse espaço.[lxxxiii]

Esse grande tempo "envelopante", onde todas as entidades têm de cair, é a atmosfera e o meio omnipresente  onde tudo evolui, como já Plotino e Aristóteles observavam. Assim, o movimento de deslocação, como a necessidade que o impele/despoleta, acabam por se confinar ao universo de referentes que já se conhecem , que são leito de acolhimento imediato aos dados apreendidos por qualquer sujeito. Pode parecer, até certo ponto um paradoxo mas, aqui,  como aliás noutras vertentes,  o arquivo não é mais que a objectivização da possibilidade de acesso a esses referentes.

Por outro lado,  encontramos também outra necessidade derivada, tão humana quanto esta  necessidade de acumulação e objectivação de um devir.  Por este processo passam todos os coleccionadores/acumuladores de objectos (selos, medalhas, capital, etc). É possível observar por este prisma, que o produto/acumulo, a herança que ficam,  mais não são, nos limites da finitude a que o sujeito acumulador se circunscreve, do que a objectivação de um devir. Objectivando-se na herança, este acaba por ser um processo do vivido, do Lebenswelt (em Husserl) ‑ tempo gasto na produção de algo que, entre muitas coisas, é a colecção de índices/indexação do espaço-tempo vivido/processado.

O arquivo, o conjunto de tarefas de recolha, tratamento e restauro de objectos/artefactos, encontra-se na confluência desta dupla necessidade primária, nómada e cumulativa . É tanto na perspectiva de ser lembrado,  fazer lembrar, como na de permitir a deslocação no tempo aos vindouros, que o primeiro sujeito preserva — se organiza de modo a poder transferir a/uma herança. Se pode parecer interessante trabalhar/produzir para ser lembrado, é também fácil encontrar nesta necessidade a tensão que o vazio provoca - o sujeito que não tem quem / o que lembrar.

Pensar o património no seu sentido mais lato, é pensar o processo de museologização social que atravessamos. O museu, neste caso, pode ser aberto, não circunscrito no espaço; são reflexo disso expressões como "cidade museu", "museologização de...", etc. São aqui sobretudo os actos, as práticas e atitudes envolventes que caracterizam o campo que se aborda.[lxxxiv]

Observemos então as características do conceito de "arquivo", e a generalidade de atitudes que envolve.

 

 

7.2    O Lugar do ArquivoErro! Marcador não definido.;

 

Questionar o arquivo[lxxxv], questionar o trabalho de preservação dos objectos, é questionar algo de complexo; é, antes do mais, questionar um projecto e uma actividade específicos. Qual é e em que consiste a propriedade essencial desse projecto; será de todo possível encontrá-la? Em que consiste aquilo que é, em seu ser ‑ activo?

Apercebemo-nos que a entidade do arquivo, aquilo que o pode revelar como existindo para algo, a sua função teleológica, passa necessariamente pela busca de forças em alguma necessidade humana  que a alimente ‑ entenda-se "busca de forças", "fonte de energia", etc,  não como um ponto de origem, mas como um ponto de passagem numa eventual circularidade que preenche um espaço que é preciso cobrir. Para tal, existe um "motor" que deve ser energizado/alimentado (paradigma mecânico) ou uma troca de energias que produz o movimento (paradigma termodinâmico).

Bazin, na sua "Ontologia da Imagem Fotográfica"[lxxxvi], transporta-nos um pouco a esse núcleo do problema que aqui se aborda. Acabamos por encontrar sempre uma intencionalidade  base, por trás de toda a manipulação do objecto. Esta é uma via da explicação e mais do entendimento. Neste caso, o perigo do nada a que esta busca sequencial nos possa levar não é tão importante porque é preciso que nos chegue, que fiquemos humildemente satisfeitos com a vivência/experiência do percurso[lxxxvii] ‑ uma que nos possa oferecer um adequado "verstehen". 

 

Por seu lado, o museu é, antes de tudo, um lugar, no sentido mais físico e material do termo,  onde se guardam, conservam e se expõem os artefactos que a sociedade seleccionou, por formarem a matriz da sua memória material. Os artefactos constituem uma colecção dinâmica que tende a crescer com o tempo (e o museu), a vida, e as mortes dessa sociedade. O museu é, neste sentido, o local de colecta/recolha, restauro e exposição de objectos e artefactos de algum modo valorizados pela sociedade que neles espelha as suas origens e neles materializa a sua identidade. Chegamos, por aqui, à perspectiva mais epistémica do conceito de museologia;  o museu acontece, num espaço de representação e investimento vivencial, em que a sociedade interage consigo própria, se representa as suas raízes e identidades, através da mediação dos artefactos que a caracterizam e lhe vão construindo e reconstruindo a imagem.

Por «artefactos» devem entender-se não apenas os objectos palpáveis, produtos da imaginação e actividade produtiva do homem e de uma cultura, mas também a panóplia dos imateriais que vão das narrativas aos saberes, práticas e técnicas de produção  "enformadoras" de maneiras-de-estar e de viver. O artefacto é, hoje em dia, o grande suporte do essencial que é o discurso com que vem embrulhado, "envelopado" na actual vigência do "museu comunicante". "But what if the visitor is visually underdeveloped, i.e. does not know what to look for or cannot read the signals given out from a particular exhibition format? A sherd of common-or-garden Roman pottery, actually held in the hand, may well meet his or her needs, may well provide a "significance", better than the most elaborately  displayed but encoded, precious artefact "explained" by subtle side-lighting and 500 words of scholarly prose. Some museums are adressing issues of this kind..."[lxxxviii]

Se todo o artefacto é potencialmente museologizável,  nos termos de  uma axiologia museológica do património, apenas são museologizados os artefactos que de algum modo exprimam a experiência e/ou um saber colectivo. Nesta colecção que cresce interminavelmente, é bom existir sempre algo em falta, sinal particular da dinâmica dessa sociedade no seu presente, em que a experiência colectiva e os artefactos envolvidos evoluem.  Assim, um artefacto museologizável é um objecto em vias de extinção devido à sua substituição por um outro objecto exprimindo melhor o lugar do presente na nova etapa desse saber social. Espaço da "memória petrificada" como lhe chama H-P Jeudy,  o museu constitui-se na reificação dessa memória colectiva onde os poderes sociais procuram oferecer ao cidadão vias de encontro e identidade num mundo em rápida evolução.

À medida que a sociedade tem vindo a tomar consciência do papel representado pelas funções atribuidas ao museu — conservar/restaurar, expôr/comunicar e formar/educar, estas têm vindo a dissociar-se, acantonando-se por especialidades e com prevalências, de unidade para unidade, de museu para museu. Esta especialização — fragmentação dos saberes e das actividades, que acontece ainda na esteira do processo de racionalização geral que emergiu com a modernidade — é também condicionada pela história e evolução de cada instituição, envolvendo largamente a escolha e formação do pessoal que a administra. Por isto mesmo, à diferenciação de funções está implícita uma concepção de estruturas distintas e complementares; cada função corresponde a um tipo de gestão e programação específicos para cada área de desenvolvimento do museu. Passando do primado da conservação para o da formação, o museu deve integrar na sua gestão global, a relação actual e potencial que pode disponibilizar aos visitantes e ao seu ambiente sociocultural.

 

 

 

7.3    A institucionalização da experiência patrimonial; a rede positivaErro! Marcador não definido..

 

Tendo começado por serem, essencialmente, lugares de acumulação e exibição do património de uma nação, os museus deviam mostrar e simbolizar, nas novas cidades, a riqueza, o poder e os ideais dos seus governantes. É natural que no início, a História nos mostrasse uma relação  muito mais manifesta das instituições gestoras do património com os poderes (instituintes). A própria organização (hierarquia do pessoal) interna e das salas de exposição eram um manifesto ideológico directo de quem o suportava. Isto não quer dizer que hoje não aconteça algo de idêntico; no entanto, a situação complexificou-se e existe uma sofisticação superior nos processos de enunciação expositiva (o discurso da exposição) que fazem descer à imanência essa manifestação dos poderes de suporte. Há hoje toda uma classe de "profissionais da exposição" sem os quais a "obra" de arte ou o objecto produzido não podem existir.

A modernidade e, depois, a entrada neste século, observaram a transformação do museu, como outras instituições nascentes, particularmente na área do mediático, numa  montra e espelho da sociedade. Os tesouros de uma época que começaram a passar essencialmente pelos saberes, ciência, técnica e artes, haviam que ser exibidos na sua expressão de progresso e poder.

 

As origens do museu, a História encontra-as no coleccionador que começa por juntar objectos e, depois, sobrepõe a preservação do antigo à valorização a que o encontro sintagmático (de série) dos objectos dá direito. Se nas suas origens esta é uma atitude absolutamente subjectiva que só adquire sentido em determinados contextos como os do culto ou do sagrado, quando este sentido extravasa o privado e passa ao público, ao social, como começou a acontecer há cerca de dois séculos e se fortaleceu depois da segunda grande guerra, então estamos perante um espaço de valoração, (e porque não culto?) do senso comum, da comunidade de sentidos que são supostos valorar um objecto. O museu como lugar de encontro destas valorações, é um topos onde os objectos se encontram "suspensos" do mundo, tanto no tempo como no espaço —, de resto, é assim que opera a memória, particularmente com a imagem, mas num lugar construido para cada memória, tantas quantas os museus e suas salas; um lugar feito para olhar. Os objectos expostos ao olhar são retirados do mundo e deixaram de ter qualquer utilidade relacionada com a sua intenção de produto ou uso social. Estes objectos, K. Pomian baptizou-os com um nome "semióforos"[lxxxix], isto é, dotados de uma significação, não manipuláveis e representando o "invisível", numa sociedade que precisa da visibilidade da imagem, da materialidade e da re-presentação para se perceber. A verdade é que é hoje difícil fazer entender que nem sempre assim foi; se a ordem simbólica e os artifícios de socialização e estabilização do social hoje pouco passam além do material, tempos houve em que o essencial, sendo imaterial e invisível facilitava, até certo ponto, os investimentos da preservação que passavam pelo sagrado e pelo discurso mítico, fácil de produzir quando preso a qualquer tipo de força. Veja-se este caso:

"Cette indifférence aux restes matériels dans les pratiques architecturales jusqu'à la fin du XVIIIe siècle. Un exemple la décision de Jules II de détruire (en 1505) l'église Saint-Piere construite par Constantin douze siècles plus tôt. Le monument représentant pour lui une entité indestructible, dont l'apparence physique pouvait être modifiée sans que son essence soit alterée. Qui oserait proposer le même traitement aujourd'hui pour la cathédrale de Chartres ou le château de Versailles?"[xc]

 

A observar aqui é essa força anteriormente possível de consignar ao imaterial simbólico, ao invisível, então apenas referenciável enquanto força. Ponto a destacar é que no mundo actual, o imperativo da corporeidade dessas forças, da sua visibilidade, joga com a opacidade gerada pelos dispositivos da gestão social, com a arbitrariedade do seu uso, a sua potencialidade instrumental,  ‑ o objecto serve-nos como quisermos, tal como os caracteres mágicos "*.*" do sistema informático operativo DOS, é só ter imaginação; mas é o próprio objecto técnico que, como já aqui foi referido, na sua competência vivencial no quotidiano, cria a imperceptibilidade que o imaterializa. O computador será, daqui a umas décadas tão imperceptível como o interruptor de luz sem o qual a vida doméstica é hoje impensável, tal como a fotocopiadora ou a máquina de calcular. É a incorporação total, a perfeição com que o objecto se molda ao corpo, se torna imprescindível e logo a seguir imperceptível (não-estranho).[xci] Isto será ainda melhor percebido quando abordarmos a mediação e as formas em que esta se optimiza, isto é, se torna imperceptível como mediação.

Com esta evolução, os critérios de selecção de objectos e artefactos são radicalmente mudados; deixam de se recolher apenas os objectos mais raros ou pela sua raridade, custo ou espectacularidade, e passam a recolher-se os objectos mais significativos ou reveladores. Passam a entrar no museu, a fotografia, o "design" e, depois, o  próprio cinema. Com esta secularização ou desacralização do museu, o património histórico, a cultura, as práticas artísticas, vão-se tornando substitutos do sagrado enquanto cimento social[xcii], rede de unidade e identidade de um povo. Passa para aqui o lugar da comunhão social suprema, já que todo o restante espaço de comunhão social comum (ordinária) e prática social quotidiana passa pela generalidade dos media em ascensão. [xciii]

Entretanto, a função de contacto e comunicação do museu começa a ascender a um primeiro plano ao nível das práticas de recolha, classificação e restauro. O museu passa a assumir-se também como um medium que oferece um discurso temático e programado sobre uma época, um espaço, uma colecção, requisitando os saberes de arquitectos, designers, decoradores, e comunicadores profissionais. Está então a chegar-se ao momento do museu-medium de comunicação que se assume como espelho idealmente enciclopédico, onde a relação com o artefacto  acontece precisamente pela mediação dos saberes de comunicação disponíveis.

Com o destaque oferecido à área comunicacional do museu, o campo de objectos museologizáveis torna-se tão vasto como os tipos de relação comunicacional  que se investem no objecto e nos modos de o fazer representar  determinados sentidos sociais, históricos e culturais. Daí o compromisso destas instituições com a generalidade dos saberes circulantes. Nalguns casos, no espaço comunicacional do museu (ex. "La Villette ‑ Cité des Sciences et de l'Industrie, em Paris) à semelhança de boa parte dos media mais fortes,  a comunicação torna-se um fim em si que se sobrepõe aos prórios saberes; há essencialmente espectáculo, consumo, consumação. Nestes termos, este espaço museológico que passa mais pela animação e pela comunicação com o utente, acaba por assumir  e criar, particularmente nas duas últimas décadas, um novo espaço institucinal paralelo à rede mediática que acede ao social.

Uma vez estabilizada a observação do medium  ‑ o espaço museológico enquanto possuidor de "linguagem" com modalidades de enunciação e abordagem muito específicas e nas mais das vezes heterodoxas, não é fácil ficar indiferente à parcialidade investida na generalidade dos discursos que envolvem a actualização das enunciações/ex-posições neste espaço e particularmente a sua sensibilidade às narrativas dominantes. Esta é também uma das "patologias" a que podem estar sujeitos os individuos que na máquina administrativa da instituição gerem precisamente o "show off" institucional. Quanto a estes, muito há  a dizer, especialmente no que se refere ao seu lado mais positivo, determinante e mobilizador da sua acção, tão importante e elevado que faz, por vezes, apagar todas as clareiras.

 

 

7.4    Um caso paradigmático — o arquivo de filmes e os museus de cinemaErro! Marcador não definido.;

 

Por ocasião dos debates que (nos) envolveram (n)a criação do ANIM ‑ Arquivo Nacional das Imagens em Movimento, uma das questões de fundo respeitante ao projecto ‑ o momento em que se tomam decisões sobre o que se vai fazer ‑ passou pelo confronto das perspectivas mais tradicionais e ortodoxas  com as mais recentes e "comunicacionais" sobre o que deveria envolver um tal projecto. É que se tratava, afinal, da museologização de um medium - o cinema - que há muito pouco tempo ainda havia subido ao estatuto de "arte sacra". Escusado será dizer que a nossa perspectiva defendia essencialmente o envolvimento comunicacional do utente do arquivo. Não passando pela criação de um "museu do cinema", que é aquilo que aos poderes estatizados mais agrada pela mais baixa relação investimento-lucro político, o arquivo de cinema e imagens era, e continua a ser, algo de difícil enquadramento numa política cultural do espectáculo ("show off") que se pauta precisamente por essa gestão do investimento em projectos de rápido retorno de dividendos por meio do eleitorado. Neste contexto, um "museu do cinema" várias vezes invectivados pelos actuais poderes, era algo que "daria jeito", sendo que um "museu do cinema" é representado na sua (dos poderes) concepção clássica, por pouco mais que as peças, estritamente os objectos (máquinas de filmar, projectar, dispositivos de som e imagem) que enquadraram a história do cinema desde o início do século, constituindo uma bela "feira de quinquilharia" de  ainda barata aquisição e manutenção. Tornou-se bastante difícil ,e continua a sê-lo,  demonstrar a tais instâncias, com tais princípios de gestão envolvendo directa, escandalosa e tão oportunisticamente capital social e político, que um  qualquer "museu  do cinema" tem que possuir em arquivo, antes de tudo, cinema, filmes, obras, livros sobre, fotos, etc,  aquilo que constitui a essência do projecto e que é para ser guardado, restaurado  e mostrado.[xciv]

Este é o exemplo que tivemos já a oportunidade de retratar na Cinemateca em que era possível, em termos de estudo encontrar, por um lado, uma atitude e um perfil "envolvido" e, por outro, uma atitude e perfil de "funcionário" (idealmente competente).  O arranque das cinematecas não era possível sem a força afectiva, na relação com o material, que movia todos esses diligentes cinéfilos conservadores/preservadores que se limitavam, no essencial, a desejar transpôr as vivências suas, e dos seus maiores, para os seus filhos e netos. Uma vez adquirido o estatuto institucional — "integrante/integrador" (relativamente ao Estado), começam já a notar-se esses dois tipos de envolvimentos na acção da Cinemateca em termos psicomotores, por um lado,

a) um investimento a "quente" dos envolvidos que premeiam a sua acção sempre, e acima de tudo, com referentes cinematográficos desse seu mundo mental envolvente; por outro lado,

b) um investimento a "frio" do funcionário mais ou menos competente que tem como objectivo/referente a condução da sua tarefa em termos de excelência laboral.

O grau de "fascínio do património" a que os indivíduos se sujeitam, observa-se como exercendo-se de modos diferentes, passando por um processo, no que se relaciona com o cinema, que se pode ilustrar por este duplo set  de gerações:

- em a), o acompanhamento, mais ou menos próximo das primeiras enunciações/sobre a obra - os críticos, os elogios, as observações, os efeitos. O profundo envolvimento na emergência da obra com todos os fenómenos colaterais e grande condicionante/determinante - a actualidade dessa emergência, ou pelo menos a sua proximidade - que acabam por determinar a "temperatura" desse envolvimento, a profundidade do registo mnemónico.

  - em b) e relativamente aos "funcionários", a outra classe de conservadores que radicalmente estabeleçemos, eventualmente mais fria e distante, é  possível que exista nela uma outra coerência de acção/performance bastante mais pragmática.  Quando esta frieza não excede determinados limites patológicos, como os outros problemas que afectam a generalidade das outras instituições (por exemplo, o excesso de burocracia, de indiferença, de ortodoxia perfomante, etc) talvez seja possível encontrar, entre estes, o perfil ideal, uma vez temperado o "preservador" de amanhã com uns pós do "envolvido" percebe-se que a simbiose de a) e b) estaria próxima dessa idealização.

Metaforizando, relativamente aos indivíduos caracterizados em a) e b), é possível encontrar em a) os "médicos" que operam verdadeiros milagres de preservação/conservação sobre os "moribundos" por si mais queridos e investidos de carga simbólica, no sentido de poderem morrer e deixar vivo o seu objecto de trabalho; são estes os fundadores da memória - mesmo que "biased". Em b) encontram-se os "taxidermistas" embalsamadores, geralmente involuntários, mas supostamente especializados e eficazes, que cumprem o seu trabalho de preservação na sequência dos ensinamentos em que se formaram para a excelência das tarefas que devem efectuar.[xcv]       

       

Só com estes (b) parece ser possível realizar imparcialmente o sonho da "observação policromática", a possibilidade de convergência num presente/espaço passados por via da sua com-pressão/expansão no tempo/espaços presentes - a figura da simultaneidade. É que, afinal, tão paradoxal ou mesmo utópica como esta tentação da fé na convergência temporal,  é a outra que busca na ordem sequêncial, com recurso ao fundamento histórico, a observação/interpretação do fenómeno, acabando  por ir cair no paroxismo da causalidade.

Neste trabalho de "preservação" acabamos também por encontrar uma primeira idade em que os sujeitos/actores da preservação sofrem de "fascinação do património", parafraseando R. Borde, podendo tal conduzir ao perigo das negligências já referidas. Não é tanto o perigo de viver no passado, mas mais o fazer do passado um modelo de apreensão do presente.

 

O que H. P. Jeudy refere, já teve lugar na história recente com graus de força variável, consoante o espaço em que ocorreu mas, não é tanto este o receio que nos pode perturbar (a transferência do modelo, no tempo e no espaço). Em termos prospectivos e "epistemológicos" a questão é mais fluída e abraça apenas a hipótese do que um acesso ilimitado à história material, possa vir a originar num futuro mais ou menos longínquo. Recorrendo aqui à emergência de uma 4ª dimensão ponho-me na pele do futuro investigador/pensador e imagino as "contraintes" que deverá sentir com a possibilidade de acesso a todo esse devir (substancial, não-essencial) por um lado um aumento exponencial na liberdade de movimentos; mais uma dimensão (4ª dimensão), um universo a explorar. Por outro lado, o peso enorme que esse universo/cemitério deve exercer sobre quem quer que seja que nele se aventure.Até certo ponto, numa perspectiva ainda menos globalizante que esta, era desta forma de extensão que falava Malraux sobre a capacidade d'O Museu Imaginário, conseguida através das possibilidades técnicas de reprodução (imagética e material) dos objectos.[xcvi]

Ao perspectivar este futuro, encontramos ainda, como características e competências ideais para um tal investigador, apenas (e não é pouco) a necessidade de uma enorme capacidade de trans-substanciação (mental) - capacidade de simulação das condições de vivência e percepção do real num determinado tempo (passado) pela maior quantidade de factos, artefactos e referências que consiga conjugar. Aquilo a que se poderia chamar uma capacidade de envolvimento teleológico total. Na generalidade dos casos que envolvem a imagem e, actualmente, todos envolvem (mesmo quando esta não é materializada em nenhum suporte), existe hoje uma tal  pan-reificação dos saberes e forças simbólicas que qualquer "viagem no tempo" a partir deste século encontra um caminho muito melhor pavimentado, uma estrada suportada por objectos e imagens concretas a duas e três dimensões.

No caso, por exemplo do cinema, importa chamar a atenção apenas para o facto de que, se este sujeito do futuro, com o advento da imediata cristalização da totalidade das imagens em movimento no acto da sua captação, (do arquivo total), se dispensa de uma memória, dispensa-se apenas da memória material/substancial, a que lhe dá o acesso aos factos/feitos. Por isto deverá , assim, transferir todas as suas capacidades, ainda do espaço mnemónico, para o domínio da operação relacional/vicarial. Um pouco a capacidade de todos os ficcionistas que utilizaram a "máquina do tempo" e a manipularam o melhor que puderam.

No caso da cinemateca, do perfil dos sujeitos que nela evoluem, observamos, por outro lado, no espaço emergente da objectivização, os gestores dessa memória que, limitando-se à preservação da maior quantidade de objectos com a melhor qualidade (preservativa), entram decerto na categoria e espaço daquilo a que H. P. Jeudy chamou "petrificação".[xcvii]

O técnico "taxidermista" [xcviii]     tem de ser, antes de mais, um bom técnico - o  seu  envolvimento  afectivo  com o  objecto de trabalho é sempre secundário, senão impróprio "(...) os egípcios também utilizaram as formas animais de um modo simbólico, quer dizer, não em função do seu intrínseco valor, mas como expressão de algo mais geral. Testemunho disso é o ingénuo emprego de máscaras de animais, sobretudo na representação da operação de embalsamar durante a qual as pessoas encarregadas de abrir os cadáveres, de lhes tirar as entranhas, etc, tinham a cobri-las máscaras de animais. Compreende-se facilmente que nessas ocasiões, a cabeça do animal era empregada não por si mesma, mas por representar uma significação geral independente do objecto."[xcix]

   

No fim, a categoria dos "fascinados",  nesta segunda idade da Instituição, passa a ter lugar apenas na audiência, e só a partir daí pode elaborar discurso - o fascínio legitima a condição de interdição laboral - prescindem, ou é-lhes retirado, o estatuto de "preservadores" não mais é possível, ou mesmo aconselhável, que existam quaisquer relações de familiaridade/afectividade entre médico e paciente, entre técnico e objecto de preservação/recuperação.

 

 

 

8.      A Constituição de um imaginário positivoErro! Marcador não definido.;

 

Já observámos, no segundo capítulo, a caracterização do imaginário simbólico (não específico) de que o processo patrimonializante partilha características. Observou-se o devir evolutivo que nos trouxe do mundo mítico-divinizado até ao "mundo desencantado" e terrestre, dominado pela razão dos homens, única garante da sua libertação.

A constituição do que se pode designar por um "imaginário positivo" acontece precisamente no âmago desse "desencantamento", esvaziado de transcendências arbitrárias (no contexto racional), mas necessitado de dispositivos expansores tanto dos fundamentos (arché) como dos projectos securizantes (telos). É aqui que o imaginário positivo se alimenta, à falta de outras fontes, na "animação" de imagens que vão do mais abstracto conceptualizante — "a tecnologia maravilhosa", "a informação"[c], "o património", "a cidade", etc - até ao concreto em que se aglutinam, num processo totemico[ci], nos objectos que se revelam mais directamente emergentes dessa conceptualização positiva: "o computador", "a televisão", "a cidade-em-si", "o museu", etc. Tudo isto razoavelmente bem consignado na lei (Direito positivo) orquestral, articulação dessa positividade securizante; uma lei que, enredando todo o tecido institucional na sua fragmentação, suporta mal os fenómenos de fusão espontânea que ocorrem/ocorriam no mundo de dinâmica centrípeta, governado por Deus ou por um imperador unificador. É natural que a generalidade das aglutinações simbólicas se encontrem hoje, apenas, incorporadas em abstracções recentes, com a capacidade de se manifestarem concretamente apenas na multidão de objectos e procedimentos que nesta dinâmica as constituem. É por isto que "O desejo de eliminar o "abismo"[cii] domina a discursividade moderna, que tudo avassala na sua vontade de segurança, de estabilidade e de perfeição. É verdade que se trata de uma resposta imaginária ao radicalmente novo da experiência de crise que é a nossa, marcada pelo desaparecimento dos fundamentos, pela negatividade nua e crua. Dizer que é imaginária não significa que não tenha efeitos, e catastróficos, pois a grande diferença em relação às grandes utopias do passado é que a tecnologia e o poder estão em conjunção favorável para tornarem o imaginário real, e esse imaginário, humano, demasiado humano, parece poder dispensar o próprio humano.(...) Fazendo do real um efeito do imaginário, e do imaginário um visar do mundo, coloca o pensamento no próprio instante da constituição, no momento em que se realiza, em que hesita, em que escolhe as suas figuras."[ciii]

O imaginário positivo contemporâneo é, então, precisamente o que se transveste de facto, acto, objecto, lei, procedimento, e repudia (cinicamente) a arbitrariedade do seu processo genealógico de transcendentalização. Reclama e exibe, no entanto, a marca da transcendência que o institui como força agenciadora: a "legitimidade", uma "legitimidade" inscrita em qualquer campo de constituição de forças agenciadoras e legitimadoras.

Quando se reflecte sobre o papel preponderante que o património tem vindo a assumir, não se pode deixar de o associar a essa  reserva de totems, reserva necessariamente objectiva e positiva que deve cobrir a totalidade das atenções ao concreto que a História foi coleccionando. A ancoragem da vida e da acção quotidiana e legítima aos objectos, é uma ancoragem objectivada pela concretude do objecto e das próprias abstracções que mediatizam os olhares e manipulações possíveis. Começa a esbater-se a noção de fronteira entre real e ficção, mas a prova de que a transcendência do imaginário impregna a própria positividade da lei, está no facto de nunca antes ter sido possível  a um emissor evocar tal quantidade de "deuses" ou "entidades míticas" abstractas (conceitos, palavras, estilos) sem necessidade, sequer, de as exibir; talvez porque estejam permanentemente expostas e ligadas ao seu vortex energizante e unificador. Os exemplos podem ser observados em vários campos:

- Os filmes do realizador Kapa, ainda jovem e com pequena, mas boa obra (obra feita com muito investimento e muito vendida) são representantes do cinema no presente, e a evocação do realizador "Kapa-senhor cinema" é suficiente para objectivar tudo o que sobre o deus cinema, entre as artes, se pode evocar;

- O último processador electrónico, hoje o "pentium", amanhã um "P6" ou outro qualquer; a utilização de processadores em paralelo numa mesma máquina (computador), são a evocação objectiva da maravilha tecnológica e o despoletador de toda a excitação que faz vibrar estes imaginários tecnológicos/teleológicos; são o evocar de abstracções como "o potencial", a capacidade de poder fazer algo mais que... muito próximo da abstracção do dinheiro, como Simmel tão bem o demonstrou. A tipologia de uma abstracção como é o dinheiro e o modo como esta hoje se manifesta nos seus mecanismos de crédito e circulação absolutamente virtuais, indiciam a presença de entidades securizantes morfologicamente diferentes, mas funcionalmente idênticas às anteriores entidades divinas com base nas quais se empreendia a acção no quotidiano.

Em síntese, destacam-se aqui dois tipos de organização do imaginário. Por um lado, com a intervenção institucinal e racionalizante, o imaginário "bem comportado" da instituição, quase Kafkiano, produtor de um sujeito bem educado, tanto interior como exteriormente; produtor de funcionários guardadores do tesouro e facultadores das riquezas do museu. Por outro, um imaginário mais contingente e subjectivo, sensível a todo o género de afecções e controlável apenas a partir dos instrumentos simbólicos exteriores.

 

 

 

 

 

8.1    A produção de um agente ideal - "a defesa do          património" e a sua ideologiaErro! Marcador não definido.;

 

O imaginário positivado e secularisado é o lugar certo para a constituição de um agente militante e legitimado para "travar a luta pela defesa do património em perigo". A produção deste agente ideal, contrastando com o imaginário que o sustenta, não difere muito do monge militante pela causa sagrada. É no quadro da presença, primeiro da nação, depois do mundo — na globalização da ideia que os organismos internacionais como a UNESCO se encarregam de veicular — que a sacralização do património ocorre, numa via que cobre cultura e natura, com algumas contradições, como à frente veremos. O que nos deixaram os nossos ancestrais nesta "terra-pátria-planeta-azul", deve representar-se como testemunho do ser colectivo constituído através da História. Acaba por ser necessário criar novos deuses e encontrar-lhes o lugar óptimo para a sua habitação porque "depois da retirada dos deuses em que Holderlin fundava o seu diagnóstico da miséria moderna, estes tivessem deixado para trás todas as suas figuras que, apesar de tudo, restituem ainda o lugar deixado vazio pelos deuses (i.e. o fundamento)."[civ]  Percebe-se que ficaram pelo menos os lugares, alguns templos vazios à espera de novos deuses, mas neste momento de transição observam-se vários deslocamentos do sagrado; dá a impressão, ao sociólogo, que a sacralidade voltou, mais abstracta, e pronta a polvilhar de pó sacramental pontos dispersos dos campos sociais, que logo se corporificam em deuses objectivos. Georges Dumézil havia já observado o deslocamento primeiro, da natureza para a História no modo como os romanos haviam historicisado a mitologia divina misturando com os próprios deuses despersonalizados, os seus heróis fundadores que asseguravam a unidade da nação em volta da ideologia.[cv] "La quête utopique d'une société parfaite a préludé à la sacralisation contemporaine de la sphère du politique. On peut donc parler de la naissance de véritables "religions séculières"(...) Depuis le siècle dernier ont été ainsi investis de cette mission religieuse, l'Etat, la nation, une classe sociale ou une "race superieure" (...)Enfin, l'avenir de la nation ne résulte pas essentiellement d'un projet rationnel, mais se confond avec une mission sacrée, inscrite depuis ses origines dans un héritage à défendre, un corps de valeurs à répéter fidèlement"[cvi]. Se há figuras que se diluem na sua forma tradicional como a de nação e os próprios nacionalismos, estes não deixam de manter o espaço de dinâmica e militância em que se podem transmutar em simbólica "religiosa". Esta é uma das religiosidades laicas que prolifera, articulada numa diâmica que cruza ainda a piedade com a solidariedade comunitária, pelo menos num meta-nível de fundamento, no momento em que se buscam justificações para o envolvimento por entre a força da palavra-de-ordem. É então natural que em tempo de crise epocal, instabilidade cultural e outros vazios, a estabilidade dos objectos e do passado construído em cima de qualquer eidos organizado e funcional se tornem atractivos.

De um modo mais singelo, Clifford Geertz mostra-nos que os nossos textos ideológicos são modos de aplicar uma estrutura simbólica e imaginativa de ideias, imagens e emoções ao mundo exterior. Estas ideias e imagens que dão forma aos nossos sentimentos e os explicam, têm alguma semelhança (metafórica) com os mapas que utilizamos para guiarmos a nossa acção no mundo social. São uma forma de nos fazermos reflectir, são histórias que contamos a nós próprios sobre nós[cvii],  de modo a descobrirmos o que queremos ser e fazer. Felizmente, o número de maneiras pelas quais as histórias podem ser interpretadas, os diferentes sentidos que podem ter para pessoas diferentes, variam. Podem ser verdadeiras ou falsas, um auxílio ou não relativamente às nossas tarefas. Utilizamos várias "próteses" para penetrar estas profundezas; a prótese sociológica, a psicológica e cultural, o que implica dizer, as diversas  hermenêuticas.  Colocamos os textos sob investigação através do óculo-prótese social (classe, estado-nação...), dentro de um enquadramento psicológico (os hábitos quotidianos de sentir e maneiras de pensar), e depois tentamos seguir os traços culturais que as histórias vão deixando ao longo deste terreno.

 

 

 

 

 

9.      Património e ecologia — novos signos e totalidades. Relação com a ecologia e ideologias; narrativas e manifestações totais/absolutas, arche e telos ao mesmo tempoErro! Marcador não definido..

 

 

O que o senso-comum parece encontrar nestas duas novas expressões, novas por terem começado a aparecer no espaço público com maior premencia e indices valorativos mais altos,  é algo de securizante, um pneu de socorro ou boia de salvação num trajecto arriscado que o colectivo terá vindo a ter dificuldade em controlar. Cada conceito na sua esfera, campo de acção, opera em e faz operar elementos semânticos de cariz diverso mas, tanto no tipo de estratégias de conquista do espaço público como nos restantes modos de efectivar a sua acção se encontram paralelos demasiado frequentes e vincados para que se possam pressupor como acidentais. O Direito é um dos endereços em que estes campos quase se tocam, particularmente no modo como fizeram a sua emergência, se anunciaram e geraram problemáticas, provocando inclusivé a necessidade de repensar toda uma dogmática basilar que aglutina vários ramos do Direito, com particularidades especiais para o Direito administrativo e a revisão de todas as prorrogativas inerentes aos direitos do cidadão no que diz particularmente respeito ao usofruto da propriedade privada e colectiva, à sua administração e o modo como qualquer acção pode afectar a comunidade no seio da qual essa acção é levada a efeito.

 

Ocorrem-nos dois exemplos do modo como se manifestam, no quotidiano, acções destes dois campos que são em tudo próximas na sua essência. Estas ocorrem num mesmo Estado que se assume como "pessoa de bem". Acontece que esta não é exactamente nem a imagem nem a experiência que o cidadão encontra no seu contacto quotidiano com "o Estado"[cviii] que se comporta de modo diferente do que veicula ou publicita.

Uma destas manifestações ocorre com alguma frequência sempre que, no âmbito de qualquer tutela ministerial é anunciada, inaugurada, festejada, comemorada enfim, de algum modo ocorre, a propósito de nova aquisição ou grande produção Estatal, uma manifestação que ultrapassa, pela sua dimensão ou montante investido, as proporções que a "ratio" natural do senso comum calcula como apropriadas às dimensões e riqueza do Estado que o governa. Será ou não correcto ao cidadão indagar da legitimidade do investimento e administração de bens levada a efeito pelos funcionários com poder para tal sem a consulta que a Democracia não participada tão bem permite? Até que ponto a ausência de parcimónia em determinadas decisões, provoca no cidadão desprotegido um mal estar que cedo ou tarde acaba por desencadear mecanismos perversos de compensação em que o quotidiano português é, infelizmente, tão rico?

Afinal, partindo deste ou de outro campo, deparamos também aqui com uma economia da acção política em que o património na sua acepção mais lata se engloba, e que nas suas manifestações quotidianas, à falta de uma coerência expressiva, se sujeita aos mais diversos mal e por vezes bem-entendidos.

O problema da política de gestão dos recursos do Estado é complexo. Cabe apenas aqui a chamada de atenção para o modo como esta política de gestão se manifesta e produz efeitos mais ou menos perversos e pulverizados por boa parte do tecido social, particularmente enquanto subsistem clareiras em que o bem-estar mínimo do cidadão não é assegurado. É quase óbvio que este dilema afecta a generalidade das despesas culturais, envolvendo a generalidade dos investimentos em bens patrimoniais.

 

 

Já o totalitarismo ecológico se revela, pelo menos do ponto de vista legal, mais rico que o do património[cix]; é que envolve a generalidade dos bens naturais e estes são mais abundantes que os culturais, e mais susceptíeis de serem objecto de conflito. Parece ser mais fácil a decisão sobre a inerência dos interesses que pendem sobre bens culturais que sobre os naturais.Este debate contemporâneo figurando o Património Cultural e a Ecologia entronca num mais  antigo, e se não quisermos recuar muito, ficamos entre Kant e Rousseau na discussão dos processos pelos quais o homem atinge a felicidade; de qualquer dos lados é defendida a necessidade de um banho total no magma, por um lado da natureza, e por outro, da cultura. Mas para Kant, a cultura estaria sempre condenada ao fracasso se o objectivo for assim tão simplesmente definido -  "a felicidade"; o "retorno à natureza" é igualmente ingénuo. É precisa uma axiologia, uma escala de valores para justificar a acção. E o valor supremo está nos actos do Homem e naquilo em que ele se torna através deles. "Ce que la culture promet aux hommes, ce n'est pas de gagner le bonheur suprême, mais de mériter ce bonheur, et c'est la seule chose qu'elle puisse leur donner.""Logique des Sciences de la Culture", Ernest Cassirer, ed. du CERF, Paris, 1991, p.196. Mesmo no Direito, a História mostra os debates e conflitos que a enorme capacidade de organização e força do Direito romano se manifesta permanentemente; o conflito entre, por um lado, o sentimento "natural" do Direito costumeiro e, por outro lado, o "Direito Esclarecido", conflito que acaba por também ajudar à encenação da peça trágica sobre a Cultura. (ver ibidem, E. Cassirer, p.207)

 

Se relativamente ao património evitei apontar um exemplo concreto, porque os há em profusão e facilmente identificáveis,  já não posso, relativamente ao discurso ecológico, perder um simples apontamento quotidiano que ocorre sempre que contribuo para o enriquecimento do "papelão" autárquico; para tal devo acondicionar devidamente a generalidade de cartões e jornais que consumo, bastantes, para os colocar no grande recipiente de fibra de vidro que dista da minha residência cerca de 600 metros. É nesse percurso, carregado com alguns quilos pesados de papel contribuinte que, permanentemente, me ocorre a reflexão e o mais diverso tipo de dúvidas sobre a virtude e proveito versus virtude e desperdício da minha acção "ecológica". Calculo que o mesmo deva ocorrer a muitos outros cidadãos, não só a caminho do "papelão" como a caminho da repartição-de-finanças-da-área-da-sua-residência...

 

 

Patologias

 

Neste corte/descontinuidade que ocorre entre o discurso total e a prática geral do Estado são produzidos efeitos que não parecem ter ainda sido bem estudados a este macro-nível. Ao nível institucional mais vasto ("L'Analyse Institutionelle", Remy Hess, ed. PUF , Paris 1990, p. 47, ver "l'effet  gang), como ao nível micro-institucional, na família, foi aprofundado o estudo da generalidade dos paradoxos pragmático-comunicacionais que ocorrem perante enunciados imperativos contraditórios, geradores de patologias, da paranóia à esquizofrenia. Frente ao panorama de alguns desequilíbrios é, até certo ponto incrível, como a bolsa de patologias não é ainda mais acentuada; a parte visível, a parte veiculada pela comunicação social,  dos descompassos na gestão dos recursos públicos raramente é responsabilizada pelo mal-estar no Estado que se diz bom.

 

 

 

10. ConclusãoErro! Marcador não definido.

 

Neste capítulo percorremos, com alguma extensão, não só as condições de emergência da experiência patrimonial como os modos da sua estabilização, institucionalização, e positivização a vários níveis — das formas de racionalização à constituição de um imaginário positivo, suporte de uma ideologia patrimonial.

No capítulo anterior ensaiámos a problematização possível da experiência patrimonial e concluímos na observação da fragilidade de constituição do campo assente em normas e definições de património. Observámos igualmente algumas caraterísticas que ajudam a caracterizar a experiência patrimonial pelas suas formas de produção de rendimento simbólico, por exemplo através de imaginários mais reificados, assim como nas suas homologias com o sagrado.      Neste capítulo tentámos analisar o percurso e o perfil das formas de experiência que, desde o século passado, caracterizaram o campo do património, as mutações sofridas, assim como os elementos base de suporte para as ideias essenciais que dinamizam a acção que hoje se reivindica "do património".  Observa-se,  neste campo, o objecto como central e grande mediador na lógica da patrimonialização, entendendo-se aqui por "objecto", aquilo que se materializa como foco de atenção do sujeito, numa experiência que assim se constitui, tanto do lado da emissão como da recepção. Interessa observar é como chegamos a esta objectualização tão materializante/objectulizante na actualidade, e que se caracteriza por essa necessidade de encontrar um objecto material e concreto a mediar todas as transacções e formas de relação, inclusivamente aquelas que tradicionalmente passavam ainda pelo imaterial. O que acontece é que os próprios objectos investidos do cruzamento de sentidos dominantes no social do seu tempo, acabam por se tornar igualmente grandes mediadores e "cofres" para a generalidade de categorias e conceitos institucionais vigentes: "direito", "propriedade", "herança", "património", "história", etc. Interessou-nos investigar o processo de constituição da "solidez" reificante dalguns destes conceitos, se possível para lá dos quadros tradicionais das taxinomias adoptadas pela História. Mais que isto, entendido que o património e o campo que o compreende só podem ser investigados enquanto forma de uma experiência dos sujeitos na história, coube-nos aqui procurar as suas condições históricas de emergência. Se não a sua totalidade, pelo menos as condições determinantes da configuração experiêncial que hoje ele assume.

Começamos, assim, por descrever minimamente a situação e o que caracteriza a actualidade neste âmbito do património para podermos, depois, descortinar os percursos que nesta experiência vêm desembocar. O primeiro levantamento debruça-se sobre o universo integrado e indiviso (pela tutela de Deus e a mão da Igreja) que se vem depois a fragmentar  e, em particular, o modo como ocorrem as formas de fragmentação da experiência na Modernidade; os protagonistas principais dessa fragmentação e a herança que até hoje nos chega da racionalidade investida  como forma de equilíbrio do universo despolarizado, agora na falta do anterior eixo central (Deus) e ordenador da experiência. Max Weber é quem melhor nos mostra a emergência dessa racionalidade e os processos de desencantamento do mundo numa experiência que atira para as margens, quando não para o proibido, toda a acção que se faça nortear por outra que não a racionalidade oficialmente estabilizada pelo tecido institucional.

Pelo modo compensatório como se observa, nos campos mais marginais à razão, a estetização da experiência aparece como uma estabilização da atmosfera dessa rigidez racional, tentando manter a exterioridade do seu vortex estético relativamente à razão. Esta era uma  demarcação territorial para a hipótese de construção de um espaço para o re-encantamento Moderno, numa re-acção aos processos de desencantamento e reificação dominantes. São, por isso, observadas algumas formas desta estabilização e, em particular, o modo como o agenciamento da ideia de património em formas de experiência patrimonial se constitui como um grande eixo de estabilização entre outros (as dimensões de compensação — estética e afectiva; sua localização e balizamento institucional). 

É então feito um rastreio da generalidade das práticas institucionalizadas de promoção da experiência patrimonial, como é o caso dos museus, arquivos, reservas e outras formas institucionalizadas de produção da experiência, na busca e confirmação dos padrões estruturantes de organização da experiência patrimonial. Entre estes, destacam-se os suportes técnico e jurídico, como instrumentos privilegiados de estruturação e estabilização. Observa-se então como se constitui uma fundamentação positiva do campo do património através do Direito, passando-se em seguida a uma resenha histórica do que se passou, nesta perspectiva, em Portugal. O modo constitutivo e técnico como o Direito é aplicado ao património, os momentos em que é evocado e os procedimentos que implica, são a seguir observados, em particular pelas suas práticas de classificação. Expõe-se aqui um universo razoavelmente estabilizado por uma racionalidade "programante" e "reificante", mas totalmente limpa de qualquer forma de manifestação não positiva ou integrada, originando, quando não a marginalização, pelo menos a colocação localizada dos campos mais propícios ao desenvolvimento de dinâmicas de encantamento e rentabilização simbólica — o caso do património.

Sobre o agenciamento e emergência das instituições administradoras do património, são feitas algumas considerações acerca do carácter espectacularizante em que se banha toda a esfera da cultura, e o modo como o campo político alimenta e se alimenta dessa forma de visibilidade e exposição; a relação de concomitância que aí se cruza e suporta também o nascimento dos museus, arquivos e formas gerais de institucionalização patrimonial. É este o precurso que se segue, na observação do processo de institucionalização da experiência patrimonial através da constituição de uma rede positiva. Dá-se, depois, uma atenção especial ao caso do cinema e ao arquivo de filmes e imagens em movimento.

Estabilizada a institucionalização, é um imaginário positivo que emerge da produção de todas estas instâncias, imaginário no qual se destaca "a defesa do património" e a sua ideologia como representantes de um agente ideal de referência para todo o campo do património e rede institucional.

Num último ponto derivado, é feita uma análise das diferenças e homologias entre património e ecologia, suas narrativas e manifestações totais/absolutas, seu arche e telos ao mesmo tempo; uma análise que nos permite clarificar estratégias de acção de campo e situar a sua articulação no social.

Até aqui, o nosso trabalho tem-se pautado essencialmente pela exposição e análise do constituído, assim como dos seus fundamentos expressos e latentes. Com esta base melhor recortada e conhecida passamos, no capítulo que se segue, ao que se poderia denominar uma segunda parte mais analítica mas, essencialmente operativa. Numa perspectiva pragmática vamos então tentar destacar os modos de articulação de esferas e campos de acção com que o campo do património se cruza; a forma como veste de tons diferentes a experiência patrimonial que legitima, conforme as diferentes esferas de acção que intersecta. O trabalho que se segue só é possível articulado sobre o suporte conceptual da mediação — forma de entendimento privilegiada da acção e dinâmicas dos campos que, logo de início, começamos por definir.

 

 

 


horizontal rule

 

[i]Quando acontece a produção de um discurso ou objecto que cria e estabelece compatibilidades entre objectos ou campos até aí incompatíveis e, necessariamente, inoperantes em conjunto

 

 

[ii]Ardis da Comunicação, H-P Jeudy, ed. Imago, Rio de Janeiro, 1990, pps.19-20.  A questão da interferência da tecnologia neste estado de coisas é abordada com pormenor mais à frente *

 

 

[iii]Modernidade e Identidade Pessoal, Anthony Giddens, ed. Celta, Lisboa 1994, p.42

 

 

[iv]ibidem Modernidade e Identidade Pessoal,A. Giddens,1994 p.43

 

 

[v]Comunicação e Cultura, Rodrigues, A.D., ed. Presença, Lisboa, 1994, p. 66

 

 

[vi]Já em Bourdieu, o conceito que enforma esta questão é definido como o conjunto dos diversos habitus (redes de práticas) orquestrados numa relaçäo prática com o mundo e o tempo comuns a um conjunto de agentes envolvidos pelos mesmos pressupostos na construçäo do sentido do mundo onde estäo imersos, constituindo a experiência deste mundo como a experiência de um senso comum."L'habitus comme sens pratique qui est le produit e l'incorporation des structures du monde social(...)engendre des présupposés et des anticipations qui(...)fondent une relation de familiarité immédiate ou de complicité ontologique(...)Bref, l'habitus est le principe de la structuration social de l'existence temporelle, de toutes les anticipations et des présuppositions à travers lequelles nous construisons pratiquement le sens du monde."

in Les Regles de l'Art, "comprendre le comprendre", Bourdieu, P.ed. SEUIL, Paris, 1992 p.450.

 

[vii]Ver também, "A emergência da opinião pública iluminada", em ibid. Estratégias da Comunicação, Rodrigues,A.D., p.38

 

 

[viii] Ver Modernidade e Identidade Pessoal,A.Giddens, 1994, pps 207-208

 

 

[ix]"O discurso do acontecimento", Estratégias da Comunicação, Adriano D. Rodrigues, ed. Presença, Lisboa, 1990, p.107. Ver à frente, cap.V s/ As formas de mediação e consumo, ponto 1.3 - A força dos media

 

 

[x]"O triunfo do tempo irreversível é também a sua metamorfose em tempo das coisas, porque a arma da sua vitória foi precisamente a produção em série de objectos, segundo as leis da mercadoria." Guy Debord, A Sociedade do Espectáculo, ed.mobilis in mobile, Lisboa, 1991, p.117

 

 

[xi]O modo como o objecto é tornado virtual pela sua desindexação temporal. Pode ser um edifício ou um quadro que, de facto têm uma data de criação mas que acabam por ser presentes apenas num presente — o do momento da exposição — e num futuro que lhes é outorgado pelas garantias de preservação.

 

 

[xii]Max Weber, A Ética Protestante ou o Espírito do Capitalismo,ed. Presença, 1982, p.97

 

 

[xiii]Que se poderia denominar "ascendente" e/ou "progressista", teleológica.

 

 

[xiv]Que se poderia denominar "descendente" e/ou "arquetipada".

 

 

[xv]Uma "con-fusão" que J-F Lyotard denominou experiência pós-moderna. Ver A Condição Pós-moderna, J-F Lyotard, ed. Gradiva, Lisboa, 1981

 

 

[xvi]Um dos retratos que ficou na História e pelo menos no campo literário, foi o 1984 de Orwell que, apesar do seu vector alegórico à União Soviética de Estaline, conseguia retratar demasiados mundos concentracionários vigentes nessa altura. Outro, menos específico, mas mais ocidental foi o Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley que, de algum modo, retratou a projecção de toda a técnicalidade e racionalidade ocidentais num futuro não muito lonjínquo.

 

 

[xvii]Um outro investigador aborda mais recentemente esta questão do desencantamento do mundo de outra forma, mas sem fugir à referência weberiana. Marcel Gauchet, frente ao eixo central que a magia ocupa no quotidiano social do modelo de Weber, propõe o "esgotamento do reino do invisível — a reconstrução do ser/estar dos homens, fora da dependência divina". Para Gauchet, a relação entre o protestantismo e o capitalismo seria apenas uma parte de um movimento mais abrangente que englobaria a história de todo o cristianismo; a Idade Média é aqui central e a Contra-Reforma tão importante como a Reforma que levam Gauchet a deslocar o modelo de Weber, do económico para o político. Também perspectivando em termos de análise histórica, as questões que para Weber são éticas, são para Gauchet imediatamente políticas. Mas há um acordo que se observa na continuidade espiritual entre o ascetismo da Idade Média monacal e o ascetismo protestante (em Weber)

Ver  Le Désenchantement du monde. Une histoire

politique de la religion, Gauchet, Marcel, Gallimard, Paris, 1988.

 

 

[xviii]Hannah Arendt recorre à Crítica do Juizo de Kant para explicar esta impossibilidade da recepçïo genuina na individualidade. É a força da capacidade teleológica do ouvinte que é reclamada, ser capaz de pensar no lugaro do outro, aquilo a que Kant chama uma "mentalidade alargada". Há, de facto, toda uma noçïo pública do acto de receber, a implicaçïo da existência de um acordo potencial com o outro acerca dos juizos e dos pressupostos desses juizos acerca da obra. Seria mesmo possível afirmar que existe uma perspectiva negocial neste estar-em-escolha que deve antecipar a comunicaçïo com o outro no momento do juízo, acordo sem o qual se perde toda a validade específica desse juizo.

"Comme la logique, pour être saine, réclame la présence de soi-même, le jugement, pour être valide, réclame la présence d'autrui. Dès lors, le jugement est doué d'une certaine validité specifique, mais il n'est jamais universellement valide. Ses droits à la validité ont toujours pour limites ces autres à la place desquels la personne qui juge s'est mise pour faire ses considérations.(...)

in  La Crise de la Culture, Hannah Arendt, ed. Gallimard, Paris 1972/92  p.282

 

[xix] Estética Musical, Carl Dalhaus, ed.70, Lisboa 1991, p.16 or. "Musikasthetick" ed. Laaber-Verlag

 

[xx]Le Chant de la Terre: Heidegger et les Assises de l'Histoire de l'être, Michel Haar, Paris, L'herne, 1985, citação extraída de Analítica da Actualidade, José Bragança de Miranda, ed. Vega, Lisboa, 1994, p.57.

 

 

[xxi]"As primeiras tentativas renascentistas de Alberti e Leonardo para a construção de uma ciência da pintura, são um passo fundamental na História da Arte, para a consideração da Arte como actividade intelectual, dirigida à experiência sensível, mas de alcance cognitivo...."

"Experiência estética e estetização da experiência", Cruz, T. , A Experiência Estética, , Revista de Comunicação e Linguagens, ed. Cosmos, Lisboa, 1991, p.58

 

 

[xxii]"A esteticização corresponde a uma dupla orientação, cuja raiz comum é a preeminên­cia do sujeito. Em primeiro lugar, a confusão entre estética e sensibilidade (ou sentimento), deslize de sentido que aproveita o facto de em grego aesthesis corresponder a sensação. Em segundo lugar, e dada por assente esta conotação, a constituição da disciplina de estética (ou de história de arte, etc.), trata‑se de um fenómeno recente, ligado à institucionalização discursiva da modernidade. Como afirma Miehel Haar: «A 'estética' no sentido restnto e de origem metaf ísica recente: ela data de Kant e repousa sobre a 'sensação ' do sujeito, que experimenta o prazer puro e desinteressado do jogo das suas faculdades. Ela não tem sentido senão como 'prazer de reflexão' subjectiva. Esta estética acha‑se duplamente posta em questão no seu principio pelo pensamento heideggeriano da arte. Este pensamento recentra a reflexão sobre a própria obra, às custas do subjectivismo, é verdade, mas também à custa do 'prazer' que, seja qualfor o seu sentido, deveria ser reconhecido como tal, e contudo não o é. Fica assim abalado, ao mesmo tempo, o primado da fruição inte­lectual do sujeito‑espectador soberano, e o primado do artista, do 'criador' e seus estados de criatividade a que o subjectivismo atribui a origem absoluta da arte» . A esteticização da experiêneia corresponde, enfim, a um projectualismo simétrico do iluminista/sobre esta questão, ef. Simón Marehán Fiz: La Estética en la Cultura Modema (1987) e a uma forma de discursivização da experiência, a uma «utopia», ou àquilo a que Terry Eagleton chama a «ideologia do estético» , cujos efeitos são a perda de autonomia da ética, da política, mas também da estética. Acrescente‑se ainda que de um ponto de vista histórico, o esteticismo é inseparável do discurso da decadência que caracterizou a passagem do século XIX para o nosso.

Analítica da Actualidade, Bragança de Miranda, J.B., §20, ed. Vega, Liboa, 1994, p. 57

 

 

[xxiii]Ver  "Analítica do Sublime" §23. Crítica da Faculdade do Juízo, Kant, I., ed. INCM, Lisboa, 1992, p.137 e p. 143.

 

[xxiv] Curiosamente, a posição do criador-artista-produtor não mudou assim tanto desde a idade média, num sistema de mecenato directo em que o mecenas que encomendava a obra podia decidir de que género ela seria e qual o destino a dar-lhe depois de concluída. Hoje, o artista continua a queixar-se da completa impotência sobre as suas obras, o seu destino e as suas leituras (recepção), e por vezes até sobre o espaço de criação-produção a que se sujeita.

 

[xxv]Nesta altura, no início deste processo, talvez apenas a vontade de constituição de um ghetto?

 

[xxvi]Traduzido de "Kunst als Kompensation ihres Endes", Marquard, O. , in Kolloquium Kunst und Philosophie 1. Aesthetische Erfahrung, Schoeningh, UTB, Munchen, 1981, p.161, extraído de "Experiência estética e estetização da experiência", Cruz, T. , A Experiência Estética, , Revista de Comunicação e Linguagens, ed. Cosmos, Lisboa, 1991, p.59

 

 

[xxvii]"Le Marché des biens simboliques" ,Les Regles de l'Art, Pierre Bourdieu, ed. SEUIL, Paris, 1992, p.239,244.

 

 

[xxviii] Aqui no sentido da disposição da alma à abertura às impressões e sentimentos que a podem tocar, antes de qualquer envolvimento do logos. Tudo isto porque o pior estado para que se pode resvalar é o da apatheia, tão contaminante como o seu inverso.

 

 

[xxix]ibidem, Anthony Giddens, p. 33

 

 

[xxx]No sentido da facilidade com que é requisitada qualquer rede de envolvimento emocional que possa, no jogo da persuasão, prender o sujeito.

 

 

[xxxi]"A emoção é a porta de entrada para penetrar no mundo do audiovisual. Quer se esteja a ver televisão ou a criar um anuncio publicitário deve-se, primeiro, deixar-se prender, vibrar com."

Cultura e Linguagem dos Media,- "o sentir vem primeiro", Pierre Babin, ed. Bertrand, Lisboa, 1993, p.13 

ver ainda "A formação do sentir" p.36, "Da importância do ground"-p.46, "Dramatizar" -p.65, "Como funciona a adesão" p.164

 

 

[xxxii]"A potência da imagem não depende de uma pré-linguagem; está vinculada, em primeiro lugar à paixão do sentido (...) Não cabem em nenhuma lógica de classificação, não estão lá para completar as referências da situação de comunicação; exprimem sua plenitude absoluta. A virulência das imagens passa a investir as manifestações afectivas. Feições, olhares, lugares surgem não como lembranças, mas como imagens contagiosas cuja intensidade afasta qualquer objectivação. mesmo se são estereotipadas, é porque o estereótipo carrega uma considerável emoção tornada inconfessável. Esta forma passional e contagiosa da imagem é um segredo da troca que a vontade de comunicação extermina. Afirmamos estar numa civilização moderna da imagem, damos como exemplo a extraordinária proliferação das imagens televisivas, reivindicamos a produção absoluta da imagem através das imagens de síntese ou das imagens digitalizadas... mas o poder emocional da imagem ultrapassa a comunicação pela imagem."

Ardis da Comunicação, H-P Jeudy, ed. Imago, Rio de Janeiro, 1990, pps 40-41

 

 

[xxxiii] Sobre isto, ver, "Da possibilidade da comunicação da experiência", em Comunicação e Cultura, Rodrigues, A.D., ed. Presença, Lisboa, 1994, p. 96.

Ver, igualmente, Rationalité et Cynisme, Bouveresse, J. , ed. Minuit, Paris, 1984.

 

 

[xxxiv]"O movimento emocional, irruptivo, pode parecer inerente à linguagem, à sua articulação; ele introduz imagens de um modo independente de qualquer domínio eventual do sentido.(...)Na linguagem poética, o "ver como" é talvez "a relação intuitiva que mantém juntos o sentido e a imagem", mas no movimento emocional mais corrente, este "ver como" também desaparece, esquivando-se a imagem a qualquer possibilidade de ser enunciada."

ibidem, p.45

 

 

[xxxv]ibidem p.45

 

 

[xxxvi]Entre a modelação de duas lógicas diferentes e, até certo ponto, exclusivas, o trabalho de patrimonialização encontra-se por vezes baralhado. Por um lado a racionalidade objectivante e conservadora do objecto-em-si, primeiro tecnicamente "pasteurizado" para consumo integral da sua autenticidade devidamente documentada e definida de uma vez por todas. Por outro lado, a necessidade e a tentação de agarrar mais e melhor público por uma lógica oposta, que passa precisamente pela imagem invasiva, se possível a emoção reverberante, o embrulho mais capaz de atrair o sujeito, mesmo ao preço de algumas amolgadelas na lógica anterior.

 

[xxxvii]Sobre a autonomização e operação do campo jurídico, ver "A força do Direito. Elementos para uma sociologia do campo jurídico" em O Poder Simbólico, Pierre Bourdieu, ed. Difel, Lisboa, 1989, p. 209

 

 

[xxxviii]Analítica da Actualidade, José Bragança de Miranda, ed. Vega, Lisboa, 1994, p.90.

 

 

[xxxix]"...o jurídico constitui um segundo procedimento de estabilização da crise moderna, lado a lado com a técnica. Neste caso a sua escrituralidade é manifesta, funcionando a partir de estratégias de normativização que se assemelham às regras técnicas(...)com a diferença de que o direito serve de matriz para o enquadramento escritural de todas as instituições. Na verdade, tal como se definiu a sociedade moderna pela técnica, também seria possível demosntrar que ela é "uma sociedade jurídica", como defende Pietro Barcelona em "Il giuridico nella constituzione del moderno"(...)teria toda a pertinência elaborar sobre o jurídico um caminho argumentativo similar ao que apresentámos sobre a técnica. Enquanto ésta tende para a criação de um dispositivo de instrumentalidade, o jurídico desenvolve um dispositivo de normalização/normativização..."

ibidem, Analítica da Actualidade, p.143, 165.   O conflito entre estes dois campos, que têm já zonas de fusão, acontece no momento de decidir sobre qual determina qual. Obviamente, a observação e desenlace desta questão daria mais uma tese. Sobre isto ver Legitimação pelo Procedimento, Niklas Luhman, ed. Un. de Brasília, Brasília, 1980;

"A Sociologia dos Tribunais e a Democratização da Justiça", em Pela Mão de Alice, Boaventura Sousa Santos, ed. Afrontamento, Porto, 1994, p.141-163;

Sociologie du Droit, Max Weber, ed. PUF, Paris, 1986.

 

 

[xl]ibidem, Analítica da Actualidade, p. 164

 

 

[xli]Esta questão será retomada no último capítulo deste trabalho.

 

 

[xlii]Para lá de todas as publicações da UNESCO sobre este tema, que podem facilmente ser encontradas, quando não esgotadas (no nosso país na Livraria Portugal e na agência de publicações da UNESCO na Av. Infante Santo em Lisboa), um dos melhores artigos recentes que se pode encontrar sobre o Direito da Propriedade Cultural, embora dentro do sistema legal britânico, é da autoria de Norman Palmer, Museums and Cultural Property, e esmiuça uma generalidade de aspectos práticos e doutrinais onde se envolve a questão do Direito de propriedade de bens culturais, particularmente por parte dos museus que passam por actos de descoberta de bens, aquisição, transacções, tutela, custódia, conservação, exibição e empréstimo.  ver "The New Museology", ed. Peter Vergo - Reaktion Books, London, 1989, pps 172-204.

 

 

[xliii]L'Allégorie du Patrimoine, Françoise Choay, ed. SEUIL, Paris, 1992. Ver Le temps des antiquaires. Monuments réels et monuments figurés, p.51,  e La consécration du monument historique.1820-1960. p.96

 

[xliv]Ver Le Culte Moderne des Monuments, Riegl,A., ed. SEUIL, Paris, 1984

 

 

[xlv]Françoise Choay faz no seu livro uma referência interessante relativamente à hipótese de Riegl ter sido influenciado por Ruskin no que diz respeito à "piedosa atenção" que o monumento deve merecer. É claro que estamos ainda aqui numa fase ética da discussão acerca do género do olhar. Ver L'Allégorie du Patrimoine, Françoise Choay, ed. SEUIL, Paris, 1992, p.130,131.                                                                                                      

 

[xlvi]A descrição que a seguir fazemos é praticamente toda sintetizada e comentada a partir do texto de Françoise Choay - L'Allégorie du Patrimoine, ed. Seuil, Paris, 1991, p. 112 e segs.

 

 

[xlvii]"A côté de Victor Hugo, Montalembert, Victor Cousin, le baron Taylor en fut une des figures les plus originales et les plus actives.

ibidem, L'Allégorie du Patrimoine, p.112.

 

 

[xlviii]ibidem, L'Allégorie du Patrimoine, p.114

 

 

[xlix]Cabe-nos, desde já referenciar a ajuda imprescindível, neste ponto, do Dr. Mário Pereira do IPAAR, que nos ajudou na referência e acesso a vários documentos essenciais, tanto nacionais como estrangeiros, em particular, os dos organismos internacionais de tutela do património, igualmente utilizados noutros pontos deste trabalho.

 

[l]Que acaba por ser um alargamento do conceito de património da altura que, para lá dos Edifícios, engloba igualmente "Estatuas, Marmores, Cippos, Laminas, Chapas, Medalhas, Moedas, & outros artefactos".

 

 

[li]0 Panorama, respectivamente nos nº 69 e 70 de 1838, p. 266‑268 e 275­277; e n° 93 e 94 de 1839, p. 43‑45 e 50‑52

 

 

[lii]Este termo é criado, e pela primeira vez empregue, pelo abade Gegório que "avait pour la première fois lancé le terme "vandalisme" et denoncé comme contre-révolutionnaires les atteintes désordonnées aux oeuvres d'art de tout genre; mais c'est le rapport - bien tardif - de l'été 1794 qui a définitivement acclimaté la notion de vandalisme comme atteinte criminelle au patrimoine." em "La Notion de Patrimoine", André Chastel, Les Lieux de Mémoire, La Nation II, ed. Gallimard, Paris, 1986, p.414.

Ver, igualmente, "L'origine du terme de vandalisme", Histoire du Vandalisme, Reau, L., ed. Robert Laffont, Paris, 1994, p.9.

 

[liii]"0s Monumentos", in O Panorama, vol. II, (69), 1838, p. 267.

 

 

[liv]"Monumentos II", in O Panorama, vol. II, (70), 1838, p. 276

 

[lv]"Mais um Brado a Favor dos Monumentos II", in O Panorama, vol. IV, (94), 1839, p. 50. Ramalho Ortigão (op. cit., p. 24) referir‑se‑ia, também, à "auctoridade, incerta, vagamente definida, a quem tem sido confiada a conservaçao e a guarda da nossa archítectura monumental, procede com esse enfermo, de quem se incumbiu de ser o enfermeiro, por dois methodos differentes: umas vezes deixa‑o morrer; outras vezes, para que elle mesmo não tome essa resolução lamentável, assassina‑o".

 

[lvi]"Monumentos II", in 0 Panorama, vol. II, (70), 1838, p. 27.

 

[lvii]"Monumentos II", in O Panorama, vol. II, (70), 1838, p. 277.

 

 

[lviii]"Mais um Brado a Favor dos Monumentos II", in O Panorama, vol. IV, (94), 1839, p. 51

 

[lix]Ver, a propósito, a Relação dos Monumentos Nacionaes e padrões historicos e commemorativos de varões ilustres, apresentada em 1880 pela Associação dos Arquitectos e Arqueólogos Portugueses. Segundo Custódio (op. cit., p.50) esta listagem "manteve‑se como elemento de consulta e referência até aos princípios do século XX, nunca chegando, na prática a ser aprovada oficialmente". Nela os monumentos foram divididos em seis classes:

1ªclasse: Monumentos hístoricos e artísticos, e os edifícios que sómente se recommendam pela grandeza da sua construção, pela sua magnificencia, ou por encerrarem primores da arte. São o caso, entre outros, dos Mosteiros de Santa Maria (Alcobaça), Nossa Senhora de Belém (Belém), de Santa Cruz (Coimbra), mas também o Aqueduto das Águas Livres, como "um dos mais notáveis monumentos d'arte em Portugal" (p. 4).

2ªclasse: Edifícios importantes para o estudo da historia das artes em Portugal, ou sómente historicos, mas não grandiosos, ou simplesmente recommendaveis por qualquer excellencia da arte. Entre outros, o antigo colégio dos jesuitas e os restos dos paços reais (Évora), a igreja do convento de Jesus (Setúbal), vários túmulos, como o de D. Afonso Henriques, 1° duque de Bragança (Chaves) e os sepulcros romanos de Panoias (Penafiel), mas também aquedutos (Coimbra, Elvas, Évora, Tomar e Vila do Conde).

3ªclasse: Monumentos da arte militar antiga. Castellos e torres. Sitos em trinta e seis localidades e "allem d'estes, muitos outros, em melhor ou peor estado, mas devendo todos ser conservados como padrões da historia e da arte militar em tempos antigos" (p. 14)

4aclasse: Monumentos levantados em logares publicos pela gratidão nacional, em honra de homens que bem mereceram da pátria.

5ªclasse: Padrões de mui differentes generos importantes para a historia e para as artes. Padrões commemorativos de feitos gloriosos, ou de acontecimentos notáveis; algumas casas que serviram de residencia a grandes vultos historicos ou literarios; alguns mausoleus de valia historica ou artistica, e que se abrigam em templos, que nao sao incluidos nas classes antecedentes; certos pelourinhos e cruzeiros de merecimento artistico; cippos, columnas miliarias e outras memorias epigraphicas.

6ªclasse: Monumentos prehistoricos. Nomeadamente, dolmens ou antas, menhirs, mamunhas, etc."

 

[lx]Ver O Archeólogo Português, 1a série, vol. II, 1896, p. 237‑238.

 

[lxi]São considerados obras de arte ou objectos arqueológicos, as esculturas, pinturas, gravuras, desenhos, moveis, peças de porcelana, de faiança e de ourivesaria, vidros, esmaltes, tapetes, arrases, tecidos, trajos, armas, peças de ferro forjado, bronzes, joias, leques, instrumentos musicais, manuscritos iluminados, medalhas, moedas e, como diz o texto, "todos os objectos que possam constituir modelo ou representar ensinamento para os artistas, ou sejam dignos de figurar em museus públicos de arte, e todos aquelles que, pelo seu valor documental, ou pelas recordações ou tradições, mereçam o qualificativo de históricos"

 

[lxii]Circular nº1, Secretaria Geral/Ministério da Instrução Pública, 17 de Maio de 1915, in Diário do Governo, nº122, 2ª série.

 

 

[lxiii] ibidem, Circular nº 4.

 

 

[lxiv]em A estrutura administrativa do Estado e o património cultural,Luis Raposo, Vértice, nº54, 1993, p.38-45. Aqui se encontra também uma síntese interessante da Perspectiva histórica: da Monarquia aos anos 80.

 

 

[lxv]0 seu primeiro director, Henrique Gomes da Silva, apresentaria em 1934 a sua tese "Monumentos Nacionais; orientação técnica a seguir no seu restauro" ( Boletim da Direcçao Ceral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. A Igreja de Leça do Bailio, Lisboa, Ministério das Obras Públicas e Comunicaçoes, Set. 1935, (1), p. 19‑20), onde se lê:

1)Importa restaurar e conservar, com verdadeira devoção patriótica, os nossos Monumentos Nacionais, de modo que, quer como padrões imorredouros das glórias pátrias que a maioria dêles atesta, quer como opulentos mananciais de beleza artística, êles possam influir na educação das gerações futuras, no duplo e alevantado culto de religião da pátria e da arte;

2)0 critério a presidir a essas delicadas obras de restauro não podetrá desviar‑se do seguido com assinalado êxito, nos últimos tempos, de modo a integrar‑se o monumento na sua beleza primitiva, expurgando‑o de excrescências posteriores e reparando as mutilações sofridas, quer pela acção do tempo, quer por vandalismo dos homens;

3)Serão mantidas e reparadas as construções de valor artístico existentes, nitidamente definidas dentro de um estilo qualquer, embora se encontrem ligadas a monumentos de caracteres absolutamente opostos".

em Re-viver o passado, Paulo Ramos, ed. polic. dissert. mestrado Un. Aberta, p. 29.

 

 

[lxvi] A estrutura administrativa do Estado e o património cultural, Luis Raposo, Vértice, nº54, 1993, p.38-45.

 

 

[lxvii]Nuno Teotónio Pereira e José Manuel Fernandes, "A Arquitectura do Fascismo em Portugal", in O Fascismo em Portugal. Actas do Colóquio realizado na Faculdade de Letras de Lisboa em Março de 1980, Lisboa, A Regra do Jogo, 1982, p. 550.

 

 

[lxviii]Vital Moreira, "O II Encontro das Associaçoes de Defesa do Património", in Vértice, 41 (440‑441), Jan.‑Abr., 1981, p. 86‑89.

 

[lxix]"Mas esta não era a preocupação maior dos políticos e da maior parte dos técnicos da área da Cultura. Em obediência a um conhecido princípio, que já fez vender muitos livros ao seu autor, julgavam que a solução de todos os problemas poderia vir do simples aumento da máquina administrativa do Estado nesta área e do peso maior, que em consequência, pudessem obter. Foi isso que tentaram logo em 1977, com a criação da Comis­são Organizadora de um hipotético Instituto de Salvaguar­da do Património Cultural e Natural, morto à nascença, pela consciência que entretanto crescia quanto às espe­cificidades de ambos aqueles tipos de património. E foi isso que conseguiram em 1980, quando no âmbito da reestruturação da Secretaria de Estado da Cultura (Dec-lei nº 59/80 de 3 de Abril), se cria o Instituto Português do Património Cultural IPPC (Dec. Regulam. nº34/80 de 2 de Agosto), verdadeira Erro! A origem da referência não foi encontrada. dos anos 80."

em A estrutura administrativa do Estado e o património cultural, Luis Raposo, Rev. Vértice nº54, Lisboa, 1993.p.40

 

[lxx] in ibidem A estrutura administrativa do Estado e o património cultural, Luis Raposo, Rev. Vértice nº54, Lisboa, 1993. p.41

 

 

[lxxi]Esta questão foi já abordada n'a "estabilização do jurídico" no Cap. III.

 

 

[lxxii]Património Urbano, perspectiva jurídico-positiva, Joäo Vaz Rodrigues e Miguel dos Reis Pedroso de Lima, in Economia & Sociologia, nº53,  ed. ISESE, Évora, 1992, p.25

 

[lxxiii]Patrimonio Historico Español, ed. editorial civitas, Madrid, 1988, p.15-16

 

 

[lxxiv]"I. De la declaración de Bienes de Interés Cultural;

II. De los bienes inmuebles;

III.De los bienes muebles;

IV. Sobre la protección de los bienes muebles e inmuebles;

V.  Del Patrimonio Arqueológico;

VI. Del Patrimonio Etnográfico;

VII.Del Patrimonio Documental y Bibliográfico y de los Archivos, Bibliotecas y Museos;

VIII.De las medidas de fomento;

IX. De las infracciones administrativas y sus sanciones."

 

 

[lxxv]Algo que a lei espanhola também consigna em pormenor, através do Real Decreto 111/1986 de 10 de Janeiro, "de desarrollo parcial de la Ley 16/1985, de 25 de Junio, del Patrimonio Histórico Español. Este decreto não só prevê as formas de constituição dos orgãos colegiais como das juntas de qualificação e instituições consultivas. Regulamenta ainda ainda todos os instrumentos administrativos que vão da "Declaración de Bien de Interés Cultural à Exclusión de bienes del Inventario General". Regulamenta igualmente a transmissão e exportação de bens patrimoniais tal como as medidas de fomento à conservação patrimonial.

 

 

[lxxvi]Património, Informar para Proteger, ed. IPPAR, Lisboa, 1994, p.17

 

[lxxvii]"ditos", no sentido em que assim são situadas e cristalizadas as áreas a administrar por um determinado género de estratégia de poder e gestão, conforme o campo em que actuam e o género de contextos situacionais que encontram e criam..

 

[lxxviii]Atenção que é desperta, para qualquer poder político minimamente perspicaz, pela percepção de uma qualquer nova via de acesso a um sector do eleitorado, eventualmente indispensável à sua manutenção.

 

[lxxix] Esta asserção poderá ser acusada de "má fé". No entanto, a sua negação só pode ser estabelecida após a observação atenta de um processo decisional no campo político; isto é, tentando responder sucessiva e exaustivamente, nas diversas situações e contextos, à questão de saber por onde passa o alinhamento dos privilégios das diversas decisões; pela linha estratégica e instrumentalmente mais útil à manutenção do poder administrante ou, do outro lado, pela decisão mais correcta em termos culturais e patrimoniais? Encontrar-se-á algum esforço para fazer coincidir/juntar/equilibrar os interesses ou, será que a maior parte das decisões são exclusivas?

 

 

[lxxx]Esta é, aliás, outra das vertentes paradoxais para quem observa esta "sociedade do lixo" ("rubbish society") em que a necessidade de corporizaçäo da técnica e mesmo de algumas ideias em objectos técnicos,faz emergir o problema visível da sua destruiçäo e do desperdício. Isto porque o problema mais candente, o do entrosamento dos imateriais no quotidiano do social, só agora se começa a notar e a analisar de um modo diferente e quase escatológico.  "De um ponto de vista ainda muito geral, verifica-se que na técnica se chocam duas tendências opostas, a saber 1) a sua capacidade de corporizaçäo e repetiçäo criadora de automatismos de todo o género; e 2) a sua expressäo em processos morfogenéticos e relativamente indeterminados, o que lhe confere um carácter combinatório e arbitrário. Durante milénios de cultura, tem-se voltado preferencialmente a atençäo para o primeiro aspecto e, muitas das críticas à técnica têm-se centrado na corporeidade dos objectos técnicos, seja como produzi-los, seja como destrui-los.(...) No fundo, as ruínas desse tipo muito particular que säo os objectos técnicos, os seus restos inservíveis, a sua imensa acumulaçäo numa "rubbish society" que os faz circular entre o lixo e o museu, sempre se prestaram ao jogo humanista que separa a técnica dos seus objectos para melhor poder controlar a sua estranheza, isto é, humanizar a técnica. Näo é possível, porém, qualquer análise da técnica separando-a dos seus objectos, o mesmo é dizer, da sua expressäo corporizada no mundo da experiência. Se separaçäo há, provém de uma tendência da própria técnica que, depois de um longo caminho para a perfeiçäo, estaria a assumir a sua forma maximamente perfeita, a da "imaterializaçäo".(...)Thompson (Rubbish Theory The Creation and Destruction of Value, 1979, ed.    ) critica a ideia vulgar de que "os objectos säo o que säo devido às suas propriedades intrínsecas" mostrando como se inserem nas estratégias axiológicas da sociedade. Neste sentido, distingue entre objecto duradouros e objectos passageiros, mediados pelos "objectos rubbish", que ocultam a sua objectualidade mas que têm uma funçäo essencial "a categoria rubbish, oculta, näo está sujeita ao mecanismo de controlo (que diz respeito principalmente à parte manifesta do sistema, os objectos com valor e socialmente significantes) e, por isso, é capaz de fornecer o caminho para a aparentemente impossível transposiçäo de um objecto de passageiro para duradouro". O facto de o lixo ter um papel intermediário só se explica pela lógica tecnicista de produçäo-destruiçäo dos objectos, num momento em que a destruiçäo tende a ser mais custosa que a produçäo (a própria publicidade funciona aqui como um mecanismo para acelarar a destruiçäo). Como é evidente, tal situaçäo tem efeitos a todos os níveis e um dos mais reveladores é o da estética, onde o "lixo", depois de nomeado à la Duchamp, se torna valioso, o que implica uma transformaçäo radical das categorias estéticas.(...)" in 5.4 - A técnica como matriz dos procedimentos de estabilizaçäo da experiência, Fundamentos de uma Analítica da Actualidade, Bragança de Miranda, J. Augusto Bragança, policop. tese de doutoramento em Comunicaçäo Social na Universidade Nova de Lisboa, 1990, p.546-547.

 

 

[lxxxi]Mémoires du Social,  Jeudy,H-Pierre, PUF, Paris, 1986, p. 7,8,9

Testemunho do que Jeudy afirma, mas a nível nacional, é o que a seguir se diz: "Talvez näo se tenha ainda reflectido o bastante no facto exemplar de que a proliferaçäo de museus na época moderna, espelha, com demasiada frequência, muito mais a destruiçäo de culturas e patrimónios humanos, do que a sua preservaçäo; de que esses museus säo também, muitas vezes e simultâneamente o testemunho e o mausoléu de inumeras degradaçöes, acusador de dolorosas prepotências sobre povos e regiöes indefesos ante a espoliaçäo vergonhosa daquilo que constituia para eles o conjunto simbólico e motivador do seu futuro.(...) Uma política que à partida e por si mesma, näo é "cultural", marcada pela cultura do povo a que se destina e a ela subordinada, é uma política dividida e por vezes uma política hipócrita; multiplicará as instituiçöes culturais, seus programas e funcionários, mas estes têm por funçäo compensar, salvar, lamentar, por um lado, o que se desconsidera, se perde, se enterra, por outro (...)"

 

"Estratégia de desenvolvimento e política cultural",  in "Artesanato, cultura e desenvolvimento regional", José Maria Cabral Ferreira,

ed. INCM,  Lisboa, 1981/83,  p.159

 

[lxxxii]"Avec le mouvement dans l'espace, l'homme s'assume de sa maîtrise et de sa liberté(...) Car celui qui se deplacerait d'une place à l'autre en parcourant tous les lieux de l'univers et sans revoir jamais le même lieu, celui-lá surmonterait sans doute, d'une certaine maniére l'unilateralité de son  point de vue local et l'étroitesse de sa finitude(...)"

L'irreversible et la nostalgie, Jankelevitch, V. ed. Flammarion,Paris l979  pps 13 e 14

 

[lxxxiii]"(...)l'imagination a beau se demener, elle reste toujours imanente au temps irréversible, enveloppée dans les fillets du temps irreversible."

ibidem, Jankelevitch, p.22

 

[lxxxiv]Alguém já se ocupou desta questão antes, embora não necessariamente sob esta perspectiva. Boa parte dos trabalhos mais circunstanciados sobre esta reflexão aqui aparece sob a forma de notas, referências ou citaçöes.

 

 

[lxxxv]É necessário aqui referir que, em termos operativos, "arquivo" é sinónimo de "património" no sentido em que  se constitui como o conjunto de acções que levam à produção de um determinado património, passando necessariamente por um tipo de performance que, na sua totalidade, se designa por "arquivo". Emprego-o aqui para que se destaque esse lado mais performativo e sistemático do conjunto de acções que levam à constituição de um património; neste caso, o objecto mais focalizado é a fotografia e o filme   enquanto unidades de arquivo adentro de um campo/universo que se denomina "cinema".

O fenómeno de patrimonialização pode não seguir percursos absolutamente idênticos na generalidade dos objectos, mas acredito sinceramente que existe uma identidade essencial, particularmente nos modos de revelação, contacto e preservação por que passam a generalidade dos objectos patrimonializáveis.

 

 

[lxxxvi]"Ontologie de l'image photographique", André Bazin, Qu'est-ce que le Cinema, ed. du CERF, Paris, 1981, pps 9-17

 

 

[lxxxvii] É o próprio Heidegger que nomeia boa parte dos seus trabalhos com estes sentidos de deambulação "Holzwege, Wegmarken, Unterwegs zur Sprache, Der feldweg ("As veredas da floresta", "Indicadores do caminho", "A caminho da linguagem", "O caminho através do campo"). Segundo George Steiner, este teria sido "um caminhante infatigável em regiões sem luz". in Heidegger, G. Steiner, ed. D. Quixote, Lisboa, 1990, p.25

 

 

[lxxxviii]The Past in Contemporary Society, Then, Now, Peter J. Fowler, ed. Routledge, London, 1991. p.17

 

 

[lxxxix]"De um lado estão as coisas, os objectos úteis, tais como podem ser consumidos ou servir para obter bens de subsistência, (...).De um outro lado estão os semióforos, objectos que não têm utilidade, no sentido que acaba de ser precisado, mas que representam o invisível, são dotados de um significado; não sendo manipulados mas expostos ao olhar, não sofrem usura.(...)"      "Colecção", Einaudi, Memória-História Pomian,K., ed. INCM, Lisboa, 1984, p.71.

Para Krzysztof Pomian, uma colecção é "todo o conjunto de objectos naturais ou artificiais mantidos temporária ou definitivamente fora do circuito das actividades económicas, submetidos a uma protecção especial, num lugar fechado para esse efeito, e expostos ao olhar."                Traduzido de "Collection", Les Notions Philosophiques, J. Tribby, ed. PUF, Paris, 1990, p.352

 

[xc]"Invention et stratégies du Patrimoine", Guillaume, Marc.  Patrimoines en Folie, p. 17.

 

[xci]"L'incorporation est cette progressive assimilation du fonctionnement des objets techniques au fonctionnement des corps. Cette assimilation se double, de maniére spéculaire, par celle du corps à la technique, le vouant à un devenir instrumental. L'imperceptibilité est le point extrême du dispositif, au terme du processus d'incorporation de la technicité. Le fonctionement sous le mode branché et non plus instrumental"(...) in Mémoire et Technique, Adrinano D. Rodrigues, Patrimoines en Folie, p.258.

 

[xcii]"Com os anos oitenta chega um tema que já tinha sido aflorado antes, mas que agora tudo invade: o património e os oito séculos de História e a identidade nacional. Doravante são os políticos que lançam os temas culturais.(...) O que é importante é definir a identidade nacional e a cultura passa a ser um consenso (...)Para quem está no poder é uma base sólida para estabelecer consensos, para pacificar, para contentar, para apresentar obra feita (...) a cultura não é assim tão cara." Eduarda Dionísio, in LER, ed. Circ. Leitores, Nº26, Lisboa,  1994 p.69/70

 

 

[xciii]Paul Willis, por exemplo, observando a evolução e práticas que nas últimas décadas têm envolvido a "arte", retrata assim este estádio de evolução

"These different aspects of institutionalization of art produce the physical organizational and cultural separation of "art", but also the possibiliy of internal "hyperinstitutionalization" of "art" ‑ the complete dissociation of art from living contexts. This is where the merely formal features of art can become the guarantee of its aesthetic, rather than its relevance and relation to real-life processes and concerns religious art installed in the antiseptic stillness of the museum.""Common Culture", Paul Willis, ed. Open University Press, London, 1990, p.2,3

 

[xciv]Compreende-se assim, ao nível da própria Cinemateca Portuguesa, que na sua performance micro-institucional não deixa de assumir uma perspectiva e um "estar" muito  especiais,  as prioridades indo todas para o arquivo e restauro de filmes, tarefa dura e custosa, mas sem a qual nada de subsequente é possível. Não faria qualquer sentido a existência de um "Museu do Cinema Português" que tivesse de registar nos seus quadros o altíssimo nível de obras destruidas e perdidas que ao longo dos tempos continuaria evoluindo pela falta de investimento no arquivo.

 

[xcv]"ce travail sur la mémoire n'est pas seulement celui du deuil, il s'affirme comme une pratique des "morts-vivants". Il se prolonge en une véritable organisation de la reversibilité des signes culturels. L'idée que tout puisse faire retour à tout moment acompagne la restitution des sites et l'accumulation des objets. (...) une gestion des mémoires leur propose de résoudre leur hantise de la destruction nom plus par la simple conservation mais par une compulsion de ré-appropriation de tout ce qui parait mort. Traiter la chose morte comme une chose bien vivante, partageable, interprétable, permet de confondre le passé, le present et l'avenir dans l'unique figure temporelle de la simultanéité. (...) Une étrange pulsion de pétrification outrepasse les plaisirs du spetacle la vie sociale ne fascine plus qu'en étant mimée pour l'accomplissement d'une percepcion dioramatique.(...)"La mémoire pétrifiante, Henri-Pierre Jeudy, "Archives", Traverses/36, pág. 93.

 

 

[xcvi]Ver "O Museu Imaginário", As Vozes do Silêncio, Malraux,A., ed. Livros do Brasil, Lisboa, 197?, pps. 7-124.

 

 

[xcvii]"La petrification libère la parole par le commentaire. La mort y est soustraite, la memoire s'actualise. Tout peut être dit de la chose pétrifiée, mystère et dévoilement ne l'entachent pas puisque son intégrité est devenue temporelle. (...) L'arrêt sur le temps, la fixation du mouvement, sa condensation dans une scène purement statique donnent aussi l'image de la vie parce que la memoire peut passer de la sturéréotypie à l'hallucianation, de la simple reconnaisance de signes culturels à la fantasmagorie.(...) La petrification abolit le temps et l'espace pour laisser libre cours à une mémoire imaginaire dont l'apparente morbidité n'a d'égale que sa candeur à oublier  la tragédie du réel.(...) Le social n'est il que la mémoire de son énonciation? Sa propre légetimité est inscrite dans les seuls programmes de politique culturelle qui le traitent comme un object privilégié et pétrifié. Il ouvre ainsi un champ d'interpretation infini et sur lui peut s'abattre une masse de discurs dès le moment où il assure une function ontologique.

En le considerant (la mort) comme object de memoire, le social est mis en scène de telle sorte que l'acte de la restitution (ou  de la ré-appropration) se suffit à lui-même puisque son object est déjà de l'ordre de la simulation."

ibid. H. P. Jeudy, p. 94

 

[xcviii]"Taxidermista" e porque não, por exemplo "médico"?. Opto pela primeira pelo simples facto de, é minha tese, num futuro próximo todos os suportes/objectos /materiais originais estarem mortos/destruidos. Tal como o "Taxidermista", o técnico do futuro arquivo deverá preocupar-se em manter apenas condiçøes de percepção originais. Será importante que os nossos netos possam ver os filmes feitos pelos nossos avós, não necessariamente nas mesmas condiçøes em que estes os viram (já vimos como tal é utópico) mas pelo menos em idênticas condiçøes de percepção - re-criação próxima da perfeita - pouco importando para o facto, se o écran é de cristal líquido, em vez de pano; se existe ou não projector e projeccionista;  se a banda sonora é ou não reproduzida por altifalantes dinâmicos - desde que o som reproduzido seja idêntico; que o suporte seja de celuloide ou vinil, analógico ou digital, enfim, que a simulação/re-produção seja tendente para o perfeito, em termos substanciais?!

 

[xcix]Estética III - "A Arte  Simbólica ", Hegel, ed. Guimarães, Lisboa        1970 p. 107 

 

 

[c]ver "1.O campo: o saber nas sociedades informatizadas" em A Condição Pós-moderna, Jean-François Lyotard, ed. Gradiva, Lisboa , 1986, p.11-18

 

 

[ci]No sentido em que o próprio Durkheim o observava na dinamica da vida colectiva, em que a sociedade se reconhece como força colectiva projectada nos mitos e formas individualizadas exteriores e objectivadas em determinados corpos/objectos seus representantes.

 

 

[cii]J.B. Miranda refere-se ao abismo aterrorizante dos possíveis abertos na modernidade desencantada e desfundamentada.

in  ibidem Analítica da Actualidade, p. 293

 

 

[ciii]ibidem, Analítica da Actualidade, p. 293

 

 

[civ]Analítica da Actualidade, p. 279

 

 

[cv]ver Mythe et épopée, Georges Dumézil, ed. Gallimard, Paris, 1968.

 

 

[cvi]Le Sacré, Jean-Jacques Wunenburger, ed. PUF, Paris, 1981, p.120.

 

 

[cvii]Ver "Ideology as a cultural system", em The Interpretation of Cultures, Clifford Geertz, ed. Hutchinson, 1975.

 

 

[cviii]Em "O Estado somos nós", numa rúbrica bastante ilustrativa desta questão e a propósito do acesso do cidadão aos processos e decisões administrativas (num caso exposto) no cumprimento de uma transparência processual que já se publicita mas se está longe de instituir, Francisco Teixeira da Mota afirma que em Portugal, ao contrário do que acontece nos Estados Unidos desde 1966,  seria impensável o direito de acesso do cidadïo à informaçïo administrativa; "mas é preciso dizer que o conceito de administraçïo aberta constitucionalmente vigente entre nós tem um conteúdo que ainda nïo foi apreendido (ou "interiorizado") pela administraçïo. O Estado protege-nos, mas também se protege. Muitas vezes está exclusivamente a proteger-se, o que é só justificável em casos extremos e com limites. O Estado continua a ser opaco apesar dos esforços válidos que sïo feitos por determinados departamentos estatais no sentido de criar, pelo menos, um Estado translúcido...   A mudança do Estado passa por leis e por mentes." in Público, Domingo, 13 de Junho de 1993, p.36

 

 

[cix]"Le passé comme l'écologie, devient valeur-refuge. Pour briser l'uniformité et le fonctionnalisme du paysage industriel et des logements, pour les rendre habitables, les débris anciens restent le dernier recours." La Politique du Patrimoine, Guillaume, M., ed. Seuil, Paris 1981, p. 15