O que é a Cultura

 

O conceito de cultura saltou, completamente aramado, da cabeça de Johann Gottfried Herder, nos meados do século XVIII, e tem andado envolvido em batalhas desde então. Para Herder, Kultur, é o próprio sangue vital das pessoas, o fluxo da energia moral que mantém intacta a sociedade. Em contraste, a Zivilisation, é o verniz das maneiras, a lei e técnica. As nações podem partilhar a civilização; mas serão sempre distintas na sua cultura, uma vez que a cultura define o que elas são.

Esta ideia desenvolveu-se em duas direcções. Os românticos alemães (Schelling, Schiller, Fichte, Hegel, Holderlin) construíram a cultura à maneira de Herder, como a essência que define uma nação, uma força espiritual partilhada que se manifesta em todos os costumes, crenças e práticas de um povo. Segundo eles, a cultura dá forma à linguagem, à arte, à religião e à história, deixando o seu carimbo no mais pequeno acontecimento. Nenhum membro da sociedade, por mais mal educado que seja, está desprovido de cultura, uma vez que cultura e pertença social são a mesma coisa.

Outros, mais clássicos que os românticos, interpretaram a expressão no seu significado a partir do Latim. Para Wilhelm von Humbolt, fundador da universidade moderna, a cultura estava associada não ao crescimento natural mas ao seu cultivo. Nem todos a possuiriam, uma vez que nem todos tem o tempo, a inclinação ou a habilidade para aprender o que é preciso. E entre as pessoas cultivadas, umas são mais cultas que outras. O objectivo de uma universidade é a preservação e destaque da herança cultural, e a sua passagem à geração seguinte.

As duas ideias ainda estão entre nós. Os primeiros antropólogos adoptaram a concepção de Herder, e escreveram acerca da cultura enquanto práticas e crenças que forma a identidade de uma tribo. Todos os membros da tribo possuem a cultura dado que é isso que é preciso para se ser membro. Mathew Arnold e os críticos literários que conseguiu influenciar (incluindo T.S.Eliot, Leavis e Ezra Pound) seguiram Humboldt no tratamento da cultura como propriedade de uma elite educada, um objectivo que envolve estudo e intelecto.

Para evitar confusões, tenho que distinguir a  "cultura comum" que é o que os antropólogos descrevem, da "alta cultura", que é uma forma de "expertise" (domínio pericial). Isto não nos diz o que é a "alta cultura", se é uma ou muitas coisas, ou mesmo se é o grande valor que Arnold e seus amigos acharam que deveia ser.  (...) Quanto a mim, acho que a alta cultura da nossa civilização envolve conhecimento que é muito mais significante do que seja o que for que se possa apanhar através dos canais da comunicação popular. Esta é uma crença difícil de justificar, e ainda mais difícil conviver com ela; de facto, nada tem que a recomende ou garanta, para além da sua verdade.

Estas duas concepções de cultura têm andado embrulhadas em controvérsia até aos nossos dias. Dos restos das suas batalhas nasceu uma terceira concepção. A "cultura comum" de uma tribo é um signo da sua coesão interna. Mas as tribos estão a desaparecer do mundo moderno, tal como todas as formas tradicionais de sociedade. Os costumes, as práticas, festivais, rituais e crenças adquiriram todos uma qualidade meio fluida e fraquejante que reflecte a nossa existência nómada e desenraizada, apanhados que estamos pela ondas atmosféricas globais. Apesar disto, e apesar de todas as conveniências dos nossos dispositivos economizadores de trabalho que nos dispensam da relação com outras pessoas, os habitantes das cidades actuais são seres tão sociais como eram os antigos homens das tribos. São incapazes de viver em paz até estarem completamente habilitados por uma identidade social, uma porta para o exterior que, ao representá-los perante os outros, lhes oferece a confiança neles próprios. Esta busca da identidade cobre toda a vida contemporânea. Apesar de ser algo fluido e poder mudar de direcção várias vezes durante o tempo de uma vida, tem muito em comum com a relação de pertença de um homem da tribo à sua cultura comum. O cultivo da identidade é um modo de "ser-para-os-outros", falando em termos existencialistas, um modo de reclamar um lugar no espaço público. Ao mesmo tempo, é um modo assente na escolha, gosto e lazer; é alimentado pela arte popular e pelo entertenimento; num sentido mais amplo, é um trabalho da imaginação. Nestes termos, parece-se  com a alta cultura de uma tradição literária e artística.

Esta terceira concepção de cultura - cultura popular, como se lhe pode chamar - tornou-se um tema familiar da sociologia. Ela define a matéria central dos "cultural studies" - uma disciplina académica fundada por Raymond Williams com o objectivo de substituir o Inglês académico. Williams era um crítico literário; mas as suas simpatias egualitárias forçaram-no a rebelar-se conta a tradição elitista da escola literária. Ao lado da cultura de elite das classes superiores, dizia ele, sempre existiu outra, em nada inferior, uma cultura do povo, através da qual o povo afirmou a sua solidariedade face à opressão e na qual exprimem a sua identidade social e o seu sentido de pertença. O anti-elitismo de Williams abriu uma porta, e o conceito de cultura estendeu-se à descrição das formas de arte popular e entertenimento na contemporaneidade. Como resultado desta ampliação académica, o conceito começou a perder a sua especificidade. Qualquer actividade ou artefacto são considerados culturais, uma vez que são produtos formadores de identidade e interacção social.

A cultura popular apresenta dois géneros: herdada e adquirida. A globalização tem levado a uma extinção da cultura herdada (folk) na Europa e na América, tendo esta vindo a ser substituída por uma misturada comercial vendida pelos media. Algumas partes da cultura popular (folk) - particularmente a música - tornou-se material de uso corrente para a grande arte, reaparecendo de forma transfigurada em Bartok, Vaugham, Williams, ou Copland. O resto mudou o seu carácter de tradição herdada para "património" comercializado, e agora expõe-se em vitrinas no museu popular. As pessoas hoje podem encantar-se com os costumes populares, os festivais e as danças; mas eles não encontram a sua identidade nestas coisas - o que é outra maneira de dizer que a cultura popular está morta. O "Folk" é agora um estilo dentro da música pop, mas um estilo sem raízes fundadas em qualquer  comunidade herdada.

A ideia de cultura em Herder é "particularista". A cultura é definida como algo separado - uma ilha de "nós" no oceano de "eles". A concepção de Humboldt é "universalista": a pessoa culta, para Humboldt, olha a humanidade como um todo, conhece a arte e a literatura de outros povos, e simpatiza com a vida humana em todas as suas mais altas formas e aspirações. Porquê utilizar a mesma palavra para designar duas ideias tão conflituosas?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 (...) O meu método, no que a isto diz respeito, pode chamar-se arqueológico.Tentarei explorar os estratificação da consciência moderna, alguma muito antiga e geológica, outra mais recentemente depositada e ainda a fermentar. Começarei por considerar a cultura comum e o seu lugar na vida da tribo. Talvez seja um pouco excentrico começar deste ponto, mas sê-lo-á começar por qualquer outro ponto. É que aqueles que normalmente escrevem sobre cultura, raramente começam. Na literatura com que deparei, os escritores tendem a começar in mediis rebus, lutando por um lado ou por outro em batalhas que são agora tão confusas que quase ninguém entende o seu sentido. E isto não é por não distinguirem a madeira das árvores, mas essencialmente porque não cavaram debaixo das árvores, à procura da vida que secretamente as alimenta.

 

 

 

Traduzido de An Intelligent Person’s Guide to Modern Culture, Scruton, R., ed. Duckworth, Trowbridge, U.K., 1998, p. 1 a 4.,