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ESPAÇO
PÚBLICO, POLÍTICA E MEDIAÇÃO J. Bragança de Miranda «Estás a caminhar. E embora nem sempre te dês conta
disso, estás sempre a cair. A cada passo cais para diante ligeiramente. E então
agarras-te a ti próprio para não cair. Uma e outra vez vais caindo. E então
agarras-te a ti próprio para não caires. E é assim que tu podes estar a
caminhar e a cair ao mesmo tempo».
Laurie
ANDERSON 1.
Introdução É indubitável que
o «espaço público», tal como se instituiu modernamente, está submetido a
pressões tais que o tornam quase um simulacro daquilo que era, ou daquilo que
os clássicos pretenderam que fosse. Bem mais complicado é ajuizar
relativamente ao que pode-rá vir a ser, numa época em que, como afirma John
Ballard, «pela primeira vez, a humanidade poderá negar a realidade e substituí-la pela sua versão
preferida». Quando a visão da «realidade»
que suporta a vontade de seguran-ça é ameaçada, tudo ganha contornos
inquietantes. Aparentemente, a crise do espaço público é de somenos importância,
mas o fenómeno anunciado por Ballard afecta também o destino do espaço público
e, correlativamente, da própria política. A ligação entre a política e o
espaço público, que sustentou durante duzentos anos a interacção dos
modernos, volta a instabilizar-se sob o impacto de novas forças e tendências,
potenciadas pelas novas tecnologias da informação. Será que se trata de
uma mutação radical, como alguns preten-dem, levando ao fim o espaço público?
(É a posição identificável com o «pós-modernismo», cujo fundo de verdade
é tão somente o desajus- tamento
das imagens da modernidade relativamente à experiência concreta que é a
nossa. Como não se dão conta dessa diferença ten-dem a «superar» a
modernidade quando afinal estão apenas a superar as teorias de onde partem, na
maioria das vezes o marxismo. Exemplo típico é o de Jean Baudrillard. Cf. Simulacres
et Simulation, Paris, Galilée.) Ou trata-se antes de uma evolução na
continuidade, mantendo-se basicamente na mesma? (É o caso daqueles que vêm
nas transformações actuais uma possibilidade efectiva de «democracia» senão
mesmo de democracia «directa», sem as «dificuldades» da mediação clássica
e verdadeiramente universal.) Parece-nos que nem uma coisa nem outra coisa: tudo
indica que a situação corresponde a algumas tendências últimas da
modernidade, as quais, vistas a esta luz, poderão finalmente ser olhadas de
frente, sem subterfúgios nem ilusões. A abordagem deste
assunto tem de escapar à aparente obviedade de que o espaço público, tal como
foi constituído classicamente, está a sofrer alterações em alguns dos seus
segmentos, porque o problema é mais radical e põe em causa a visão
tradicional desse mesmo espaço. Aliás, o espaço público nunca se reduziu à
oposição entre público e privado, nem à simples mediação entre sociedade
civil e Estado, nem mesmo à representação, artifício inventado para
despar-ticularizar os interesses individuais, conferindo-lhes universalidade.
Embora também por aí passasse, era mais do que isso, e, tendo uma certa relação
à política, nunca se reduziu a ela - apesar de enquadrado constitucionalmente,
o espaço público é acima de tudo um espaço de mediação, tendencialmente
universal, que suporta a actividade constituinte dos modernos. E o que na
verdade está a entrar em crise é a noção de um espaço bem delimitado, um
espaço entre outros, como seriam os do privado, os da governação (ou do
Estado), para não falar da cultura, dos «campos sociais», etc.. Isso torna-se
mais evidente agora que a mediação está progressivamente a ser tecnologizada.
Sem sabermos muito bem o que nos trará, a evidência dessa mudança leva a que
se fale de «fim da modernidade» ou de «pós-moderno».
Uma coisa é certa: as concepções clássicas estão em nítida perda de
força, mas também é verdade que nunca se aplicaram bem ao mundo que
acreditaram ter construído. De um ponto de vista
transpolítico, o «espaço público», enquanto controlo da mediação, era uma
forma histórica de controlar o aparecer, de prever o acontecimento,
antecipando-o ou produzindo-o. A preocupação moderna com a aparência,
remontando historicamente ao Iluminismo, é sinal da necessidade imperativa de
controlar o aparecer, numa situação permanentemente assolada pelo inesperado,
e onde tudo o que aparece fora do controlo humano surge como catástrofe ou como
acidental - controlar o aparecer, que é da ordem da physis
e não do humano,
embora não haja aparecer sem o humano. Claro que, enquanto
forma histórica, nada há de «errado» com o espaço público. O que talvez
esteja em causa é a maneira como ainda nos pretendemos ater a essa forma, cujos
limites são hoje evidentes. A temporalidade política, basicamente anual, e a
temporalidade tendencialmente instantânea das tecnologias contemporâneas,
relacionam-se em grave assincronia cujo alcance urge reconhecer. E necessário
reflectir sobre esta nova situação. Todo este assunto é
político, sem se confundir com a Realpolitik,
a política realmente existente. As condições de visibilidade da política
alteram-se profundamente, enquanto necessidade, justamente no momento em que a
forma clássica deixa de ser capaz de a «conter», em todos os sentidos da
palavra. A invasão do «espaço público» pela cultura mediática, a
tecnologização das formas de mediação, a acelerada Bilderstreit2
que ataca a
centralidade da palavra, a explosão das X
Com a modernidade institui-se uma dialéctica da aparência que l`unciona como
algo público e prático. Se a aparência é um motivo fulcral da filosofia, que
se torna obsessivo no platonismo, é na chamada modernidade que revela todo o
seu alcan-ce. De facto, entre Platão e Nietzsche a associação de aparência e
erro tende a deixar de ser um problema filosófico para se tornar um problema ético
ou político. A preocupação moderna com a aparência é uma peça essencial da
criação do sujoi-to racional e de controlo do aparecer, i.e, daquilo que é
passível de chegar à visi-bilidade. Quando
se fala de aparência, de visibilidade e de verdade, alguns vêem logo despontar
a «metafísica». Por mim, tendo a pensar que os famosos problemas metatísicos
sobre o conhecimento não eram mais do que aqueles que estavam ligados à imposição
de uma estrutura de controlo do acontecimento. A preocu-pação com o
contingente e o aleatório é um outro nome para o mesmo processo de controlo. O
desenvolvimento dos métodos de planeamento racional mais não visa-ram do que
controlar directamene o acontecimento, produzindo-o. O pensamento político,
mais prudencial, tenderá apenas controlar as formas do aparecer do
acon-tecimento. Cria-se para isso um «quadro» onde este deverá «repousar»,
o que é um dos motivos profundos do «constitucionalismo» jurídico-político. 2 A
«imagem» tornou-se um dos desafios essenciais para o pensamento que se acha
desmunido perante ela, apesar de nunca se ter escrito tanto sobre ela como nos
nossos dias. Sobre a «luta das imagens», cf. Donald Judd - «Bilderstreit» in
AD, New York New Art, 1989, pp.5 1-52.
Para uma análise das relações da imagem com a tecnologia, vj. Peter Weibel, Dir
Beschieunigund der Bilder in der Chronokratie, Berna, Bentelli Verlag, 1987. categorias
políticas clássicas, como a de soberania, etc., sendo fenómemos
omnipresentes, não têm validade em si. Mas, na medida em que nos colocam questões
urgentes, tudo depende da sua relação à política. Quanto mais o estado das
coisas se torna premente, mais a política se torna necessária3. 2.
Natureza paradoxal do espaço público clássico Como tese geral,
diremos que o espaço público constitui a forma histórica da mediação,
possibilitando e constrangendo em simultâneo a visibilidade da política. Essa
limitação tem que ver com as condições próprias da modernidade. Apesar das
semelhanças formais com a
agora grega, há
uma diferença que se revela decisiva: o espaço público é abstracto e
deslocalizado, tendo limites extremamente flutuantes, o que não sucedia no «espaço»
grego ou medieval, que era concreto e localizado. Sendo abstracto, atravessa
todos os limites que as culturas, as comunidades, etc., Ihe colocavam. Mas é
essa caracte-rística que o faz corresponder à universalidade da ideia
de política, que
está em expectância em toda a experiência ocidental4. 0 cons-trangimento histórico
liga-se com a necessidade de controlar essa extensão excessiva, que só
politicamente podia ser percorrida, ou então ser suspendida. De certo modo, é
esse o papel do contratualismo e da ordenação institucional que enquadra o
espaço público. É uma forma de delimitá-la, nacionalmente, localmente - o
que é paradoxal, pois politicamente não cabe nesses espaços. É ao
liberalismo histórico, posicionado entre as revoluções e a sua estabilização
constitucional, que se deve a configuração clássica desse espaço, mas é
também a ele que deve a sua tremenda ambiguidade. Historicamente, o
novo espaço de mediação moderno acabou circunscrito a um espaço de
representação dos interesses particulares da «sociedade civil», de modo a
permitir, positivamente, a universali- 3
Isso, porque a política é a resposta de todos, ou, pelo menos, potencialmente
de todos, a um problema humano. A resposta tecnocrática ou estética agrava
mais o problema, pois é impolítica. 4 Esta
ideia é a de uma «comunidade humana justa habitada por homens livres». A sua
radicalidade ideal fá-la conviver bastante mal com a polttica-realmente--existente,
baseada em particularidades que a adiam indefinidamente. Não se veja aqui
qualquer platonismo, pois a ideia de política é uma das «possibilidades
objectivas» do humano tal como se institui na sua «restância» histónca.
Isso é abordado em «A ideia de política», neste livro. zação
desses interesses particulares, e, negativamente, a salvaguarda dos direitos
individuais, das minorias, etc., limitando por aí o poder de Estado (e acima de
tudo da governação)5. Mas essa forma não esgotava as suas potencialidades,
nem as conseguia conter, embora fosse basicamente esta a visão liberal e democrática
que se plasmou constitucionalmente. Correspondendo a um movimento de
universali-zação inevitável6, o resultado acabou por ser a integração do
espaço público, enquanto modelo da mediação, no «espaço político»
domi-nado pelo Estado, que se apresenta assim como um «centro» de con-trolo
que acaba por afectar a chamada sociedade CiVil7. As evidentes limitações
deste modelo foram denunciadas desde o início. Basta lembrar as críticas
marxistas que denunciavam a sua falsa universalidade8, as teses radicais da «democracia
directa»9 ou a recusa anarquista da sua relação ao Estado. Mas não pesaram
menos as perversões intrínsecas a esse espaço, bem analisadas por Norberto
Bobbiol° e, nos nossos dias, a penetração da cultura mediática, que o
contamunaram com a sua atracção fatal pelo espectáculo. Mas talvez seja
apenas com as transformações provocadas pela tecnologização 5
Tratamento clássico deste problema é o de 1. Berlin em Four Essays on Liberty (1969) que contém o famoso ensaio sobre as
«duas concepções da liberdade», a liberdade positiva e a liberdade
negativa.. 6
Como mostrou Gilles Deleuze, o «capitalismo» varia constitutivamente entre a
universalização e a particularização. Esse movimento tensional é por ele
descrito como um processo de «desterritorialização e de «reterritorialização».
Cf. Deleuze & Guattari, L'Anti-Oedipe,
Paris, 1972, part. «La représentation capitaliste» (pp.285-3 1 2). 7 Aliás,
o movimento é duplo. A sociedade civil tende a invadi-lo também. Podería-mos
mesmo falar de duas fases que acabarão por convergir. A primeira, de contro-lo
do espaço público pelo estado, de que é exemplo a Alemanha de Bismarck no século
passado. A segunda, de controlo desse mesmo espaço pelos mass
media e a economia de que é exemplo o «americanismo». S
Nomeadamente as críticas de Habermas ao espaço público liberal. Não tanto
por ser falsamente universal, mas porque perverte a própria questão da
universalidade. Onde nos afastamos de Habermas é na sua fundação da
universalidade na ética e no consenso determinados aprioristicamente. Cf. «a
institucionalização da esfera pública no seio do Estado burguês: as contradições
do processo» in J. Habermas
Strukturwandel der Of eentlichkeit (1962). 9 De
que o «conselhismo» europeu, pós-primeira guerra mundial e activado pela
revolução russa, é um modelo fundamental. Para além de Rosa Luxemburgo, nome
importante desta corrente, todo o radicalismo político dos anos 20
era «con-selhista». 0
Cf. Norberto Bobbio, O Futuro da
Democracia, Lisboa, Dom Quixote, 1988. roz
ca e lvloaernraaae
141 generalizada
da experiência que o espaço público clássico encontra o seu limiar último.
De qualquer maneira, este desenvolvimento estava já implícito no próprio
modelo que vingou historicamente, um modelo que, visando a universalidade, se
realizava na particularidade. Essa tensão não deixou nunca de estar presente:
procurando a «comunidade humana», o espaço público apresentava-se como espaço
localizado, estatal e nacional. Ora, o que conferia
validade ao esforço dos clássicos da moder-nidade era a relação à ideia de
política, relação mais complicada do que aquilo que comummente se pensa. Há
nela uma ambivalência que faz com que a política seja obliterada pela idealização
da «universalidade», exigindo a destruição do espaço concreto em que se
expressa historicamente. E o que podemos chamar de Idealpolitik, em que assentam todas as utopias. Esta última não é
menos perigosa que a Realpolitik, inteiramente
voltada para a gestão e administração do existente. A relação destas à política
é puramente negativa: não a podem realizar, embora a possam impedir". A
evidência, demasiada, da Realpolitik, leva
a ocultar os perigos da idealização do político. Na verdade, temos de partir
do existente, sem o sacralizar nem o negar -o que seria, sempre, uma ilusão
piedosa. Sendo a política um
agir livre, tudo pode recomeçar, mas não de qualquer maneira nem em qualquer
lugar'2. Esta não se reduz, é evi-dente, à maneira jurídica nem ao espaço público;
mas estes só têm sentido se neles vigorar a ideia de política. A Idealpolitik
e a Realpo-litik têm origem na ambivalência do espaço público clássico,
absoluti-zando uma das suas tendências. E no momento em que o espaço público
está a ser atravessado por forças aceleradoras, desmaterili-zadoras e, enfim,
universalizadoras, produzidas pelas tecnologias t l
Isso é particularmente verdadeiro no caso dos totalitarismos que são antipolíticos
de modo radical, podendo destruir a própria possibilidade da política. Que
isto não seJa reconhecido deve-se ao facto de os totalitarismos, tendendo a
controlar todos os espaços, actuarem também no espaço político. Mas isso não
demonstra a sua natureza política. Aliás, é o caso da tecnocracia ou da
burocracia que, mais dissimuladamente, não são menos anti-políticas. Na
medida em que a política tem de ser pensada como um acto livre que, enquanto
tal, pode originar «novos começos» como se não houvesse nada até esse acto
então ela é intrinsecamente violenta. A dignidade da política tem que ver com
ã «maneira» como suspende essa violência potencial, respeitando o existente,
como ponte para o novo. Evidentemente, não se reduz ao «respeito». Este é
uma condi-cão necessária, mas insuficiente. actuais,
o espaço de mediação parece estender-se a toda a experiência, atravessando
as fronteiras jurídicas, nacionais e estatais. O destino da política depende
do que podemos esperar deste movimento. O fenómeno mais radical da nossa época
está justamente no devir medialidade de
toda a experiência. Toda a dificuldade radica no alcance deste fenómeno. Será
que se trata ainda, à semelhança do espaço público clássico, de um espaço
de mediação - embora desmesurado - que está ao «serviço» do Estado, ou é
apenas um suporte para o infinito desdobramento da técnica? (Em ambas as hipóteses
o meio é o meio de um fim exterior e violento.) Ou, ao invés disso, será que
a própria experiência se liberta, desse modo, como pura actividade
constituinte, como «experiência da
experiência»'3, como puro meio que a todos afecta, sendo agenciada pelo
agir de todos e de cada um? Esta última possibilidade, por ínfima que seja,
tem de ser privilegiada. Que ela se possa colocar é precisamente o novum
da situação actual'4. A emergência da medialidade
pura está em correspondência com o surgimento da experiência enquanto um
permanente fazer-se em cada acto; em que cada acto está dotado de capacidade
constituinte (escapando assim ao controlo do agir colectivo através dos grandes
corpos constitucionais). Dizer que a experiência é o meio do agir significa
que a constituição está imediatamente em
acto'5, o que passa por uma alteração profunda da relação ao espaço e ao
tempo. Estando a manifestar-se actualmente, tal possibilidade já estava implícita
no espaço público clássico - estava implícita, mas barrada, censurada; a 3
Trata-se de uma formulação politicamente essencial, proposta por
Lacoue-Labarthc in L~ŒExpérience
de la Liberté, Paris, Galilée, 1990. 4
A
mediação está a emergir como um problema crucial do pensamento contemporâ-neo.
Mas não se trata de um problema teórico, remetendo para transformações
ocorridas no nosso século e que estão indissociavelmente ligadas à técnica
actual. McLuhan é, deste ponto de vista, uma referência incontornável,
estando a recru-descer de importância. A filosofia europeia, demasiado presa da
dialéctica, só muito recentemente se tem vindo a debruçar sobre este fenómeno.
A excepção que é Jean Baudrillard não desmente esta asserçao, já que nunca
foi além do quadro mcluhaniano. Daí a relevância dos estudos de Giorgio
Agamben, nomeadamente, Moyens sans Fins,
Paris,
Rivages, 1995. 5 É
conveniente distinguir entre «constituição» como processo de permanente
reelaboração prática da experiência e a «constituição» jurídico-política,
que enquadra racionalmente as acções públicas legítimas. Nao é,
evidentemente, por acaso que o constitucionalismo político se instituiu na
modernidade, que podemos definir como «a era da constituição». espacialidade
que serve de base ao agir político estava controlada por mecanismos jurídicos
e geopolíticos; a consistência própria do espaço estava cristalizada em
certas figuras históricas, apresentadas como as únicas «racionais», neste
sentido an-históricas - e
este era um efeito necessário, que levava Novalis a dizer: «Procuramos
por todo o lado o incondicionado [Unbedingt] mas só encontramos coisas [Dingen]». Que na realização
histórica da espacialidade política esta se concretize num rígido espaço de
consistência, submetido à lógica de potência do Estado, isso acarreta a
perda de tensão entre o agir e o agido, entre o incondicionado e o
condicionado. Ora, é nesta tensão que emerge o agir livre como meio absoluto,
e tudo indica que o desenvolvimento da técnica tendeu a «destruir» a consistência
do espaço público clássico. Com esse resultado, também a temporalidade do
agir é alterada - e profundamente. A estatização da política -indissociável
da obsessão pelo Estado -, implica a sobredeterminação do tempo pelo espaço.
O tempo é como que espacializado, i.e, dotado de consistência. A melhor metáfora
desta situação é a fórmula para-doxal de «e.spa,co
de tempo»l6. As
cronologias, os faseamentos elei-torais, os períodos de revisão
constitucional, a possibilidade de tudo isso reside num controlo da
temporalidade. Ora, esta é a melhor marca da finitude do agir. A abolição da
finitude é inseparável da eternização do tempo jurídico. Com a crescente
velocidade tecnológica, que acelera enormemente a experiência, a consistência
temporal dos clássicos entra em crise. Esta breve descrição comprova
minimamente que há uma transformação profunda da experiência, de que depende
a repolitização da ordem política clássica. O que passa por libertá-la do
seu aprisionamento pelo Estado'7. É justamente isto que parece estar a 16 Parece
contraditório mas é um tenómeno determinado pelas condições modernas da
necessidade de controlo. Bom exemplo é o das eleições, que são um mecanismo
de «espacialização do tempo», resultante do aumento de controlo dos
processos de transmissão do poder. Basta recordar as análises de Ernst
Kantarowicz no famoso The çYing's two Bodies, com
o imenso dramatismo que implicava a morte do rei, sempre inesperada. ocasião de
crises mais ou menos profundas, para perceber que as eleições realizam o mesmo
processo, cronologizando o tempo. Assim, de quatro em quatro anos os governantes
saem do poder e são substituídos com a regulari-dade pendular do mecanismo
constitucional, obviando à mudança catastrófica anterior à modernidade. '7 Cujo
eteito era uma dada visão de pertença
ao
Estado, que fazia de todos os que não estavam incluídos nesse espaço, uns «párias».
No livro As Origens do totali-tarismo, Hannah
Arendt analisou com interesse este tenómeno, em si mesmo para-doxal. Se todos são
igualmente homens, a não pertença a uma nação, a Inglaterra, suceder.
Sem que isso deva surpreender, novos perigos estão a despertar' 8, 3.
Emergência do espaço público Para apreender algo
das novas tendências convém relançar a análise do espaço público
propriamente dito. Referimos já alguns traços da sua ambivalência, senão
mesmo da sua paradoxia. A forma que acabou por se impor historicamente tem que
ver com a coexistência de dois tipos de espaços: o espaço político que se
alarga a toda a «comunidade humana», i.e, à «humanidade», e os espaços políticos
nacionais e estatais. O espaço público, que serve de mediador entre os dois, e
em que se plasmou esta contradição, constitui uma novidade que não é mais
antiga que a modernidade. Falamos de modernidade, não enquanto época, mas como
ruptura da experiência Ocidental quanto ao fundamento. Enquanto antes era dado a priori (assentando nos deuses ou em Deus), agora surge a posteriori, como
efeito da acção e vontade humanas. Numa rápida síntese, o espaço público
surge quando o cosmos
antigo perde a sua
densidade ontológica e a sua centralidade teocrática; quando a «totalidade»,
mais do que dada, é postulada como um projecto; quando a acção surge como
puramente racional e humana, etc. Sendo um processo necessário, e não apenas
do ponto de vista político, de modo algum se esgota nas formas que começou a
assumir desde os princípios do século XIX. Nele estão ínsitas outras
possibilidades bem mais interessantes. Dissemos que, com a
emergência do espaço público, estava em causa a possibilitação da política
em condições de universalidade. Se é verdade que o seu modelo é em larga
medida o da agora
grega, esse modelo
seria uma pura ilusão sem a libertação dos indivíduos da
- ou
a França ou Portugal, implica a perda correlativa do estatuto de «homem».
Como se só fosse possível ser homem sendo ao mesmo tempo «inglês», «francês»,
etc. Boa
parte desses perigos têm base na permanente tentação de estender a lógica do
Estado a todo o novo espaço, seja interior seja exterior. No caso do «espaço
virtual», ou Cyberspace, isso
é bem nítido. Sabemos das intenções da adminis-tração Clinton em controlar
a Internet,
usando
o argumento da luta contra a «pornografia». A moralização pública sempre
foi uma t`orma de estender o poder de Estado. A tentativa de Clinton tem
merecido forte resistência dos cidadãos americanos, pelo menos aqueles
reunidos em torno da Electronic Frontier Founda-tion. Para uma defesa das posições
do Estado americano, cf. «D'ont Worry, Be Happy: Why Clipper is good for you»
de Stewart A. Baker in WMED,
206,
Junho 1994, pp.]00, 132-133. 1()4
JOSe
A.
lfirAgAnÇa ae IVllRa~ŒCaa escravidão,
da servidão medieval, das suas comunidades de pertença. Ora, tal
universalidade está em correspondência com um fenómeno absoluto, o da ruptura
generalizada da experiência tradicional. Na sua radicalidade é dificilmente
apreensível. Nenhuma das descrições de que dispomos é satisfatória, nem
mesmo a sua caracterização como nihilismo (Nietzsche). Mas uma coisa é certa,
a partir de um certo momento surge à consciência pública uma outra forma de
experiência em que tudo se transforma em problema, ou seja, em que todas as «evidências»
e «fundamentos» são problematizados; em que tudo tem de ser justificado; em
que tudo pode ser negado. Se nos detivermos minimamente sobre esta questão, é
extraordinário que a partir de certo momento tudo aquilo que era aceite com a
maior naturalidade do mundo passe de repente a ser encarado como constituindo,
ou contendo, um problema. Que se passe a exigir
justificação de todos os actos, de todas as instituições, isso instaura a «era
da crítica»'9, a partir da qual tudo é inevitavelmente político. Este
excesso teria de ser controlado, e aí desempenhou papel crucial a divisão
entre público e privado. Só o público tem de justificar-se, i.e, só ele é
passível de ser interrogado do ponto de vista da universalidade, sendo a
garantida pelo espaço público clássico e pela forma assumida por este
processo, através da «discussão livre». Foram, aliás, estas novas funções
que levaram a identificar o espaço público com um espa,co
de palavra. O
efeito inevitável foi a redução da política ao diálogo, e a mediação à
palavra. É através desta que o possível vem ao «aberto», é através dela
que se decide o que merece perdurar ou o que tem de ser recusado. Quando a
palavra foi invadida pela imagem, como está hoje a ocorrer, percebe-se a crise
profunda que isso implica. Todavia, a
sobredeterminação da política pelo Estado não deixou de ter efeitos na própria
palavra. Aliás, a própria necessidade de justificação era já um efeito da
crise do mundo medieval e, simultaneamente, era uma forma de controlar os seus
efeitos. Assim, a tal palavra que no jogo eleitoral já só sobrevive como «voto»
e não como «voz» é o resultado de um controlo por estratégias nominalistas
que caracterizam a palavra tal como ela foi modalizada pelo espaço público. O
que remete para um fenómeno mais geral, uma crise profunda, que permeia toda a
experiência, sendo bem patente na separação radi- 19
Sobre isto, ver o texto «Inevitabilidade da crise», neste livro. cal
entre as palavras e as coisas. A ligação ontológica entre o mundo e as
palavras desaparece, sendo preciso reinstaurá-la. E na procura de um novo
relacionamento entre as palavras e as coisas que encontra-mos a matriz geral da
tecnologização da experiência. Trata-se de «recortar» o mundo pelo nome,
para melhor poder dispor dele. É assim que deve ser compreendida a frase de
Foucault: "é preciso, sem d~Œ'cvida, ser nominalista: o
poder não é uma instituicão, e não é umcc estruttera nem uma certa potência
de que alguns estariam dotados; é o nome que se dá a uma situa,cão estratégica
complexa numa sociedade determinada"(Foucault, 1976: 123).
Muito se joga em torno desta experiência de ordenação, de nomeação, de
hierarquização atraves da palavra. É um processo que escapa à mera esfera do
político (de facto, a esfera do Estado), alargando-se a programas de todo o género,
às «ideologias» ou às «visões do mundo» que Ihe ser-vem de horizonte de
sentido20. Ora, o domínio da
palavra sobre a mediação é já uma forma de controlar o agir político.
Surgindo historicamente como possibilidade de acção livre, ao ser reelaborado
como palavra tende a ser circunscrito no interior de rígidos quadros jurídicos.
Daí que o espaço público clássico2', criado para possibilitar a política,
acabe por a diferir per-manentemente, não conseguindo escapar à lógica de
controlo instaurada para responder à crise generalizada que constitui o
moderno. A centralidade da representa~Œcão22
provém justamente
deste pôr à distân- 20
De
um ponto de vista muito geral, o t`enómeno essencial que está aqui em causa é
a natureza estratégica das nomeações (e classificações), visando o controlo
da expe-riência. É no novo poder dapalavra que se irão fundar as «concepçoes
do mundo» e as «visões do mundo». E sabido que o primeiro conccito foi
formulado com algum rigor por Dilthey, vindo a ser reelaborado criticamente por
Heidegger, que preterirá o termo Weltbilden,
imagens
do mundo. Cf. Martin Heidegger (1949), "L'Époque des "conceptions du
monde" (or. "Die Zeit des Weltbildes") in CIIemins Qui ne Mènent Nulle Part (or.
Holzwege), Paris,
Gallimard, pp.99- 146. 21
Na realidade o espaço público clássico é todo o espaço público que há. O
que chamamos actualmente «espaço público», colonizado pelos media, alargado pelas redes de telecomunicações,
constitui um híbndo incaracterístico, em que o espaço público clássico
sobrevive apenas como um simulacro. O que tem vantagens e desvantgens, como
procurarei mostrar. 22
A representação é um motivo central da ordem moderna, tendo relevância em
todos os domínios da experiência para além do político. Especificamente do
ponto de vista político trata-se de uma forma para resolver praticamente a
oposição metafísica entre presença e ausência. Assunto bem dramático, pois
se todos os homens são cidadãos, e portanto
dotados de capacidade política, todos deveriam estar presentes na decisão,
deliberação e governo. Mas uns estão mais presentes do cia
para controlar, com o que se procura estabilizar a experiência. Não significa
isto que o espaço público seja exclusivamente uma estrutura de controlo, dada
a ambivalência constitutiva que contém. É devido a essa ambivalência que
esse espaço mantinha as suas virtualidades, sendo de facto incapaz de se fechar
absolutamente. A representação, altamente codificada, que servia de esquema à
mediação, mormente para gerir a relação entre presença e ausência,
proximidade e distân-cia, etc., está a ser desmantelada por forças
(nomeadamente tecnológi-cas, mas também económicas e culturais) que, em princípio,
estaria encarregada de controlar. Mas este resultado era inevitável dada a
crispação dos clássicos em torno do poder da palavra. Ora, esta revelou-se
demasiado fraca para resistir a essas forças, quando não as potenciou. É esta estrutura
abstracta, em toda a sua ambivalência, que é essencial e não as formas
concretas que assumiu na Inglaterra, em França ou nos Estados Unidos. Apenas na
sua concretização histórica esta se identifica com o espaço nacional-estatal,
ou com a divisão entre público e privado. O mesmo se dirá da sua função de
mediação entre os interesses gerais do Estado e os interesses dos indivíduos
ou dos grupos. Todos estes factores devem-se a razões históricas contin-gentes,
como as guerras religiosas europeias, mas baseiam-se também na maneira como a
modernidade recolocou as tarefas históricas da Europa. Isto é essencial, pois
se não se considerasse absolutamente a criação de uma espaço de mediação,
isento de violência física, nem teria sentido falar de resolução de
conflitos, de debate, etc.23. O pro-blema é que a forma histórica que assumiu
era demasiado rígida para poder resistir a tendências internas e externas ao
espaço público clás-sico, nomeadamente no que se refere à sua relação com
o Estado. que
outros, como se sabe. Isso não impede que algo de essencial passe pela pro-blemática
da representação, sendo discutível se está ou não a perder força nas condições
actuais da «telepresença». Para uma análise deste conceito do ponto de vista
político, vale a pena referir o estudo clássico de Hanna Pitkin, The Concept of Representation, Berkeley,
University of California Press, 1972. 23
Não pretendemos afirmar que as funções do espaço público eram puramente
estra-tégias. Limitamo-nos a sublinhar que a sua forma histórica é
insuficiente para garantir a política, tal como a pensaram os grandes autores
clássicos. Muitas das críticas ao «espaço público» sustentam que a sua função
de mediação é imaginária ou uma forma de «violência simbólica», mas isso
deve-se à confusão entre legiti-midade a
priori e
legitimidade a posteriori. E esta
última que obriga o poder a justificar-se, e não se diga que não há diferença
entre agir sem justificação e agir sabendo que se tem de ser capaz de
apresentar justificação para o acto. É nesta questão que assenta toda a
problemática da legitimação, politicamente essencial. A tentativa de alargá-lo,
afinal resultante das críticas marxistas e outras ao modelo clássico, foi
acompanhada pelo extensionamento do Estado a esferas então «atribuídas» à
sociedade civil. Mas a actual crise do Estado-Providência é o contra-golpe de
tais tentativas, que em si mesmas já revelavam uma incompreensão do papel do
liberalis-mo «histórico», voltado essencialmente para o enquadramento
consti-tucional dos direitos individuais e, consequentemente, para a limita-ção
do poder de governar24. A preocupação com a divisão dos poderes comprova-o.
Deste ponto de vista, o espaço constitucional é vazio e neutro, puramente
abstracto, sendo os seus limites a lei. Mas só o agir político Ihe pode dar um
conteúdo qualquer, uma figuração concreta. Ora, a desmesura do Estado leva a
reprimir o agir em favor da admi-nistração, da gestão e, em suma, da governação.
Ao mesmo tempo que o constitucionalismo procurava potenciar a capacidade
constituinte de todos, mas sem qualquer garantia, o que se implantava era uma máquina
de governar, que é sempre uma «política» de poucos e para poucos, tanto mais
forte quanto o Estado se revela como ingoverná-vel. O Estado buscará tanta
mais potência quanto menos consiga res-ponder às forças que Ihe escapam. E
estas são cada vez mais fortes. O ciclo infernal da potência que assim se abre
pode pôr em causa a própria ideia de política. Em síntese, a difusa
sensação de crise do Estado é inseparável das transformações do espaço público
que tendeu a controlar, e que, de certo modo, entrou por isso em declínio
inevitável. No fundo, con-fundiu-se a mediação do agir político com a
legitimação formal do poder de governar. A universalização da mediação a
que estamos a assistir, que é em si mesma bastante problemática, tende a
destruir o modelo clássico do espaço público, que vigorou durante cem anos e
que ainda hoje alimenta o imaginário político. É este que está em causa e não
o movimento histórico que o animava politicamente. 24
É preciso distinguir o «liberalismo histórico» das políticas liberais.
Confundi-las sempre deu mau resultado, devido à paixão política. Boa parte
dos ataques ao «liberalismo» devem-se ao facto de se Ihe exigir mais do que
historicamente Ihe corresponde: a garantia de neutralidade perante todos os
valores e aquilo a que Berlin chamou «liberdade negativa». Parece pouco mas é
essencial. Seja como for, o í`undamento das críticas vem do romantismo que
sempre desconfiou da «representação» e do «individualismo», sustentando um
comunitarismo virulento. A vontade de fusão, o desejo de uma mimesis perfeita, torna o romantismo político fácil
presa dos totalitarismos. A
ambivalência de tal espaço, que não cabia na forma rígida que venceu
historicamente, acabou por originar a auto-destruição deste último, por
motivos intrínsecos e extrínsecos. Sem pretendermos à exaustividade,
referimos os seguintes aspectos: a) A tendência a
concentrar-se num espaço político particular, identificado com a nação25,
estava em nítida contradição com o imaginário da Polis
universal que
animou os contratualistas clássicos, e que expressava a ideia política mais
radical do ocidente. Ocultando, sem o poder anular, a pura espacialidade que
constitui o meio do agir político, fechando-se em torno da legitimação do
governar, foi obri-gado a expulsar a crítica para o seu exterior, tornando-se
num espaço progressivamente inerte e despolitizador. A crescente abstenção
política é disso um sinal evidente. b) As categorias políticas
que suportavam a ordem política moderna, como é o caso da «soberania»26,
estabilizadas de modo redu-tor, identificando-a com o Estado-nação, eram antitéticas
com as tendências à globalização e a mundialização, não apenas económicas,
fenómeno que se tornou massivo neste século. A crispação em torno das
fronteiras, de que dependia a governabilidade, não consegue resis-tir às forças
deslocalizadoras que atravessam todas as «fronteiras». c) A decisão
racional dos governos, que se baseava no fechamen-to do espaço concentrado do
Estado e no controlo total da informação, cujo apuramento dependia dos
processo públicos, foi abalada por uma série de «incertezas» e pelo
encurtamento do tempo de decisão. d) O operador político
do espaço público - a representação -revelou-se incapaz de produzir os
efeitos esperados. Como mostrou Bobbio, as consequências foram: l) ao indivíduo
autónomo contra-põe-se a rede de interesses dos grupos de pressão e a persistência
das 25
Daí a contusão da polis
com
a cidade, desta com a capital e desta com a nação, etc.. Esta série de
derivas não é casual, longe disso. Indicam todas a difícil com-posição da
«cidade humana» com as cidades ou nações reais. 26
É claro que, à medida que se governamentalizava a política e se reduzia esta
ao domínio do Estado, houve uma restrição excessiva da ideia de soberania,
retiran-do-a do monarca para a transferir para grandes agregados imaginários
como o «povo» ou a «nação». O que leva alguns autores, como é o caso de
Agamben, a defenderem o fim da própria ideia de soberania. Mas há na
modernidade toda uma outra linhagem que faz assentar a soberania no agir livre
dos indivíduos, que tem um ponto alto em Sade e que no nosso século é
defendida por Bataille ou Beüys. Oligarquias;
2) à representação política (mandato livre) opõe-se o mandato imperativo
regido por interesses particulares (neo-corporati-vismo); 3) à democratização
social, a persistência de ilhas não demo-cráticas (casos da empresa, da
escola, etc.); 4) à visibilidade e contro-lo do poder pelo espaço público, o
poder invisível dos Estados dentro do Estado); S) à participação de todos na
vida colectiva, contrapõe-se a impreparação dos cidadãos e o
abstencionismo27. Esta série de para-doxos consusbstancia-se na própria ideia
de representação, que estaria encarregada de garantir a presença em ausência,
o agir dos que estão fora do espaço-de-Estado. O efeito foi a despolitização
generalizada do Estado. e) A tendência a
reduzir-se à palavra amputava o agir político de aspectos essenciais,
reduzindo-o ao diálogo (e em contrapartida o agir ficava limitado à «participação»).
A pura espacialidade de onde irrompia o agir, fundindo todo o existente em
figuras únicas e irrepe-tíveis é assim destruída. O resultado é que a própria
ideia de um espaço da palavra livre acabou por ser lesado. A palavra, que é
uma forma de universalização, depressa acabou por ser controlada
juridi-camente, mas também pelos discursos e os programas28. A que se deve
acrescentar o seu aprisionamento à captura da política pelo Esta-do ou a sua
profissionalização pelos media
autorizados por
este. A redução da voz ao voto, ligou a palavra ao regulamento burocrático,
aos decretos e aos regulamentos. Os novos meios de propagar a pala-vra, como se
observa em Serajevo, pelo recurso à Internet
e aos novos 27
Cf. Norbert Bobbio, O
Futuro da Democracia, cit.. As análises de Bobbio ievam a concluir, um pouco contra elas, que
afinal, mais do que promessas e esperanças da democracia, estamos perante
verdadeiros paradoxos constitutivos da ordem política moderna. E a forma dos
paradoxos que tem vindo a mudar, pelo que não é evidente que possamos
dispensar os paradoxos modernos por decisões tecnológi-cas (a cyberdemocracy),
jurídicas
(nco-liberalismos) ou fundacionalistas (teorias da justiça, nomeadamente de
Rawls). 28
É no palavreado sem sentido que desaba sobre o espaço público que Hannah
Arendt vê um sinal claro de crise do político: «Isso
era bem real pois tinha lugar publicamente; não tinha nada de secreto nem de
misterioso. E contudo não era absolutamente visivel para todos, nem nada fácil
de perceber; porque até ao momento bem deMindo em que a catástrofe atingba
tuJo e toda a gente ela estava dissimulada não por realidades, mas por
palavras, as palavras enganadoras e perfeitamente eficazes de quase todas as
personagens oficiais, que encontravam, continuameItte e em numerosas e
engenhosas variantes, uma explica,cão satisfa-tória para os acontecimentos
preoeupantes e os receios justificados» (in Homens em Tempos Sombrios, Relógio
D'Água, Lisboa, 1991). J
U J ç A . p p suportes,
estão a revelar os limites da palavra burocrática. Mas tam-bém da própria
palavra. f) O espaço público
foi alargado a pontos incomportáveis, para o modelo clássico, com a entrada
dos mass media no
chamado espaço público e a subsequente «espectacularização» do político.
A desme-sura tem que ver com a crise da palavra certa e, mais ainda, com a
maquinação das paixões através da visão. O seu efeito, foi a invasão do
espaço pela imagem, o silenciamento da palavra política, submer-gido pelo «nevoeiro»
da hiper-informação que tudo torna indistinto. Situação esplendidamente
sugerida pelo Fog de
Carpenter, onde sobre o espaço público se abate uma figura que apaga toda a
figuralidade (muito embora seja depois reposta, o que já é mais duvidoso). É
sabido que a crítica ao espectáculo foi desenvolvida nos anos 60, havendo
alguns que consideram que hoje é uma «categoria» ultrapas-sada. Temos alguns
argumentos que contrariam esta tese, mas interes-sa-nos analisar neste texto um
outro factor, o da tecnologização do virtual. Aliás, não por acaso os
defensores do virtual consideram superada a categoria de espectáculo29. g) A invasão do espaço
público pelo desenvolvimento das redes e das novas tecnologias da informação.
O efeito foi o alargamento desse espaço a toda a experiência, o que é
positivo, correspondendo à neces-sidade de universalização da política,
embora tenda a assumir formas perversas. O espaço público é o nome histórico
do espaço de media-ção. Foi reduzido a espaço político ou controlado
politicamente, ficando assim localizado. A tecnologização da mediação de
massa levou à deslocalização desse espaço e as novas tecnologias conduzi-ram
esse espaço ao desaparecimento. 29
Entre
muitos outros, é este o caso de Leo Scheer que no seu último livro afirma: «A
política faz parte, hoje, desses domínios obsoletos que têm que ver com o que
o telespectador designa como «zappé». Mesmo
o espectáculo, que a salvou apenas durante o tempo efémero de uma «situa,cão»
transitória, já não tem a capacidade de a reactivar; assistimos, perturbados
e divertidos, à sua dissolu,cão catódica. Uma vez retirados do seu contexto
ficcional, os acontecimentos, e com eles a polztica, dissolvem-se como peda,cos
de gelo na transparência do líquido mediático até se confundirem nele». Cf.
Leo Scheer, La Démocratie Virtuelle,
Paris, Seuil, 1995. Para além da evidência da descrição, que quadra bem com
uma série de fenómenos, o entusiasmo de Scheer é excessivo. O político tem a
eterni-dade do humano, sendo independente de todas as suas figurações históricas.
E na verdade o que ele critica é a Realpolitik
dominada
pelo Estado. 4.
Explosão do espac,o público Alguns destes
factores de crise têm que ver com a sua organiza-ção interna, e isso explica
que esteja a ocorrer uma auto-destituição do espaço clássico provocada pelos
seus paradoxos constitutivos. A sua natureza paradoxal torna-se manifesta à
medida que se desdobram os seus paradoxos através da prórpia prática do espaço
público. Este desdobramento é possibilitador, ou não, da política? O que é
certo é que o controlo previsto pelos clássicos falhou e está a arrastar-nos
no seu precipício. Outros factores, aparentemente exteriores, não deixa-ram de
o afectar profundamente. A potência que os anima tem que ver com a forma
contemporânea da técnica. Dizemos que são aparentes, porque justamente o
Estado propiciou o desenvolvimento da técnica privilegiando as tecnologias de
controlo - uma mescla de software
e de orgware
- que o estão a pôr
em causa. Trata-se de um processo de convergência de todas as tecnologias
convertíveis em linguagem digital, que se aplica a toda a experiência. Seja
como for, o resultado inegável é a entrada em crise do espaço público clássico.
Mas essa crise já está inscrita no próprio espaço público. Tudo reside em
saber se a desestabilização da forma clássica e a subsequente extensão a
toda a experiência, que assim surge como um continuum
espacial,
aprofunda a despolitização ou se, pelo contrário, a propicia. Mas tam-bém
poderá suceder que nos deixe num ponto que a torne imperativa. O que remete
para um fenómeno ambivalente. Ao mesmo tempo que o espaço público clássico
entrava em crise, ele era libertado de algumas das suas premissas, dando a ver
algumas das suas possibilidades actuais e também alguns dos seus perigos. No
imenso continuum
de fragmentos
ligados entre si pela aceleração tecnológica poderá estar a emergir a
possibilidade de uma pura medialidade, de tal modo que muitos dos esforços
actuais estão voltados para a controlar. Contra as novas formas de controlo,
toda a urgência está em dar uma nova visiblidade à ideia de política. Ora, esta
possibilidade é diferida pelo espaço público clássico, que era uma peça
essencial da arquitectónica política moderna. Essa ambivalência resolve-se,
dissolvendo a forma histórica em que se cristalizou, quando entre a idealidade
e o seu funcionamento concreto ocorrem curto-circuitos, dos quais já
descrevemos alguns traços principais. Nos pontos de instabilização dessa
forma ressurge um novo bloco - de possibilitação-suspensão da ideia de política.
Com efeito, se esta não é realizável definitivamente, sob pena da liberdade da
acção ficar adstrita a uma decisão histórica irreversível, também não
pode ficar «atrás» enquanto pura sublimidade. Desde que as suas condições
históricas surgiram, e estas são as da «modernidade», ela está toda aí, em
cada momento, sem nunca se esgotar. Cada forma histórica é um modo da sua
presença, mas também um efeito da sua ausência, i.e, da sua potencialização
permanente30. Com a crise do espaço
público clássico - a sua forma contempo-rânea é já um simulacro deste -,
chega ao fim uma visão limitada da mediação, que o restringia às instituições
enquadradas constitucio-nalmente, aos espaços historicamente ligados às nações
(i.e, com a geopolítica) ou então mais decisivamente à sua relação ao
Estado. A consequência inevitável acabou por ser a crescente despolitização
da vida pública, a difusão de um hedonismo banalizado, a espectaculari-zação
do próprio Estado, etc.. Agora é a própria mediação que emerge como uma
questão decisiva. Ao generalizar-se, cria um espaço exten-so para a efectivação
da ideia de política, que se joga em todo o lado como agir e não apenas como
diálogo, ou administração, etc.. Se aceitarmos que tal ideia abrange
virtualmente a totalidade da Polis
humana - enquanto comunidade justa de homens livres -, a sua poten-cialização
depende da libertação da espacialidade pura do político3'. A implicação
imediata é que o agir é o meio de mediar e que a expe-riência é o meio do
agir. O novo espaço de
mediação foi constituído pela destituição do espaço público clássico,
mas também pelo seu prolongamento por outros mecanismos, consistindo
essencialmente no desenvolvimento exponencial das tecnologias da informação -
a crescente digitalização de toda a experiência. Aquilo que ainda se insiste
em denominar «espaço público» é, portanto, um misto das formas
institucionais, mas 30
Descontando todas as dificuldades intrínsecas à mediação, i.e, que entre os
gover-nantes e os cidadãos houvesse uma relação perfeita e um entendimento
imediato, ou que os governantes resultassem de um processo de delogação sem
interrupções e perfeito, ainda restariam problemas de sobra e que têm que ver
com uma defini-ção lata de mediação. A mediação, ao tornar-se absoluta,
redobra-se sobre si própria, polanzando-se. Por exemplo, no caso de um
projecto, a sua realização no tempo, meio por que tem de passar absolutamente,
faz do tempo um meio e um objecto (um obstáculo). O controlo absoluto do meio
tenderia a abolir a sua medialidade, i.e, tudo se realizaria instantaneamente,
etc.. 3i Sendo
puramente potencial, percebe-se que não pode realizar-se de uma vez por todas,
precipitando-se numa figura única e que se repetiria para todo o sempre. Era
essa visão que animava as utopias. Tal espacialidade absoluta tem de ser
pensada como uma chora,
onde
tudo é acolhível sem ser destruído no acolhimento. amplamente
transformadas relativamente à forma clássica, com a convergência destas duas
tendências. Independentemente da justeza do nome, está a impôr-se uma nova
forma de mediação, cujo destino ainda mal podemos entrever. O facto de se
pretender integrá-lo dentro dos padrões clássicos do contratualismo não
deixa de produzir as suas ambiguidades, que se devem acima de tudo à
sobredeterminação, por parte do imaginário moderno da política, do novo espaço
virtual, extenso, leve e invisível. É esta remarca,cao pela
estruturação moderna do político que confere uma nova ambivalência à
configuração da medialidade con-temporânea, embora esta difira em muitos
aspectos da ambivalência clássica. Limitar-nos-emos a pôr em relevo alguns
dos seus aspectos essenciais. Assim: I ) O efeito mais
radical da crise do espaço público clássico foi a emergência da mediação
como problema imediato. Ou seja, o «meio» já não é uma forma de
instrumentalização das relações entre «pólos» ou «identidades» estáveis.
Agora as identidades são um efeito da medialidade, que se afirma como pura
constitutividade. A mediação está a sair da sua «ancoragem» instrumental,
que caracterizava a visão racionalista. O meio era um instrumento para atingir
uma dada finali-dade ou intenção, articulando entre si dois «pólos» autónomos
e exte-riores à mediação. Dada a evidente implausibilidade desta concepção
percebe-se que, para manter este quadro, fosse necessário ir acrescen-tando
outros elementos: um dos mais conhecidos é o «contexto». Ora o contexto é
basicamente o meio. Com a emergência da mediação como absolutamente geral,
tudo decorre nesse meio, no qual se podem distinguir certas polarizações, que
são uma maneira de o meio pros-seguir por
outros meFos. A famosa e incompreendida frase de McLuhan, «The
medium is the message» (o meio é a mensagem), parece ter ganho uma pertinência
quase universal32. Mas esta mediali-dade está presa da configuração deformada
por dois séculos de prática do espaço público clássico. 32
McLuhan é o único autor da «sociologia dos media»
do
qual ainda há muito a esperar, sendo preciso desinseri-lo da estrutura
espectacular em que ele próprio se delxou enredar. E preciso separar o que há
de Camille Paglia em McLuhan. A enorme vantagem de McLuhan está no facto de
conseguir articular a mediação com a questão da técnica, que é afinal o
motivo profundo que está a libertar a mediação do instrumentalismo
racionalista. 2) Dissemos já que a
ideia de política surge com toda a urgência no instante em que a mediação se
absolutiza. Isso é contraditório com a perduração do imaginário clássico,
das suas categorias, classifica-ções e nomes. É nessa permanência que se
apoia a tese da transforma-ção do espaço público em uma agora
virtual33. Isso
levara ainda Philippe Nemo a falar, nos anos 80, de um «espaço público
hertzia-no»34. Trata-se, evidentemente, de uma extensão metafórica do espaço
público clássico, numa situação que o destituiu. Seja como for, esta extensão
não é um «erro», mas uma necessidade. O espaço clássico, mesmo
transformado, tende a articular-se complexamente com o novo espaço virtual. 3) Há uma tendência
a considerar o virtual como um fenómeno que anula a distinção entre ficção
e «realidade». Como se o antigo sistema fosse real por ser limitado, e o novo
fosse virtual por ser ten-dencialmente infinito. Na verdade, nada disso ocorre,
pois o espaço publico clássico era eminentemente «simbólico», ou melhor,
artificial. A sua evidência remontava à maneira como positivara historicamente
uma relação em si mesma virtual à potencialidade. A chamada «reali-dade»
implicava um dado controlo da potencialidade, operado pelo próprio «espaço»
da representação clássica, que tendia a repetir-se automaticamente. Que essa
repetição tenha sido quebrada, isso tem o efeito de libertar o controlo da
potencialidade que é feito através de um enquadramento rígido da mediação.
O que é certo é que o novo 33 A
ideia de uma agora
virtual
vai-se impondo, apesar de ser facilmente comprová-vel que nada traz dc novo à
política moderna. Basta pensar que em meados do século passado o «saintsimonismo»
era também uma forma técnica de resolver o problema político, que operou
exactamente o contrário do que se esperava. Daí a ingenuidade de afirmações
como as de Pierre Lévy: «Os
cidadãos poderiam então participar num agenciamento sociotécnico de outro género,
que permitiria a grandes colectividades comunicar entre si em tempo real. O cyberspace
coopera-tivo
deve ser concebido como um verdadeiro serviço público. Esta agora virtual facilizaria a navegação e a orientação no
conhecimento; favoreceria as trocas de saberes; acolheria a construção
colectiva do sentido; ofereceria pontos de vista dinâmicos de situações
colectivas; e permitiria uma avaliação multi-critérios em tempo real de inúmeras
porposições, informações e processos em curso. O
cyberspace poderia tornar-se no lugar de uma nova forma de
democracia directa a grande escala». Cf.
LÉVY, Pierre, L'lntelligence Collective. Pour une AnthI opologie du
Cyberspace, Paris, La Découverte, 1994, p.70. 34 Tipcamente,
Nemo coloca o «espaço público hertziano» na continuidade do espaço público
clássico, a que apenas acrescenta «_ um
refinamento suplementar, dado que, nesse caso, os indivíduos estão
verdadeiramente isolados e ao mesmo tempo ligados à instância que representa a
totalidade social», in
Le Mónde, 2.10.84,
p.2 espaço
e o espaço clássico se recobrem, e nesse fenómeno desempe-nha um papel
essencial o imaginário contemporâneo. 4) Os entusiastas do
novo espaço, lido como uma forma de «democracia directa», tendem a identificá-lo
com o Cyberspace.
Esta fórmula é
sintomática. O espaço cibernético é um espaço de controlo substancialmente
distinto de controlo clássico35, pelo jurídico nomeadamente. O controlo da
potencialidade era uma forma de estabilizar a experiência em torno de uma
figura historicamente evi-dente, como é o caso do estado de direito. O que
enquadrava e limita-va o controlo dentro dessa própria figura que ele
potenciava, restrin-gindo-se ao mesmo tempo. Hoje, o controlo é o palco de uma
luta incessante em torno do «controlo do controlo», i.e, pelo domínio da
actualização. O visado é a actualidade tal como emerge no momento em que a
experiência, na sua totalidade, se transforma em meio absoluto do agir. A
virtualização implica o controlo, mas o controlo pode destruir a virtualização
e com ela a espontaneidade da política. 5) A representação
era o operador primeiro dos procedimentos clássicos de controlo. Com a crise do
espaço a própria representação sai abalada. Tudo indica que a representação
é integrada numa mime-sis
puramente
performativa, que resulta do encurtamento da distância entre representante e
representado, não sendo alheio a isso a acelera-ção que permite encurtar a
distância, fazendo a repetição descer ten-dencialmente para zero. Muito
impende sobre a distância, que agora tem de ser vista como uma dissonância
temporal. Só ela permite cur-to-circuitar o novo bloco formado pela permanente
reversibilidade do imaginário e do «real». Como diz Mark Taylor: «A acvcão imaginária 35
Gilles Deleuze tem vindo a desenvolver, embora esparsamente, algumas análises
da situação de poder actual, propondo a noção de sociedade de controlo.
Destc ponto de vista os textos «Contrôle et Devenir» e «Post-scriptum sur
les sociétés de contrôle» são altamente sugestivos, embora algo problemáticos.
Com eteito, para Deleuze, entrámos na sociedade de controlo, que se segue à
disciplinar (tratada por Foucault), como esta se seguiu à da soberania (a
famosa época clássica). Esta é a sociedade da cibernética, da comunicação,
caracterizada «non
plus par l'enfern1eI1t, mais par contrôle continu et
communication instantanée». Para responder a esta situação ele fala na criação
de «vacuolos de não-comunica,cão, interruptores, para
escapar ao controlo». Sucede, porém, que é possível retraçar uma
arqueologia do controlo que acompanha toda a ordem política, sem se confundir
com ela. Por nós tendemos a considerar que a metafísica da potência/acto
aristotélica é um dos momentos essenciais do pensamento do controlo. A resistência
deleuziana, sendo «exterior» à política realmente existente é, neste
sentido, bastante problemática. Cf.
Pourparlers: 1972-1990, Paris,
Minuit, 1991. não é irreal. Pelo contrário, na cultsim
a acção
real é necessaria-mente
imaginária»36. Quando
se pode dizer o inverso com a mesma pertinência37 é porque desembocamos numa
situação radicalmente distinta, que a representação já não consegue
apreender. Isso não signfica que possa ser abolida, como era o desejo utópico
do imaginá-rio da «democracia directa» e, afinal, de toda a idealização do
políti-co. A representação irá provavelmente permanecer, mas à custa da sua
constante destruição e restauração38. Embora de modo
demasiado expedito, verificamos que novos problemas começam a despontar a
partir da crise do espaço público. O novo espaço que está a ser constituído
não é menos ambivalente que aquele que até agora tem vigorado. As suas
possibilidades e os seus perigos, agora potenciados como nunca, não podem ser
contidos por uma qualquer revitalização do espaço público moderno. Mas, como
vimos, este estava demasiado preso do Estado, que é por essência impolítico.
A sua garantização jurídica, enquanto relativa ao público, acabou por
revelar-se ilusória. Trata-se de inscrever na medialidade um estilo de agir em
modo público, sempre indeterminado e aberto. O que é público só poderá
existir, por frágil que seja, como efeito de um agir orientado pela ideia de
política; na falta disso, ficará um simples simulacro desse agir. Cada vez
menos efectivo, cada vez mais adiado. 5.
Que fazer do espaço público que resta? Porque resta algo -
nem que seja o simulacro do seu modelo clássico, ou os restos da sua explosão
provocada por forças que não consegue conter, que cada vez mais
imaginariamente articula. A uto- 36 Cultsim traduz o termo americano simcult, combinando dois termos: cultura e simulação.
Cf.Mark Taylor e Esa Sarinen, Imagologies.
Media Philosophy, Londres, Routledge, 1994:8. 37 De
qualquer modo estas frases valem o que valem. São indicativas de um proble-ma,
não a sua descrição. Que talvez seja impossível se o fenómeno for
verdadeiro. Tudo indica, porém, que não se trata de uma experiência
generalizada, existindo apenas segmentariamente em certas práticas
computacionais e que, previsivel-mente, se irão ampliar. Se abolirão tudo o
resto, ou não, é algo que só pode ser respondido politicamente ou
tecnicamente. A segunda resposta implicaria a catástrofe do humano. 38
Dado o inexorável aceleramento tecnológico de todos os processos, destruição
e restauração tenderão a identificar-se, a converter-se uma na outra. Dai a
difusa sensação de um esteticismo que se vai disseminando, fazendo de tudo um
jogo arbitrário com as formas. pia
tecnológica de uma agora virtual é a forma final dessa sobrevi-vência simulacral. Como se tudo
pudesse permanecer na mesma, com um remendo aqui, um acrescento ali. Trata-se de
uma falsa solução para a falta de política e o excesso de Estado que
caracterizou o nosso século. Mas nunca se chega a pôr verdadeiramente em causa
a relação do Estado à política, como se este se viesse a dissolver por
motivos tecnológicos. Tanta subtilidade dos novos utopistas tem afinal como
efeito deixar tudo como está. O fundo de verdade
das utopias da agora
virtual assenta em
dois fenómenos interessantes: a difusão da medialidade e o peso crescente da
singularidade. Mas a política não é da ordem do individual. A crise dos
grandes conceitos agregadores como os de «grupo», de «colecti-vo» e, menos
paradoxalmente do que poderá parecer, de «indivíduo», deixa tudo num estado
turbilhonário, arrasta tudo para o vórtice da medialidade. Estamos a entrar
numa situação quasi-heraclitiana, com um rio cheio de fragmentos, de palavras,
de imagens, de desejos, de lixo, mas onde ninguém pode ficar à margem,
discutindo se o devir ou o eterno se contrapõem. O «eterno» é um simples
fragmento arrastado pelo turbilhão, pois não é mais do que uma imagem, uma
miragem, sem outras amarras que o estarjunto, que o ser arrastado juntamente,
com todos os outros fragmentos. É este o novum
da nosa situação:
no fim da história reencontramos a inumanidade da physis,
na sua máxi-ma
urgência. Os velhos mecanismos de controlo como os do espaço público e o
Estado podem cada vez menos nesta situação, que também os arrasta. É precisa
uma nova heroicidade, uma frieza capaz de afrontar a irremediável solidão com
que todos somos arrastados no turbilhão tecnologicamente acelerado. Não é
pelo facto de sermos todos arrastados que se pode formar uma comunidade. Mas é
preciso agir aí. Como disse Marx um dia: Hic
rodus hic salta . Sob pena de a
incapacidade para a afrontar a vertigem, a recusa do «conhecimento da dor»
(Gadda), prolongarem o que mais de pro-blemático estava oculto na ordem política
moderna - a vontade de controlo total e absoluto. Quanto mais as coisas «nos»
escaparem mais controlo daremos ao Estado. Quanto mais este se sentir
impoten-te, mais será dirigido pela vontade de controlo. A tarefa mais urgente
é a luta contra o controlo, contra o imaginário do controlo. Como disse Mark
Taylor «na
cultura do simulacro [...] o domínio da luta política é agora o imaginário»39. O
imaginário é o palco da luta porque nele se joga a polarização da
medialidade em torno de certas imagens, ideias e palavras. No controlo está em
jogo a capacidade constituinte de cada um e de todos, num momento em que a «consti-tuição»
clássica já não consegue controlar tudo o que de centrífugo existe na experiência. Dada a urgência da
situação, tudo depende do agir político. E se já não podemos falar de um
universal positivo, como era antanho a razão ou o diálogo, podemos falar ainda
de um universal
negativo. Todos
estamos arrastados, pressionados pela mesma situação. Con-duzidos até à
linha, como diria Jünger. Em suma, dada a universaliza-ção do problema do
controlo, todos estamos intimados a responder--lhe, sem esperar pelos outros.
Como de vários modos o diremos com estes ensaios, cada um tem de agir, aqui
e agora. A difusão
acelerada de todo o acto, que funciona como uma espécie de pontualizador do
grande vórtice, tem virtualidades políticas. Mas, aqui chegados, não
há nenhuma garantia de sucesso. Tam-bém nenhuma experiência anterior nos pode
certificar ou orientar. O passado e o futuro convergem para a medialidade
instantânea do actual. O que nos permite responder às perguntas: o que pode restar?
o qlle
merece perdurar? Não
devemos abandonar nada, nem mesmo aquilo que constituiu a ordem política
moderna, as nações, as línguas, as diferenças. Mesmo que estes apareçam
cada vez mais frágeis. Trata-se então de defender tudo? Não, apenas aquilo
porque estamos dispostos a lutar. 39 Taylor, op. ult. cit., «Telepolitics», 2. ESPAÇO
PÚBLICO, POLÍTICA E MEDIAÇÃO «Estás a caminhar. E embora nem sempre te dês conta
disso, estás sempre a cair. A cada passo cais para diante ligeiramente. E então
agarras-te a ti próprio para não cair. Uma e outra vez vais caindo. E então
agarras-te a ti próprio para não caires. E é assim que tu podes estar a
caminhar e a cair ao mesmo tempo».
Laurie
ANDERSON 1.
Introdução É indubitável que
o «espaço público», tal como se instituiu modernamente, está submetido a
pressões tais que o tornam quase um simulacro daquilo que era, ou daquilo que
os clássicos pretenderam que fosse. Bem mais complicado é ajuizar
relativamente ao que pode-rá vir a ser, numa época em que, como afirma John
Ballard, «pela primeira vez, a humanidade poderá negar a realidade e substituí-la pela sua versão
preferida». Quando a visão da «realidade»
que suporta a vontade de seguran-ça é ameaçada, tudo ganha contornos
inquietantes. Aparentemente, a crise do espaço público é de somenos importância,
mas o fenómeno anunciado por Ballard afecta também o destino do espaço público
e, correlativamente, da própria política. A ligação entre a política e o
espaço público, que sustentou durante duzentos anos a interacção dos
modernos, volta a instabilizar-se sob o impacto de novas forças e tendências,
potenciadas pelas novas tecnologias da informação. Será que se trata de
uma mutação radical, como alguns preten-dem, levando ao fim o espaço público?
(É a posição identificável com o «pós-modernismo», cujo fundo de verdade
é tão somente o desajus- tamento
das imagens da modernidade relativamente à experiência concreta que é a
nossa. Como não se dão conta dessa diferença ten-dem a «superar» a
modernidade quando afinal estão apenas a superar as teorias de onde partem, na
maioria das vezes o marxismo. Exemplo típico é o de Jean Baudrillard. Cf. Simulacres
et Simulation, Paris, Galilée.) Ou trata-se antes de uma evolução na
continuidade, manten-do-se basicamente na mesma? (É o caso daqueles que vêm
nas trans-formações actuais uma possibilidade efectiva de «democracia» senão
mesmo de democracia «directa», sem as «dificuldades» da mediação clássica
e verdadeiramente universal.) Parece-nos que nem uma coisa nem outra coisa: tudo
indica que a situação corresponde a algumas tendências últimas da
modernidade, as quais, vistas a esta luz, pode-rão finalmente ser olhadas de
frente, sem subterfúgios nem ilusões. A abordagem deste
assunto tem de escapar à aparente obviedade de que o espaço público, tal como
foi constituído classicamente, está a sofrer alterações em alguns dos seus
segmentos, porque o problema é mais radical e põe em causa a visão
tradicional desse mesmo espaço. Aliás, o espaço público nunca se reduziu à
oposição entre público e privado, nem à simples mediação entre sociedade
civil e Estado, nem mesmo à representação, artifício inventado para
despar-ticularizar os interesses individuais, conferindo-lhes universalidade.
Embora também por aí passasse, era mais do que isso, e, tendo uma certa relação
à política, nunca se reduziu a ela - apesar de enquadrado constitucionalmente,
o espaço público é acima de tudo um espaço de mediação, tendencialmente
universal, que suporta a actividade consti-tuinte dos modernos. E o que na
verdade está a entrar em crise é a noção de um espaço bem delimitado, um
espaço entre outros, como seriam os do privado, os da governação (ou do
Estado), para não falar da cultura, dos «campos sociais», etc.. Isso torna-se
mais evidente agora que a mediação está progressivamente a ser tecnologizada.
Sem sabermos muito bem o que nos trará, a evidência dessa mudança leva a que
se fale de «fim da modernidade» ou de «pós-moderno».
Uma coisa é certa: as concepções clássicas estão em nítida perda de
força, mas também é verdade que nunca se aplicaram bem ao mundo que
acreditaram ter construído. De um ponto de vista
transpolítico, o «espaço público», enquanto controlo da mediação, era uma
forma histórica de controlar o apare-cer, de prever o acontecimento,
antecipando-o ou produzindo-o. A preocupação moderna com a aparência,
remontando historicamente ao Iluminismo, é sinal da necessidade imperativa de
controlar o aparecer, numa situação permanentemente assolada pelo inesperado,
e onde tudo o que aparece fora do controlo humano surge como catástrofe ou como
acidentel - controlar o aparecer, que é da ordem da physis
e não do humano,
embora não haja aparecer sem o humano. Claro que, enquanto
forma histórica, nada há de «errado» com o espaço público. O que talvez
esteja em causa é a maneira como ainda nos pretendemos ater a essa forma, cujos
limites são hoje evidentes. A temporalidade política, basicamente anual, e a
temporalidade tenden-cialmente instantânea das tecnologias contemporâneas,
relacionam-se em grave assincronia cujo alcance urge reconhecer. E necessário
reflectir sobre esta nova situação. Todo este assunto é
político, sem se confundir com a Realpolitik,
a política realmente existente. As condições de visibilidade da política
alteram-se profundamente, enquanto necessidade, justamente no momento em que a
forma clássica deixa de ser capaz de a «conter», em todos os sentidos da
palavra. A invasão do «espaço público» pela cultura mediática, a
tecnologização das formas de mediação, a acele-rada Bilderstreit2
que ataca a
centralidade da palavra, a explosão das X
Com a modernidade institui-se uma dialéctica da aparência que l`unciona como
algo público e prático. Se a aparência é um motivo fulcral da filosofia, que
se torna obsessivo no platonismo, é na chamada modernidade que revela todo o
seu alcan-ce. De facto, entre Platão e Nietzsche a associação de aparência e
erro tende a deixar de ser um problema filosófico para se tornar um problema ético
ou político. A preocupação moderna com a aparência é uma peça essencial da
criação do sujoi-to racional e de controlo do aparecer, i.e, daquilo que é
passível de chegar à visi-bilidade. Quando
se fala de aparência, de visibilidade e de verdade, alguns vêem logo despontar
a «metafísica». Por mim, tendo a pensar que os famosos problemas metatísicos
sobre o conhecimento não eram mais do que aqueles que estavam ligados à imposição
de uma estrutura de controlo do acontecimento. A preocu-pação com o
contingente e o aleatório é um outro nome para o mesmo processo de controlo. O
desenvolvimento dos métodos de planeamento racional mais não visa-ram do que
controlar directamene o acontecimento, produzindo-o. O pensamento político,
mais prudencial, tenderá apenas controlar as formas do aparecer do
acon-tecimento. Cria-se para isso um «quadro» onde este deverá «repousar»,
o que é um dos motivos profundos do «constitucionalismo» jurídico-político. 2 A
«imagem» tornou-se um dos desafios essenciais para o pensamento que se acha
desmunido perante ela, apesar de nunca se ter escrito tanto sobre ela como nos
nossos dias. Sobre a «luta das imagens», cf. Donald Judd - «Bilderstreit» in
AD, New York New Art, 1989, pp.5 1-52.
Para uma análise das relações da imagem com a tecnologia, vj. Peter Weibel, Dir
Beschieunigund der Bilder in der Chronokratie, Berna, Bentelli Verlag, 1987. categorias
políticas clássicas, como a de soberania, etc., sendo fenómemos
omnipresentes, não têm validade em si. Mas, na medida em que nos colocam questões
urgentes, tudo depende da sua relação à política. Quanto mais o estado das
coisas se torna premente, mais a política se torna necessária3. 2.
Natureza paradoxal do espaço público clássico Como tese geral,
diremos que o espaço público constitui a forma histórica da mediação,
possibilitando e constrangendo em simultâneo a visibilidade da política. Essa
limitação tem que ver com as condi-ções próprias da modernidade. Apesar das
semelhanças formais com a
agora grega, há
uma diferença que se revela decisiva: o espaço público é abstracto e
deslocalizado, tendo limites extremamente flu-tuantes, o que não sucedia no «espaço»
grego ou medieval, que era concreto e localizado. Sendo abstracto, atravessa
todos os limites que as culturas, as comunidades, etc., Ihe colocavam. Mas é
essa caracte-rística que o faz corresponder à universalidade da ideia
de política, que
está em expectância em toda a experiência ocidental4. 0 cons-trangimento histórico
liga-se com a necessidade de controlar essa extensão excessiva, que só
politicamente podia ser percorrida, ou então ser suspendida. De certo modo, é
esse o papel do contratualismo e da ordenação institucional que enquadra o
espaço público. É uma forma de delimitá-la, nacionalmente, localmente - o
que é paradoxal, pois politicamente não cabe nesses espaços. É ao
liberalismo histórico, posicionado entre as revoluções e a sua estabilização
consti-tucional, que se deve a configuração clássica desse espaço, mas é
também a ele que deve a sua tremenda ambiguidade. Historicamente, o
novo espaço de mediação moderno acabou cir-cunscrito a um espaço de
representação dos interesses particulares da «sociedade civil», de modo a
permitir, positivamente, a universali- 3
Isso, porque a política é a resposta de todos, ou, pelo menos, potencialmente
de todos, a um problema humano. A resposta tecnocrática ou estética agrava
mais o problema, pois é impolítica. 4 Esta
ideia é a de uma «comunidade humana justa habitada por homens livres». A sua
radicalidade ideal fá-la conviver bastante mal com a polttica-realmente--existente,
baseada em particularidades que a adiam indefinidamente. Não se veja aqui
qualquer platonismo, pois a ideia de política é uma das «possibilidades
objectivas» do humano tal como se institui na sua «restância» histónca.
Isso é abordado em «A ideia de política», neste livro. zação
desses interesses particulares, e, negativamente, a salvaguarda dos direitos
individuais, das minorias, etc., limitando por aí o poder de Estado (e acima de
tudo da governação)5. Mas essa forma não esgotava as suas potencialidades,
nem as conseguia conter, embora fosse basicamente esta a visão liberal e democrática
que se plasmou constitucionalmente. Correspondendo a um movimento de
universali-zação inevitável6, o resultado acabou por ser a integração do
espaço público, enquanto modelo da mediação, no «espaço político»
domi-nado pelo Estado, que se apresenta assim como um «centro» de con-trolo
que acaba por afectar a chamada sociedade CiVil7. As evidentes limitações
deste modelo foram denunciadas desde o início. Basta lembrar as críticas
marxistas que denunciavam a sua falsa universalidade8, as teses radicais da «democracia
directa»9 ou a recusa anarquista da sua relação ao Estado. Mas não pesaram
menos as perversões intrínsecas a esse espaço, bem analisadas por Norberto
Bobbiol° e, nos nossos dias, a penetração da cultura mediática, que o
contamunaram com a sua atracção fatal pelo espectáculo. Mas talvez seja
apenas com as transformações provocadas pela tecnologização 5
Tratamento clássico deste problema é o de 1. Berlin em Four Essays on Liberty (1969) que contém o famoso ensaio sobre as
«duas concepções da liberdade», a liberdade positiva e a liberdade
negativa.. 6
Como mostrou Gilles Deleuze, o «capitalismo» varia constitutivamente entre a
universalização e a particularização. Esse movimento tensional é por ele
descrito como um processo de «desterritorialização e de «reterritorialização».
Cf. Deleuze & Guattari, L'Anti-Oedipe,
Paris, 1972, part. «La représentation capitaliste» (pp.285-3 1 2). 7 Aliás,
o movimento é duplo. A sociedade civil tende a invadi-lo também. Podería-mos
mesmo falar de duas fases que acabarão por convergir. A primeira, de contro-lo
do espaço público pelo estado, de que é exemplo a Alemanha de Bismarck no século
passado. A segunda, de controlo desse mesmo espaço pelos mass
media e a economia de que é exemplo o «americanismo». S
Nomeadamente as críticas de Habermas ao espaço público liberal. Não tanto
por ser falsamente universal, mas porque perverte a própria questão da
universalidade. Onde nos afastamos de Habermas é na sua fundação da
universalidade na ética e no consenso determinados aprioristicamente. Cf. «a
institucionalização da esfera pública no seio do Estado burguês: as contradições
do processo» in J. Habermas
Strukturwandel der Of eentlichkeit (1962). 9 De
que o «conselhismo» europeu, pós-primeira guerra mundial e activado pela
revolução russa, é um modelo fundamental. Para além de Rosa Luxemburgo, nome
importante desta corrente, todo o radicalismo político dos anos 20
era «con-selhista». 0
Cf. Norberto Bobbio, O Futuro da
Democracia, Lisboa, Dom Quixote, 1988. roz
ca e lvloaernraaae
141 generalizada
da experiência que o espaço público clássico encontra o seu limiar último.
De qualquer maneira, este desenvolvimento estava já implícito no próprio
modelo que vingou historicamente, um modelo que, visando a universalidade, se
realizava na particularidade. Essa tensão não deixou nunca de estar presente:
procurando a «comunidade humana», o espaço público apresentava-se como espaço
localizado, estatal e nacional. Ora, o que conferia
validade ao esforço dos clássicos da moder-nidade era a relação à ideia de
política, relação mais complicada do que aquilo que comummente se pensa. Há
nela uma ambivalência que faz com que a política seja obliterada pela idealização
da «universali-dade», exigindo a destruição do espaço concreto em que se
expressa historicamente. E o que podemos chamar de Idealpolitik, em que assentam todas as utopias. Esta última não é
menos perigosa que a Realpolitik, inteiramente
voltada para a gestão e administração do existente. A relação destas à política
é puramente negativa: não a podem realizar, embora a possam impedir". A
evidência, demasiada, da Realpolitik, leva
a ocultar os perigos da idealização do político. Na verdade, temos de partir
do existente, sem o sacralizar nem o negar -o que seria, sempre, uma ilusão
piedosa. Sendo a política um
agir livre, tudo pode recomeçar, mas não de qualquer maneira nem em qualquer
lugar'2. Esta não se reduz, é evi-dente, à maneira jurídica nem ao espaço público;
mas estes só têm sentido se neles vigorar a ideia de política. A Idealpolitik
e a Realpo-litik têm origem na ambivalência do espaço público clássico,
absoluti-zando uma das suas tendências. E no momento em que o espaço público
está a ser atravessado por forças aceleradoras, desmaterili-zadoras e, enfim,
universalizadoras, produzidas pelas tecnologais t l
Isso é particularmente verdadeiro no caso dos totalitarismos que são antipolíticos
de modo radical, podendo destruir a própria possibilidade da política. Que
isto não seJa reconhecido deve-se ao facto de os totalitarismos, tendendo a
controlar todos os espaços, actuarem também no espaço político. Mas isso não
demonstra a sua natureza política. Aliás, é o caso da tecnocracia ou da
burocracia que, mais dissimuladamente, não são menos anti-políticas. Na
medida em que a política tem de ser pensada como um acto livre que, enquanto
tal, pode originar «novos começos» como se não houvesse nada até esse acto
então ela é intrinsecamente violenta. A dignidade da política tem que ver com
ã «maneira» como suspende essa violência potencial, respeitando o existente,
como ponte para o novo. Evidentemente, não se reduz ao «respeito». Este é
uma condi-cão necessária, mas insuficiente. actuais,
o espaço de mediação parece estender-se a toda a experiência, atravessando
as fronteiras jurídicas, nacionais e estatais. O destino da política depende
do que podemos esperar deste movimento. O fenómeno mais radical da nossa época
está justamente no devir medialidade de
toda a experiência. Toda a dificuldade radica no alcance deste fenómeno. Será
que se trata ainda, à semelhança do espaço público clássico, de um espaço
de mediação - embora desme-surado - que está ao «serviço» do Estado, ou é
apenas um suporte para o infinito desdobramento da técnica? (Em ambas as hipóteses
o meio é o meio de um fim exterior e violento.) Ou, ao invés disso, será que
a própria experiência se liberta, desse modo, como pura activida-de
constituinte, como «experiência da
experiência»'3, como puro meio que a todos afecta, sendo agenciada pelo
agir de todos e de cada um? Esta última possibilidade, por ínfima que seja,
tem de ser privi-legiada. Que ela se possa colocar é precisamente o novum
da situação actual'4. A emergência da medialidade
pura está em correspondência com o surgimento da experiência enquanto um
permanente fazer-se em cada acto; em que cada acto está dotado de capacidade
constituinte (escapando assim ao controlo do agir colectivo através dos grandes
corpos constitucionais). Dizer que a experiência é o meio do agir sig-nifica
que a constituição está imediatamente em
acto'5, o que passa por uma alteração profunda da relação ao espaço e ao
tempo. Estando a manifestar-se actualmente, tal possibilidade já estava implícita
no espaço público clássico - estava implícita, mas barrada, censurada; a 3
Trata-se de uma formulação politicamente essencial, proposta por
Lacoue-Labarthc in L~ŒExpérience
de la Liberté, Paris, Galilée, 1990. 4
A
mediação está a emergir como um problema crucial do pensamento contemporâ-neo.
Mas não se trata de um problema teórico, remetendo para transformações
ocorridas no nosso século e que estão indissociavelmente ligadas à técnica
actual. McLuhan é, deste ponto de vista, uma referência incontornável,
estando a recru-descer de importância. A filosofia europeia, demasiado presa da
dialéctica, só muito recentemente se tem vindo a debruçar sobre este fenómeno.
A excepção que é Jean Baudrillard não desmente esta asserçao, já que nunca
foi além do quadro mcluhaniano. Daí a relevância dos estudos de Giorgio
Agamben, nomeadamente, Moyens sans Fins,
Paris,
Rivages, 1995. 5 É
conveniente distinguir entre «constituição» como processo de permanente
reelaboração prática da experiência e a «constituição» jurídico-política,
que enquadra racionalmente as acções públicas legítimas. Nao é,
evidentemente, por acaso que o constitucionalismo político se instituiu na
modernidade, que podemos definir como «a era da constituição». espacialidade
que serve de base ao agir político estava controlada por mecanismos jurídicos
e geopolíticos; a consistência própria do espaço estava cristalizada em
certas figuras históricas, apresentadas como as únicas «racionais», neste
sentido an-históricas - e
este era um efeito necessário, que levava Novalis a dizer: «Procuramos
por todo o lado o incondicionado [Unbedingt] mas só encontramos coisas [Dingen]». Que na realização
histórica da espacialidade política esta se con-cretize num rígido espaço de
consistência, submetido à lógica de potência do Estado, isso acarreta a
perda de tensão entre o agir e o agido, entre o incondicionado e o
condicionado. Ora, é nesta tensão que emerge o agir livre como meio absoluto,
e tudo indica que o desenvolvimento da técnica tendeu a «destruir» a consistência
do espaço público clássico. Com esse resultado, também a temporalidade do
agir é alterada - e profundamente. A estatização da política -indissociável
da obsessão pelo Estado -, implica a sobredeterminação do tempo pelo espaço.
O tempo é como que espacializado, i.e, dotado de consistência. A melhor metáfora
desta situação é a fórmula para-doxal de «e.spa,co
de tempo»l6. As
cronologias, os faseamentos elei-torais, os períodos de revisão
constitucional, a possibilidade de tudo isso reside num controlo da
temporalidade. Ora, esta é a melhor marca da finitude do agir. A abolição da
finitude é inseparável da eterni-zação do tempo jurídico. Com a crescente
velocidade tecnológica, que acelera enormemente a experiência, a consistência
temporal dos clás-sicos entra em crise. Esta breve descrição comprova
minimamente que há uma transformação profunda da experiência, de que depende
a repolitização da ordem política clássica. O que passa por libertá-la do
seu aprisionamento pelo Estado'7. É justamente isto que parece estar a 16 Parece
contraditório mas é um tenómeno determinado pelas condições modernas da
necessidade de controlo. Bom exemplo é o das eleições, que são um mecanismo
de «espacialização do tempo», resultante do aumento de controlo dos
processos de transmissão do poder. Basta recordar as análises de Ernst
Kantarowicz no famoso The çYing's two Bodies, com
o imenso dramatismo que implicava a morte do rei, sempre inesperada. ocasião de
crises mais ou menos profundas, para perceber que as eleições realizam o mesmo
processo, cronologizando o tempo. Assim, de quatro em quatro anos os governantes
saem do poder e são substituídos com a regulari-dade pendular do mecanismo
constitucional, obviando à mudança catastrófica anterior à modernidade. '7 Cujo
eteito era uma dada visão de pertença
ao
Estado, que fazia de todos os que não estavam incluídos nesse espaço, uns «párias».
No livro As Origens do totali-tarismo, Hannah
Arendt analisou com interesse este tenómeno, em si mesmo para-doxal. Se todos são
igualmente homens, a não pertença a uma nação, a Inglaterra, suceder.
Sem que isso deva surpreender, novos perigos estão a desper-tar' 8, 3.
Emergência do espaço público Para apreender algo
das novas tendências convém relançar a análise do espaço público
propriamente dito. Referimos já alguns traços da sua ambivalência, senão
mesmo da sua paradoxia. A forma que acabou por se impor historicamente tem que
ver com a coexis-tência de dois tipos de espaços: o espaço político que se
alarga a toda a «comunidade humana», i.e, à «humanidade», e os espaços políticos
nacionais e estatais. O espaço público, que serve de mediador entre os dois, e
em que se plasmou esta contradição, constitui uma novidade que não é mais
antiga que a modernidade. Falamos de modernidade, não enquanto época, mas como
ruptura da experiência Ocidental quanto ao fundamento. Enquanto antes era dado a priori (assentando nos deuses ou em Deus), agora surge a posteriori, como
efeito da acção e vontade humanas. Numa rápida síntese, o espaço público
surge quando o cosmos
antigo perde a sua
densidade ontológica e a sua centralidade teocrática; quando a «totalidade»,
mais do que dada, é postulada como um projecto; quando a acção surge como
puramente racional e humana, etc. Sendo um processo necessário, e não apenas
do ponto de vista político, de modo algum se esgota nas formas que começou a
assumir desde os princípios do século XIX. Nele estão ínsitas outras
possibilidades bem mais interessantes. Dissemos que, com a
emergência do espaço público, estava em causa a possibilitação da política
em condições de universalidade. Se é verdade que o seu modelo é em larga
medida o da agora
grega, esse modelo
seria uma pura ilusão sem a libertação dos indivíduos da
- ou
a França ou Portugal, implica a perda correlativa do estatuto de «homem».
Como se só fosse possível ser homem sendo ao mesmo tempo «inglês», «francês»,
etc. Boa
parte desses perigos têm base na permanente tentação de estender a lógica do
Estado a todo o novo espaço, seja interior seja exterior. No caso do «espaço
virtual», ou Cyberspace, isso
é bem nítido. Sabemos das intenções da adminis-tração Clinton em controlar
a Internet,
usando
o argumento da luta contra a «pornografia». A moralização pública sempre
foi uma t`orma de estender o poder de Estado. A tentativa de Clinton tem
merecido forte resistência dos cidadãos americanos, pelo menos aqueles
reunidos em torno da Electronic Frontier Founda-tion. Para uma defesa das posições
do Estado americano, cf. «D'ont Worry, Be Happy: Why Clipper is good for you»
de Stewart A. Baker in WMED,
206,
Junho 1994, pp.]00, 132-133. 1()4
JOSe
A.
lfirAgAnÇa ae IVllRa~ŒCaa escravidão,
da servidão medieval, das suas comunidades de pertença. Ora, tal
universalidade está em correspondência com um fenómeno absoluto, o da ruptura
generalizada da experiência tradicional. Na sua radicalidade é dificilmente
apreensível. Nenhuma das descrições de que dispomos é satisfatória, nem
mesmo a sua caracterização como nihilismo (Nietzsche). Mas uma coisa é certa,
a partir de um certo momento surge à consciência pública uma outra forma de
experiência em que tudo se transforma em problema, ou seja, em que todas as «evidências»
e «fundamentos» são problematizados; em que tudo tem de ser justificado; em
que tudo pode ser negado. Se nos detivermos minimamente sobre esta questão, é
extraordinário que a partir de certo momento tudo aquilo que era aceite com a
maior naturalidade do mundo passe de repente a ser encarado como constituindo,
ou conten-do, um problema. Que se passe a exigir
justificação de todos os actos, de todas as instituições, isso instaura a «era
da crítica»'9, a partir da qual tudo é inevitavelmente político. Este
excesso teria de ser controlado, e aí desempenhou papel crucial a divisão
entre público e privado. Só o público tem de justificar-se, i.e, só ele é
passível de ser interrogado do ponto de vista da universalidade, sendo a
garantida pelo espaço público clássico e pela forma assumida por este
processo, através da «discussão livre». Foram, aliás, estas novas funções
que levaram a identificar o espaço público com um espa,co
de palavra. O
efeito inevitável foi a redução da política ao diálogo, e a mediação à
palavra. É através desta que o possível vem ao «aberto», é através dela
que se decide o que merece perdurar ou o que tem de ser recusado. Quando a
palavra foi invadida pela imagem, como está hoje a ocorrer, percebe--se a crise
profunda que isso implica. Todavia, a
sobredeterminação da política pelo Estado não deixou de ter efeitos na própria
palavra. Aliás, a própria necessidade de jus-tificação era já um efeito da
crise do mundo medieval e, simultanea-mente, era uma forma de controlar os seus
efeitos. Assim, a tal pala-vra que no jogo eleitoral já só sobrevive como «voto»
e não como «voz» é o resultado de um controlo por estratégias nominalistas
que caracterizam a palavra tal como ela foi modalizada pelo espaço públi-co. O
que remete para um fenómeno mais geral, uma crise profunda, que permeia toda a
experiência, sendo bem patente na separação radi- 19
Sobre isto, ver o texto «Inevitabilidade da crise», neste livro. cal
entre as palavras e as coisas. A ligação ontológica entre o mundo e as
palavras desaparece, sendo preciso reinstaurá-la. E na procura de um novo
relacionamento entre as palavras e as coisas que encontra-mos a matriz geral da
tecnologização da experiência. Trata-se de «recortar» o mundo pelo nome,
para melhor poder dispor dele. É assim que deve ser compreendida a frase de
Foucault: "é preciso, sem d~Œ'cvida, ser nominalista: o
poder não é uma institui,cão, e não é umcc estruttera nem uma certa potência
de que alguns estariam dotados; é o nome que se dá a uma situa,cão estratégica
complexa numa socie-dade determinada"(Foucault, 1976: 123).
Muito se joga em torno desta experiência de ordenação, de nomeação, de
hierarquização atraves da palavra. É um processo que escapa à mera esfera do
político (de facto, a esfera do Estado), alargando-se a programas de todo o género,
às «ideologias» ou às «visões do mundo» que Ihe ser-vem de horizonte de
sentido20. Ora, o domínio da
palavra sobre a mediação é já uma forma de controlar o agir político.
Surgindo historicamente como possibilidade de acção livre, ao ser reelaborado
como palavra tende a ser circunscri-to no interior de rígidos quadros jurídicos.
Daí que o espaço público clássico2', criado para possibilitar a política,
acabe por a diferir per-manentemente, não conseguindo escapar à lógica de
controlo instau-rada para responder à crise generalizada que constitui o
moderno. A centralidade da representa~Œcão22
provém justamente
deste pôr à distân- 20
De
um ponto de vista muito geral, o t`enómeno essencial que está aqui em causa é
a natureza estratégica das nomeações (e classificações), visando o controlo
da expe-riência. É no novo poder dapalavra que se irão fundar as «concepçoes
do mundo» e as «visões do mundo». E sabido que o primeiro conccito foi
formulado com algum rigor por Dilthey, vindo a ser reelaborado criticamente por
Heidegger, que preterirá o termo Weltbilden,
imagens
do mundo. Cf. Martin Heidegger (1949), "L'Époque des "conceptions du
monde" (or. "Die Zeit des Weltbildes") in CIIemins Qui ne Mènent Nulle Part (or.
Holzwege), Paris,
Gallimard, pp.99- 146. 21
Na realidade o espaço público clássico é todo o espaço público que há. O
que chamamos actualmente «espaço público», colonizado pelos media, alargado pelas redes de telecomunicações,
constitui um híbndo incaracterístico, em que o espaço público clássico
sobrevive apenas como um simulacro. O que tem vantagens e desvantgens, como
procurarei mostrar. 22
A representação é um motivo central da ordem moderna, tendo relevância em
todos os domínios da experiência para além do político. Especificamente do
ponto de vista político trata-se de uma forma para resolver praticamente a
oposição metafísica entre presença e ausência. Assunto bem dramático, pois
se todos os homens são cidadãos, e portanto
dotados de capacidade política, todos deveriam estar presentes na decisão,
deliberação e governo. Mas uns estão mais presentes do cia
para controlar, com o que se procura estabilizar a experiência. Não significa
isto que o espaço público seja exclusivamente uma estrutura de controlo, dada
a ambivalência constitutiva que contém. É devido a essa ambivalência que
esse espaço mantinha as suas virtualidades, sendo de facto incapaz de se fechar
absolutamente. A representação, altamente codificada, que servia de esquema à
mediação, mormente para gerir a relação entre presença e ausência,
proximidade e distân-cia, etc., está a ser desmantelada por forças
(nomeadamente tecnológi-cas, mas também económicas e culturais) que, em princípio,
estaria encarregada de controlar. Mas este resultado era inevitável dada a
crispação dos clássicos em torno do poder da palavra. Ora, esta revelou-se
demasiado fraca para resistir a essas forças, quando não as potenciou. É esta estrutura
abstracta, em toda a sua ambivalência, que é essencial e não as formas
concretas que assumiu na Inglaterra, em França ou nos Estados Unidos. Apenas na
sua concretização histórica esta se identifica com o espaço nacional-estatal,
ou com a divisão entre público e privado. O mesmo se dirá da sua função de
mediação entre os interesses gerais do Estado e os interesses dos indivíduos
ou dos grupos. Todos estes factores devem-se a razões históricas contin-gentes,
como as guerras religiosas europeias, mas baseiam-se também na maneira como a
modernidade recolocou as tarefas históricas da Europa. Isto é essencial, pois
se não se considerasse absolutamente a criação de uma espaço de mediação,
isento de violência física, nem teria sentido falar de resolução de
conflitos, de debate, etc.23. O pro-blema é que a forma histórica que assumiu
era demasiado rígida para poder resistir a tendências internas e externas ao
espaço público clás-sico, nomeadamente no que se refere à sua relação com
o Estado. que
outros, como se sabe. Isso não impede que algo de essencial passe pela pro-blemática
da representação, sendo discutível se está ou não a perder força nas condições
actuais da «telepresença». Para uma análise deste conceito do ponto de vista
político, vale a pena referir o estudo clássico de Hanna Pitkin, The Concept of Representation, Berkeley,
University of California Press, 1972. 23
Não pretendemos afirmar que as funções do espaço público eram puramente
estra-tégias. Limitamo-nos a sublinhar que a sua forma histórica é
insuficiente para garantir a política, tal como a pensaram os grandes autores
clássicos. Muitas das críticas ao «espaço público» sustentam que a sua função
de mediação é imaginária ou uma forma de «violência simbólica», mas isso
deve-se à confusão entre legiti-midade a
priori e
legitimidade a posteriori. E esta
última que obriga o poder a justificar-se, e não se diga que não há diferença
entre agir sem justificação e agir sabendo que se tem de ser capaz de
apresentar justificação para o acto. É nesta questão que assenta toda a
problemática da legitimação, politicamente essencial. A tentativa de alargá-lo,
afinal resultante das críticas marxistas e outras ao modelo clássico, foi
acompanhada pelo extensionamento do Estado a esferas então «atribuídas» à
sociedade civil. Mas a actual crise do Estado-Providência é o contra-golpe de
tais tentativas, que em si mesmas já revelavam uma incompreensão do papel do
liberalis-mo «histórico», voltado essencialmente para o enquadramento
consti-tucional dos direitos individuais e, consequentemente, para a limita-ção
do poder de governar24. A preocupação com a divisão dos poderes comprova-o.
Deste ponto de vista, o espaço constitucional é vazio e neutro, puramente
abstracto, sendo os seus limites a lei. Mas só o agir político Ihe pode dar um
conteúdo qualquer, uma figuração concreta. Ora, a desmesura do Estado leva a
reprimir o agir em favor da admi-nistração, da gestão e, em suma, da governação.
Ao mesmo tempo que o constitucionalismo procurava potenciar a capacidade
constituinte de todos, mas sem qualquer garantia, o que se implantava era uma máquina
de governar, que é sempre uma «política» de poucos e para poucos, tanto mais
forte quanto o Estado se revela como ingoverná-vel. O Estado buscará tanta
mais potência quanto menos consiga res-ponder às forças que Ihe escapam. E
estas são cada vez mais fortes. O ciclo infernal da potência que assim se abre
pode pôr em causa a própria ideia de política. Em síntese, a difusa
sensação de crise do Estado é inseparável das transformações do espaço público
que tendeu a controlar, e que, de certo modo, entrou por isso em declínio
inevitável. No fundo, con-fundiu-se a mediação do agir político com a
legitimação formal do poder de governar. A universalização da mediação a
que estamos a assistir, que é em si mesma bastante problemática, tende a
destruir o modelo clássico do espaço público, que vigorou durante cem anos e
que ainda hoje alimenta o imaginário político. É este que está em causa e não
o movimento histórico que o animava politicamente. 24
É preciso distinguir o «liberalismo histórico» das políticas liberais.
Confundi-las sempre deu mau resultado, devido à paixão política. Boa parte
dos ataques ao «liberalismo» devem-se ao facto de se Ihe exigir mais do que
historicamente Ihe corresponde: a garantia de neutralidade perante todos os
valores e aquilo a que Berlin chamou «liberdade negativa». Parece pouco mas é
essencial. Seja como for, o í`undamento das críticas vem do romantismo que
sempre desconfiou da «representação» e do «individualismo», sustentando um
comunitarismo virulento. A vontade de fusão, o desejo de uma mimesis perfeita, torna o romantismo político fácil
presa dos totalitarismos. A
ambivalência de tal espaço, que não cabia na forma rígida que venceu
historicamente, acabou por originar a auto-destruição deste último, por
motivos intrínsecos e extrínsecos. Sem pretendermos à exaustividade,
referimos os seguintes aspectos: a) A tendência a
concentrar-se num espaço político particular, identificado com a nação25,
estava em nítida contradição com o imaginário da Polis
universal que
animou os contratualistas clássicos, e que expressava a ideia política mais
radical do ocidente. Ocultando, sem o poder anular, a pura espacialidade que
constitui o meio do agir político, fechando-se em torno da legitimação do
governar, foi obri-gado a expulsar a crítica para o seu exterior, tornando-se
num espaço progressivamente inerte e despolitizador. A crescente abstenção
política é disso um sinal evidente. b) As categorias políticas
que suportavam a ordem política moderna, como é o caso da «soberania»26,
estabilizadas de modo redu-tor, identificando-a com o Estado-nação, eram antitéticas
com as tendências à globalização e a mundialização, não apenas económicas,
fenómeno que se tornou massivo neste século. A crispação em torno das
fronteiras, de que dependia a governabilidade, não consegue resis-tir às forças
deslocalizadoras que atravessam todas as «fronteiras». c) A decisão
racional dos governos, que se baseava no fechamen-to do espaço concentrado do
Estado e no controlo total da informação, cujo apuramento dependia dos
processo públicos, foi abalada por uma série de «incertezas» e pelo
encurtamento do tempo de decisão. d) O operador político
do espaço público - a representação -revelou-se incapaz de produzir os
efeitos esperados. Como mostrou Bobbio, as consequências foram: l) ao indivíduo
autónomo contra-põe-se a rede de interesses dos grupos de pressão e a persistência
das 25
Daí a contusão da polis
com
a cidade, desta com a capital e desta com a nação, etc.. Esta série de
derivas não é casual, longe disso. Indicam todas a difícil com-posição da
«cidade humana» com as cidades ou nações reais. 26
É claro que, à medida que se governamentalizava a política e se reduzia esta
ao domínio do Estado, houve uma restrição excessiva da ideia de soberania,
retiran-do-a do monarca para a transferir para grandes agregados imaginários
como o «povo» ou a «nação». O que leva alguns autores, como é o caso de
Agamben, a defenderem o fim da própria ideia de soberania. Mas há na
modernidade toda uma outra linhagem que faz assentar a soberania no agir livre
dos indivíduos, que tem um ponto alto em Sade e que no nosso século é
defendida por Bataille ou Beüys. Oligarquias;
2) à representação política (mandato livre) opõe-se o mandato imperativo
regido por interesses particulares (neo-corporati-vismo); 3) à democratização
social, a persistência de ilhas não demo-cráticas (casos da empresa, da
escola, etc.); 4) à visibilidade e contro-lo do poder pelo espaço público, o
poder invisível dos Estados dentro do Estado); S) à participação de todos na
vida colectiva, contrapõe-se a impreparação dos cidadãos e o
abstencionismo27. Esta série de para-doxos consusbstancia-se na própria ideia
de representação, que estaria encarregada de garantir a presença em ausência,
o agir dos que estão fora do espaço-de-Estado. O efeito foi a despolitização
generalizada do Estado. e) A tendência a
reduzir-se à palavra amputava o agir político de aspectos essenciais,
reduzindo-o ao diálogo (e em contrapartida o agir ficava limitado à «participação»).
A pura espacialidade de onde irrompia o agir, fundindo todo o existente em
figuras únicas e irrepe-tíveis é assim destruída. O resultado é que a própria
ideia de um espaço da palavra livre acabou por ser lesado. A palavra, que é
uma forma de universalização, depressa acabou por ser controlada
juridi-camente, mas também pelos discursos e os programas28. A que se deve
acrescentar o seu aprisionamento à captura da política pelo Esta-do ou a sua
profissionalização pelos media
autorizados por
este. A redução da voz ao voto, ligou a palavra ao regulamento burocrático,
aos decretos e aos regulamentos. Os novos meios de propagar a pala-vra, como se
observa em Serajevo, pelo recurso à Internet
e aos novos 27
Cf. Norbert Bobbio, O
Futuro da Democracia, cit.. As análises de Bobbio ievam a concluir, um pouco contra elas, que
afinal, mais do que promessas e esperanças da democracia, estamos perante
verdadeiros paradoxos constitutivos da ordem política moderna. E a forma dos
paradoxos que tem vindo a mudar, pelo que não é evidente que possamos
dispensar os paradoxos modernos por decisões tecnológi-cas (a cyberdemocracy),
jurídicas
(nco-liberalismos) ou fundacionalistas (teorias da justiça, nomeadamente de
Rawls). 28
É no palavreado sem sentido que desaba sobre o espaço público que Hannah
Arendt vê um sinal claro de crise do político: «Isso
era bem real pois tinha lugar publicamente; não tinha nada de secreto nem de
misterioso. E contudo não era absolutamente visivel para todos, nem nada fácil
de perceber; porque até ao momento bem deMindo em que a catástrofe atingba
tuJo e toda a gente ela estava dissimulada não por realidades, mas por
palavras, as palavras enganadoras e perfeitamente eficazes de quase todas as
personagens oficiais, que encontravam, continuameItte e em numerosas e
engenhosas variantes, uma explica,cão satisfa-tória para os acontecimentos
preoeupantes e os receios justificados» (in Homens em Tempos Sombrios, Relógio
D'Água, Lisboa, 1991). J
U J ç A . p p suportes,
estão a revelar os limites da palavra burocrática. Mas tam-bém da própria
palavra. f) O espaço público
foi alargado a pontos incomportáveis, para o modelo clássico, com a entrada
dos mass media no
chamado espaço público e a subsequente «espectacularização» do político.
A desme-sura tem que ver com a crise da palavra certa e, mais ainda, com a
maquinação das paixões através da visão. O seu efeito, foi a invasão do
espaço pela imagem, o silenciamento da palavra política, submer-gido pelo «nevoeiro»
da hiper-informação que tudo torna indistinto. Situação esplendidamente
sugerida pelo Fog de
Carpenter, onde sobre o espaço público se abate uma figura que apaga toda a
figuralidade (muito embora seja depois reposta, o que já é mais duvidoso). É
sabido que a crítica ao espectáculo foi desenvolvida nos anos 60, havendo
alguns que consideram que hoje é uma «categoria» ultrapas-sada. Temos alguns
argumentos que contrariam esta tese, mas interes-sa-nos analisar neste texto um
outro factor, o da tecnologização do virtual. Aliás, não por acaso os
defensores do virtual consideram superada a categoria de espectáculo29. g) A invasão do espaço
público pelo desenvolvimento das redes e das novas tecnologias da informação.
O efeito foi o alargamento desse espaço a toda a experiência, o que é
positivo, correspondendo à neces-sidade de universalização da política,
embora tenda a assumir formas perversas. O espaço público é o nome histórico
do espaço de media-ção. Foi reduzido a espaço político ou controlado
politicamente, ficando assim localizado. A tecnologização da mediação de
massa levou à deslocalização desse espaço e as novas tecnologias conduzi-ram
esse espaço ao desaparecimento. 29
Entre
muitos outros, é este o caso de Leo Scheer que no seu último livro afirma: «A
política faz parte, hoje, desses domínios obsoletos que têm que ver com o que
o telespectador designa como «zappé». Mesmo
o espectáculo, que a salvou apenas durante o tempo efémero de uma «situa,cão»
transitória, já não tem a capacidade de a reactivar; assistimos, perturbados
e divertidos, à sua dissolu,cão catódica. Uma vez retirados do seu contexto
ficcional, os acontecimentos, e com eles a polztica, dissolvem-se como peda,cos
de gelo na transparência do líquido mediático até se confundirem nele». Cf.
Leo Scheer, La Démocratie Virtuelle,
Paris, Seuil, 1995. Para além da evidência da descrição, que quadra bem com
uma série de fenómenos, o entusiasmo de Scheer é excessivo. O político tem a
eterni-dade do humano, sendo independente de todas as suas figurações históricas.
E na verdade o que ele critica é a Realpolitik
dominada
pelo Estado. 4.
Explosão do espac,o público Alguns destes
factores de crise têm que ver com a sua organiza-ção interna, e isso explica
que esteja a ocorrer uma auto-destituição do espaço clássico provocada pelos
seus paradoxos constitutivos. A sua natureza paradoxal torna-se manifesta à
medida que se desdobram os seus paradoxos através da prórpia prática do espaço
público. Este desdobramento é possibilitador, ou não, da política? O que é
certo é que o controlo previsto pelos clássicos falhou e está a arrastar-nos
no seu precipício. Outros factores, aparentemente exteriores, não deixa-ram de
o afectar profundamente. A potência que os anima tem que ver com a forma
contemporânea da técnica. Dizemos que são aparentes, porque justamente o
Estado propiciou o desenvolvimento da técnica privilegiando as tecnologias de
controlo - uma mescla de software
e de orgware
- que o estão a pôr
em causa. Trata-se de um processo de convergência de todas as tecnologias
convertíveis em linguagem digital, que se aplica a toda a experiência. Seja
como for, o resultado inegável é a entrada em crise do espaço público clássico.
Mas essa crise já está inscrita no próprio espaço público. Tudo reside em
saber se a desestabilização da forma clássica e a subsequente extensão a
toda a experiência, que assim surge como um continuum
espacial,
aprofunda a despolitização ou se, pelo contrário, a propicia. Mas tam-bém
poderá suceder que nos deixe num ponto que a torne imperativa. O que remete
para um fenómeno ambivalente. Ao mesmo tempo que o espaço público clássico
entrava em crise, ele era libertado de algumas das suas premissas, dando a ver
algumas das suas possibilidades actuais e também alguns dos seus perigos. No
imenso continuum
de fragmentos
ligados entre si pela aceleração tecnológica poderá estar a emergir a
possibilidade de uma pura medialidade, de tal modo que muitos dos esforços
actuais estão voltados para a controlar. Contra as novas formas de controlo,
toda a urgência está em dar uma nova visiblidade à ideia de política. Ora, esta
possibilidade é diferida pelo espaço público clássico, que era uma peça
essencial da arquitectónica política moderna. Essa ambivalência resolve-se,
dissolvendo a forma histórica em que se cristalizou, quando entre a idealidade
e o seu funcionamento concreto ocorrem curto-circuitos, dos quais já
descrevemos alguns traços principais. Nos pontos de instabilização dessa
forma ressurge um novo bloco - de possibilitação-suspensão da ideia de política.
Com efeito, se esta não é realizável definitivamente, sob pena da liberdade da
acção ficar adstrita a uma decisão histórica irreversível, também não
pode ficar «atrás» enquanto pura sublimidade. Desde que as suas condições
históricas surgiram, e estas são as da «modernidade», ela está toda aí, em
cada momento, sem nunca se esgotar. Cada forma histórica é um modo da sua
presença, mas também um efeito da sua ausência, i.e, da sua potencialização
permanente30. Com a crise do espaço
público clássico - a sua forma contempo-rânea é já um simulacro deste -,
chega ao fim uma visão limitada da mediação, que o restringia às instituições
enquadradas constitucio-nalmente, aos espaços historicamente ligados às nações
(i.e, com a geopolítica) ou então mais decisivamente à sua relação ao
Estado. A consequência inevitável acabou por ser a crescente despolitização
da vida pública, a difusão de um hedonismo banalizado, a espectaculari-zação
do próprio Estado, etc.. Agora é a própria mediação que emerge como uma
questão decisiva. Ao generalizar-se, cria um espaço exten-so para a efectivação
da ideia de política, que se joga em todo o lado como agir e não apenas como
diálogo, ou administração, etc.. Se aceitarmos que tal ideia abrange
virtualmente a totalidade da Polis
humana - enquanto comunidade justa de homens livres -, a sua poten-cialização
depende da libertação da espacialidade pura do político3'. A implicação
imediata é que o agir é o meio de mediar e que a expe-riência é o meio do
agir. O novo espaço de
mediação foi constituído pela destituição do espaço público clássico,
mas também pelo seu prolongamento por outros mecanismos, consistindo
essencialmente no desenvolvimento exponencial das tecnologias da informação -
a crescente digitalização de toda a experiência. Aquilo que ainda se insiste
em denominar «espaço público» é, portanto, um misto das formas
institucionais, mas 30
Descontando todas as dificuldades intrínsecas à mediação, i.e, que entre os
gover-nantes e os cidadãos houvesse uma relação perfeita e um entendimento
imediato, ou que os governantes resultassem de um processo de delogação sem
interrupções e perfeito, ainda restariam problemas de sobra e que têm que ver
com uma defini-ção lata de mediação. A mediação, ao tornar-se absoluta,
redobra-se sobre si própria, polanzando-se. Por exemplo, no caso de um
projecto, a sua realização no tempo, meio por que tem de passar absolutamente,
faz do tempo um meio e um objecto (um obstáculo). O controlo absoluto do meio
tenderia a abolir a sua medialidade, i.e, tudo se realizaria instantaneamente,
etc.. 3i Sendo
puramente potencial, percebe-se que não pode realizar-se de uma vez por todas,
precipitando-se numa figura única e que se repetiria para todo o sempre. Era
essa visão que animava as utopias. Tal espacialidade absoluta tem de ser
pensada como uma chora,
onde
tudo é acolhível sem ser destruído no acolhimento. amplamente
transformadas relativamente à forma clássica, com a convergência destas duas
tendências. Independentemente da justeza do nome, está a impôr-se uma nova
forma de mediação, cujo destino ainda mal podemos entrever. O facto de se
pretender integrá-lo dentro dos padrões clássicos do contratualismo não
deixa de produzir as suas ambiguidades, que se devem acima de tudo à
sobredeterminação, por parte do imaginário moderno da política, do novo espaço
virtual, extenso, leve e invisível. É esta remarca,cao pela
estruturação moderna do político que confere uma nova ambivalência à
configuração da medialidade con-temporânea, embora esta difira em muitos
aspectos da ambivalência clássica. Limitar-nos-emos a pôr em relevo alguns
dos seus aspectos essenciais. Assim: I ) O efeito mais
radical da crise do espaço público clássico foi a emergência da mediação
como problema imediato. Ou seja, o «meio» já não é uma forma de
instrumentalização das relações entre «pólos» ou «identidades» estáveis.
Agora as identidades são um efeito da medialidade, que se afirma como pura
constitutividade. A mediação está a sair da sua «ancoragem» instrumental,
que caracterizava a visão racionalista. O meio era um instrumento para atingir
uma dada finali-dade ou intenção, articulando entre si dois «pólos» autónomos
e exte-riores à mediação. Dada a evidente implausibilidade desta concepção
percebe-se que, para manter este quadro, fosse necessário ir acrescen-tando
outros elementos: um dos mais conhecidos é o «contexto». Ora o contexto é
basicamente o meio. Com a emergência da mediação como absolutamente geral,
tudo decorre nesse meio, no qual se podem distinguir certas polarizações, que
são uma maneira de o meio pros-seguir por
outros meFos. A famosa e incompreendida frase de McLuhan, «The
medium is the message» (o meio é a mensagem), parece ter ganho uma pertinência
quase universal32. Mas esta mediali-dade está presa da configuração deformada
por dois séculos de prática do espaço público clássico. 32
McLuhan é o único autor da «sociologia dos media»
do
qual ainda há muito a esperar, sendo preciso desinseri-lo da estrutura
espectacular em que ele próprio se delxou enredar. E preciso separar o que há
de Camille Paglia em McLuhan. A enorme vantagem de McLuhan está no facto de
conseguir articular a mediação com a questão da técnica, que é afinal o
motivo profundo que está a libertar a mediação do instrumentalismo
racionalista. 2) Dissemos já que a
ideia de política surge com toda a urgência no instante em que a mediação se
absolutiza. Isso é contraditório com a perduração do imaginário clássico,
das suas categorias, classifica-ções e nomes. É nessa permanência que se
apoia a tese da transforma-ção do espaço público em uma agora
virtual33. Isso
levara ainda Philippe Nemo a falar, nos anos 80, de um «espaço público
hertzia-no»34. Trata-se, evidentemente, de uma extensão metafórica do espaço
público clássico, numa situação que o destituiu. Seja como for, esta extensão
não é um «erro», mas uma necessidade. O espaço clássico, mesmo
transformado, tende a articular-se complexamente com o novo espaço virtual. 3) Há uma tendência
a considerar o virtual como um fenómeno que anula a distinção entre ficção
e «realidade». Como se o antigo sistema fosse real por ser limitado, e o novo
fosse virtual por ser ten-dencialmente infinito. Na verdade, nada disso ocorre,
pois o espaço publico clássico era eminentemente «simbólico», ou melhor,
artificial. A sua evidência remontava à maneira como positivara historicamente
uma relação em si mesma virtual à potencialidade. A chamada «reali-dade»
implicava um dado controlo da potencialidade, operado pelo próprio «espaço»
da representação clássica, que tendia a repetir-se automaticamente. Que essa
repetição tenha sido quebrada, isso tem o efeito de libertar o controlo da
potencialidade que é feito através de um enquadramento rígido da mediação.
O que é certo é que o novo 33 A
ideia de uma agora
virtual
vai-se impondo, apesar de ser facilmente comprová-vel que nada traz dc novo à
política moderna. Basta pensar que em meados do século passado o «saintsimonismo»
era também uma forma técnica de resolver o problema político, que operou
exactamente o contrário do que se esperava. Daí a ingenuidade de afirmações
como as de Pierre Lévy: «Os
cidadãos poderiam então participar num agenciamento sociotécnico de outro género,
que permitiria a grandes colectividades comunicar entre si em tempo real. O cyberspace
coopera-tivo
deve ser concebido como um verdadeiro serviço público. Esta agora virtual facilizaria a navegação e a orientação no
conhecimento; favoreceria as trocas de saberes; acolheria a construção
colectiva do sentido; ofereceria pontos de vista dinâmicos de situações
colectivas; e permitiria uma avaliação multi-critérios em tempo real de inúmeras
porposições, informações e processos em curso. O
cyberspace poderia tornar-se no lugar de uma nova forma de
democracia directa a grande escala». Cf.
LÉVY, Pierre, L'lntelligence Collective. Pour une AnthI opologie du
Cyberspace, Paris, La Découverte, 1994, p.70. 34 Tipcamente,
Nemo coloca o «espaço público hertziano» na continuidade do espaço público
clássico, a que apenas acrescenta «_ um
refinamento suplementar, dado que, nesse caso, os indivíduos estão
verdadeiramente isolados e ao mesmo tempo ligados à instância que representa a
totalidade social», in
Le Mónde, 2.10.84,
p.2 espaço
e o espaço clássico se recobrem, e nesse fenómeno desempe-nha um papel
essencial o imaginário contemporâneo. 4) Os entusiastas do
novo espaço, lido como uma forma de «democracia directa», tendem a identificá-lo
com o Cyberspace.
Esta fórmula é
sintomática. O espaço cibernético é um espaço de controlo substancialmente
distinto de controlo clássico35, pelo jurídico nomeadamente. O controlo da
potencialidade era uma forma de estabilizar a experiência em torno de uma
figura historicamente evi-dente, como é o caso do estado de direito. O que
enquadrava e limita-va o controlo dentro dessa própria figura que ele
potenciava, restrin-gindo-se ao mesmo tempo. Hoje, o controlo é o palco de uma
luta incessante em torno do «controlo do controlo», i.e, pelo domínio da
actualização. O visado é a actualidade tal como emerge no momento em que a
experiência, na sua totalidade, se transforma em meio absoluto do agir. A
virtualização implica o controlo, mas o controlo pode destruir a virtualização
e com ela a espontaneidade da política. 5) A representação
era o operador primeiro dos procedimentos clássicos de controlo. Com a crise do
espaço a própria representação sai abalada. Tudo indica que a representação
é integrada numa mime-sis
puramente
performativa, que resulta do encurtamento da distância entre representante e
representado, não sendo alheio a isso a acelera-ção que permite encurtar a
distância, fazendo a repetição descer ten-dencialmente para zero. Muito
impende sobre a distância, que agora tem de ser vista como uma dissonância
temporal. Só ela permite cur-to-circuitar o novo bloco formado pela permanente
reversibilidade do imaginário e do «real». Como diz Mark Taylor: «A acvcão imaginária 35
Gilles Deleuze tem vindo a desenvolver, embora esparsamente, algumas análises
da situação de poder actual, propondo a noção de sociedade de controlo.
Destc ponto de vista os textos «Contrôle et Devenir» e «Post-scriptum sur
les sociétés de contrôle» são altamente sugestivos, embora algo problemáticos.
Com eteito, para Deleuze, entrámos na sociedade de controlo, que se segue à
disciplinar (tratada por Foucault), como esta se seguiu à da soberania (a
famosa época clássica). Esta é a sociedade da cibernética, da comunicação,
caracterizada «non
plus par l'enfern1eI1t, mais par contrôle continu et
communication instantanée». Para responder a esta situação ele fala na criação
de «vacuolos de não-comunica,cão, interruptores, para
escapar ao controlo». Sucede, porém, que é possível retraçar uma
arqueologia do controlo que acompanha toda a ordem política, sem se confundir
com ela. Por nós tendemos a considerar que a metafísica da potência/acto
aristotélica é um dos momentos essenciais do pensamento do controlo. A resistência
deleuziana, sendo «exterior» à política realmente existente é, neste
sentido, bastante problemática. Cf.
Pourparlers: 1972-1990, Paris,
Minuit, 1991. não é irreal. Pelo contrário, na cultsim
a acção
real é necessaria-mente
imaginária»36. Quando
se pode dizer o inverso com a mesma pertinência37 é porque desembocamos numa
situação radicalmente distinta, que a representação já não consegue
apreender. Isso não signfica que possa ser abolida, como era o desejo utópico
do imaginá-rio da «democracia directa» e, afinal, de toda a idealização do
políti-co. A representação irá provavelmente permanecer, mas à custa da sua
constante destruição e restauração38. Embora de modo
demasiado expedito, verificamos que novos problemas começam a despontar a
partir da crise do espaço público. O novo espaço que está a ser constituído
não é menos ambivalente que aquele que até agora tem vigorado. As suas
possibilidades e os seus perigos, agora potenciados como nunca, não podem ser
contidos por uma qualquer revitalização do espaço público moderno. Mas, como
vimos, este estava demasiado preso do Estado, que é por essência impolítico.
A sua garantização jurídica, enquanto relativa ao público, acabou por
revelar-se ilusória. Trata-se de inscrever na medialidade um estilo de agir em
modo público, sempre indeterminado e aberto. O que é público só poderá
existir, por frágil que seja, como efeito de um agir orientado pela ideia de
política; na falta disso, ficará um simples simulacro desse agir. Cada vez
menos efectivo, cada vez mais adiado. 5.
Que fazer do espaço público que resta? Porque resta algo -
nem que seja o simulacro do seu modelo clássico, ou os restos da sua explosão
provocada por forças que não consegue conter, que cada vez mais
imaginariamente articula. A uto- 36 Cultsim traduz o termo americano simcult, combinando dois termos: cultura e simulação.
Cf.Mark Taylor e Esa Sarinen, Imagologies.
Media Philosophy, Londres, Routledge, 1994:8. 37 De
qualquer modo estas frases valem o que valem. São indicativas de um proble-ma,
não a sua descrição. Que talvez seja impossível se o fenómeno for
verdadeiro. Tudo indica, porém, que não se trata de uma experiência
generalizada, existindo apenas segmentariamente em certas práticas
computacionais e que, previsivel-mente, se irão ampliar. Se abolirão tudo o
resto, ou não, é algo que só pode ser respondido politicamente ou
tecnicamente. A segunda resposta implicaria a catástrofe do humano. 38
Dado o inexorável aceleramento tecnológico de todos os processos, destruição
e restauração tenderão a identificar-se, a converter-se uma na outra. Dai a
difusa sensação de um esteticismo que se vai disseminando, fazendo de tudo um
jogo arbitrário com as formas. pia
tecnológica de uma agora virtual é a forma final dessa sobrevi-vência simulacral. Como se tudo
pudesse permanecer na mesma, com um remendo aqui, um acrescento ali. Trata-se de
uma falsa solução para a falta de política e o excesso de Estado que
caracterizou o nosso século. Mas nunca se chega a pôr verdadeiramente em causa
a relação do Estado à política, como se este se viesse a dissolver por
motivos tecnológicos. Tanta subtilidade dos novos utopistas tem afinal como
efeito deixar tudo como está. O fundo de verdade
das utopias da agora
virtual assenta em
dois fenómenos interessantes: a difusão da medialidade e o peso crescente da
singularidade. Mas a política não é da ordem do individual. A crise dos
grandes conceitos agregadores como os de «grupo», de «colecti-vo» e, menos
paradoxalmente do que poderá parecer, de «indivíduo», deixa tudo num estado
turbilhonário, arrasta tudo para o vórtice da medialidade. Estamos a entrar
numa situação quasi-heraclitiana, com um rio cheio de fragmentos, de palavras,
de imagens, de desejos, de lixo, mas onde ninguém pode ficar à margem,
discutindo se o devir ou o eterno se contrapõem. O «eterno» é um simples
fragmento arrastado pelo turbilhão, pois não é mais do que uma imagem, uma
miragem, sem outras amarras que o estarjunto, que o ser arrastado juntamente,
com todos os outros fragmentos. É este o novum
da nosa situação:
no fim da história reencontramos a inumanidade da physis,
na sua máxi-ma
urgência. Os velhos mecanismos de controlo como os do espaço público e o
Estado podem cada vez menos nesta situação, que também os arrasta. É precisa
uma nova heroicidade, uma frieza capaz de afrontar a irremediável solidão com
que todos somos arrastados no turbilhão tecnologicamente acelerado. Não é
pelo facto de sermos todos arrastados que se pode formar uma comunidade. Mas é
preciso agir aí. Como disse Marx um dia: Hic
rodus hic salta . Sob pena de a
incapacidade para a afrontar a vertigem, a recusa do «conhecimento da dor»
(Gadda), prolongarem o que mais de pro-blemático estava oculto na ordem política
moderna - a vontade de controlo total e absoluto. Quanto mais as coisas «nos»
escaparem mais controlo daremos ao Estado. Quanto mais este se sentir
impoten-te, mais será dirigido pela vontade de controlo. A tarefa mais urgente
é a luta contra o controlo, contra o imaginário do controlo. Como disse Mark
Taylor «na
cultura do simulacro [...] o domínio da luta política é agora o imaginário»39. O
imaginário é o palco da luta porque nele se joga a polarização da
medialidade em torno de certas imagens, ideias e palavras. No controlo está em
jogo a capacidade constituinte de cada um e de todos, num momento em que a «consti-tuição»
clássica já não consegue controlar tudo o que de centrífugo existe na experiência. Dada a urgência da
situação, tudo depende do agir político. E se já não podemos falar de um
universal positivo, como era antanho a razão ou o diálogo, podemos falar ainda
de um universal
negativo. Todos
estamos arrastados, pressionados pela mesma situação. Con-duzidos até à
linha, como diria Jünger. Em suma, dada a universaliza-ção do problema do
controlo, todos estamos intimados a responder--lhe, sem esperar pelos outros.
Como de vários modos o diremos com estes ensaios, cada um tem de agir, aqui
e agora. A difusão
acelerada de todo o acto, que funciona como uma espécie de pontualizador do
grande vórtice, tem virtualidades políticas. Mas, aqui chegados, não
há nenhuma garantia de sucesso. Tam-bém nenhuma experiência anterior nos pode
certificar ou orientar. O passado e o futuro convergem para a medialidade
instantânea do actual. O que nos permite responder às perguntas: o que pode restar?
o qlle
merece perdurar? Não
devemos abandonar nada, nem mesmo aquilo que constituiu a ordem política
moderna, as nações, as línguas, as diferenças. Mesmo que estes apareçam
cada vez mais frágeis. Trata-se então de defender tudo? Não, apenas aquilo
porque estamos dispostos a lutar. 39 Taylor, op. ult. cit., «Telepolitics», 2. |