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ESPAÇO PÚBLICO, POLÍTICA E MEDIAÇÃO  

J. Bragança de Miranda

 

«Estás a caminhar. E embora nem sempre te dês conta disso, estás sempre a cair. A cada passo cais para diante ligeiramente. E então agarras-te a ti próprio para não cair. Uma e outra vez vais caindo. E então agarras-te a ti próprio para não caires. E é assim que tu podes estar a caminhar e a cair ao mesmo tempo».

                            Laurie ANDERSON

 

1. Introdução

 

É indubitável que o «espaço público», tal como se instituiu modernamente, está submetido a pressões tais que o tornam quase um simulacro daquilo que era, ou daquilo que os clássicos pretenderam que fosse. Bem mais complicado é ajuizar relativamente ao que pode-rá vir a ser, numa época em que, como afirma John Ballard, «pela primeira vez, a humanidade poderá negar a realidade e substituí-la pela sua versão preferida».

Quando a visão da «realidade» que suporta a vontade de seguran-ça é ameaçada, tudo ganha contornos inquietantes. Aparentemente, a crise do espaço público é de somenos importância, mas o fenómeno anunciado por Ballard afecta também o destino do espaço público e, correlativamente, da própria política. A ligação entre a política e o espaço público, que sustentou durante duzentos anos a interacção dos modernos, volta a instabilizar-se sob o impacto de novas forças e tendências, potenciadas pelas novas tecnologias da informação.

Será que se trata de uma mutação radical, como alguns preten-dem, levando ao fim o espaço público? (É a posição identificável com o «pós-modernismo», cujo fundo de verdade é tão somente o desajus-

tamento das imagens da modernidade relativamente à experiência concreta que é a nossa. Como não se dão conta dessa diferença ten-dem a «superar» a modernidade quando afinal estão apenas a superar as teorias de onde partem, na maioria das vezes o marxismo. Exemplo típico é o de Jean Baudrillard. Cf. Simulacres et Simulation, Paris, Galilée.) Ou trata-se antes de uma evolução na continuidade, mantendo-se basicamente na mesma? (É o caso daqueles que vêm nas transformações actuais uma possibilidade efectiva de «democracia» senão mesmo de democracia «directa», sem as «dificuldades» da mediação clássica e verdadeiramente universal.) Parece-nos que nem uma coisa nem outra coisa: tudo indica que a situação corresponde a algumas tendências últimas da modernidade, as quais, vistas a esta luz, poderão finalmente ser olhadas de frente, sem subterfúgios nem ilusões.

A abordagem deste assunto tem de escapar à aparente obviedade de que o espaço público, tal como foi constituído classicamente, está a sofrer alterações em alguns dos seus segmentos, porque o problema é mais radical e põe em causa a visão tradicional desse mesmo espaço. Aliás, o espaço público nunca se reduziu à oposição entre público e privado, nem à simples mediação entre sociedade civil e Estado, nem mesmo à representação, artifício inventado para despar-ticularizar os interesses individuais, conferindo-lhes universalidade. Embora também por aí passasse, era mais do que isso, e, tendo uma certa relação à política, nunca se reduziu a ela - apesar de enquadrado constitucionalmente, o espaço público é acima de tudo um espaço de mediação, tendencialmente universal, que suporta a actividade constituinte dos modernos. E o que na verdade está a entrar em crise é a noção de um espaço bem delimitado, um espaço entre outros, como seriam os do privado, os da governação (ou do Estado), para não falar da cultura, dos «campos sociais», etc.. Isso torna-se mais evidente agora que a mediação está progressivamente a ser tecnologizada. Sem sabermos muito bem o que nos trará, a evidência dessa mudança leva a que se fale de «fim da modernidade» ou de «pós-moderno». Uma coisa é certa: as concepções clássicas estão em nítida perda de força, mas também é verdade que nunca se aplicaram bem ao mundo que acreditaram ter construído.

De um ponto de vista transpolítico, o «espaço público», enquanto controlo da mediação, era uma forma histórica de controlar o aparecer, de prever o acontecimento, antecipando-o ou produzindo-o. A preocupação moderna com a aparência, remontando historicamente ao Iluminismo, é sinal da necessidade imperativa de controlar o aparecer, numa situação permanentemente assolada pelo inesperado, e onde tudo o que aparece fora do controlo humano surge como catástrofe ou como acidental - controlar o aparecer, que é da ordem da physis e não do humano, embora não haja aparecer sem o humano.

Claro que, enquanto forma histórica, nada há de «errado» com o espaço público. O que talvez esteja em causa é a maneira como ainda nos pretendemos ater a essa forma, cujos limites são hoje evidentes. A temporalidade política, basicamente anual, e a temporalidade tendencialmente instantânea das tecnologias contemporâneas, relacionam-se em grave assincronia cujo alcance urge reconhecer. E necessário reflectir sobre esta nova situação.

Todo este assunto é político, sem se confundir com a Realpolitik, a política realmente existente. As condições de visibilidade da política alteram-se profundamente, enquanto necessidade, justamente no momento em que a forma clássica deixa de ser capaz de a «conter», em todos os sentidos da palavra. A invasão do «espaço público» pela cultura mediática, a tecnologização das formas de mediação, a acelerada Bilderstreit2 que ataca a centralidade da palavra, a explosão das

 

 

X Com a modernidade institui-se uma dialéctica da aparência que l`unciona como algo público e prático. Se a aparência é um motivo fulcral da filosofia, que se torna obsessivo no platonismo, é na chamada modernidade que revela todo o seu alcan-ce. De facto, entre Platão e Nietzsche a associação de aparência e erro tende a deixar de ser um problema filosófico para se tornar um problema ético ou político. A preocupação moderna com a aparência é uma peça essencial da criação do sujoi-to racional e de controlo do aparecer, i.e, daquilo que é passível de chegar à visi-bilidade.

Quando se fala de aparência, de visibilidade e de verdade, alguns vêem logo despontar a «metafísica». Por mim, tendo a pensar que os famosos problemas metatísicos sobre o conhecimento não eram mais do que aqueles que estavam ligados à imposição de uma estrutura de controlo do acontecimento. A preocu-pação com o contingente e o aleatório é um outro nome para o mesmo processo de controlo. O desenvolvimento dos métodos de planeamento racional mais não visa-ram do que controlar directamene o acontecimento, produzindo-o. O pensamento político, mais prudencial, tenderá apenas controlar as formas do aparecer do acon-tecimento. Cria-se para isso um «quadro» onde este deverá «repousar», o que é um dos motivos profundos do «constitucionalismo» jurídico-político.

 

2 A «imagem» tornou-se um dos desafios essenciais para o pensamento que se acha desmunido perante ela, apesar de nunca se ter escrito tanto sobre ela como nos nossos dias. Sobre a «luta das imagens», cf. Donald Judd - «Bilderstreit» in AD, New York New Art, 1989, pp.5 1-52. Para uma análise das relações da imagem com a tecnologia, vj. Peter Weibel, Dir Beschieunigund der Bilder in der Chronokratie, Berna, Bentelli Verlag, 1987.

categorias políticas clássicas, como a de soberania, etc., sendo fenómemos omnipresentes, não têm validade em si. Mas, na medida em que nos colocam questões urgentes, tudo depende da sua relação à política. Quanto mais o estado das coisas se torna premente, mais a política se torna necessária3.

 

 

2. Natureza paradoxal do espaço público clássico

 

Como tese geral, diremos que o espaço público constitui a forma histórica da mediação, possibilitando e constrangendo em simultâneo a visibilidade da política. Essa limitação tem que ver com as condições próprias da modernidade. Apesar das semelhanças formais com a agora grega, há uma diferença que se revela decisiva: o espaço público é abstracto e deslocalizado, tendo limites extremamente flutuantes, o que não sucedia no «espaço» grego ou medieval, que era concreto e localizado. Sendo abstracto, atravessa todos os limites que as culturas, as comunidades, etc., Ihe colocavam. Mas é essa caracte-rística que o faz corresponder à universalidade da ideia de política, que está em expectância em toda a experiência ocidental4. 0 cons-trangimento histórico liga-se com a necessidade de controlar essa extensão excessiva, que só politicamente podia ser percorrida, ou então ser suspendida. De certo modo, é esse o papel do contratualismo e da ordenação institucional que enquadra o espaço público. É uma forma de delimitá-la, nacionalmente, localmente - o que é paradoxal, pois politicamente não cabe nesses espaços. É ao liberalismo histórico, posicionado entre as revoluções e a sua estabilização constitucional, que se deve a configuração clássica desse espaço, mas é também a ele que deve a sua tremenda ambiguidade.

Historicamente, o novo espaço de mediação moderno acabou circunscrito a um espaço de representação dos interesses particulares da «sociedade civil», de modo a permitir, positivamente, a universali-

 

 

3 Isso, porque a política é a resposta de todos, ou, pelo menos, potencialmente de todos, a um problema humano. A resposta tecnocrática ou estética agrava mais o problema, pois é impolítica.

 

4 Esta ideia é a de uma «comunidade humana justa habitada por homens livres». A sua radicalidade ideal fá-la conviver bastante mal com a polttica-realmente--existente, baseada em particularidades que a adiam indefinidamente. Não se veja aqui qualquer platonismo, pois a ideia de política é uma das «possibilidades objectivas» do humano tal como se institui na sua «restância» histónca. Isso é abordado em «A ideia de política», neste livro.

 

zação desses interesses particulares, e, negativamente, a salvaguarda dos direitos individuais, das minorias, etc., limitando por aí o poder de Estado (e acima de tudo da governação)5. Mas essa forma não esgotava as suas potencialidades, nem as conseguia conter, embora fosse basicamente esta a visão liberal e democrática que se plasmou constitucionalmente. Correspondendo a um movimento de universali-zação inevitável6, o resultado acabou por ser a integração do espaço público, enquanto modelo da mediação, no «espaço político» domi-nado pelo Estado, que se apresenta assim como um «centro» de con-trolo que acaba por afectar a chamada sociedade CiVil7.

As evidentes limitações deste modelo foram denunciadas desde o início. Basta lembrar as críticas marxistas que denunciavam a sua falsa universalidade8, as teses radicais da «democracia directa»9 ou a recusa anarquista da sua relação ao Estado. Mas não pesaram menos as perversões intrínsecas a esse espaço, bem analisadas por Norberto Bobbiol° e, nos nossos dias, a penetração da cultura mediática, que o contamunaram com a sua atracção fatal pelo espectáculo. Mas talvez seja apenas com as transformações provocadas pela tecnologização

 

 

5 Tratamento clássico deste problema é o de 1. Berlin em Four Essays on Liberty (1969) que contém o famoso ensaio sobre as «duas concepções da liberdade», a liberdade positiva e a liberdade negativa..

 

6 Como mostrou Gilles Deleuze, o «capitalismo» varia constitutivamente entre a universalização e a particularização. Esse movimento tensional é por ele descrito como um processo de «desterritorialização e de «reterritorialização». Cf. Deleuze & Guattari, L'Anti-Oedipe, Paris, 1972, part. «La représentation capitaliste» (pp.285-3 1 2).

 

7 Aliás, o movimento é duplo. A sociedade civil tende a invadi-lo também. Podería-mos mesmo falar de duas fases que acabarão por convergir. A primeira, de contro-lo do espaço público pelo estado, de que é exemplo a Alemanha de Bismarck no século passado. A segunda, de controlo desse mesmo espaço pelos mass media e a economia de que é exemplo o «americanismo».

 

S Nomeadamente as críticas de Habermas ao espaço público liberal. Não tanto por ser falsamente universal, mas porque perverte a própria questão da universalidade. Onde nos afastamos de Habermas é na sua fundação da universalidade na ética e no consenso determinados aprioristicamente. Cf. «a institucionalização da esfera pública no seio do Estado burguês: as contradições do processo» in J. Habermas Strukturwandel der Of eentlichkeit (1962).

 

9 De que o «conselhismo» europeu, pós-primeira guerra mundial e activado pela revolução russa, é um modelo fundamental. Para além de Rosa Luxemburgo, nome importante desta corrente, todo o radicalismo político dos anos 20 era «con-selhista».

 

0 Cf. Norberto Bobbio, O Futuro da Democracia, Lisboa, Dom Quixote, 1988.

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generalizada da experiência que o espaço público clássico encontra o seu limiar último. De qualquer maneira, este desenvolvimento estava já implícito no próprio modelo que vingou historicamente, um modelo que, visando a universalidade, se realizava na particularidade. Essa tensão não deixou nunca de estar presente: procurando a «comunidade humana», o espaço público apresentava-se como espaço localizado, estatal e nacional.

Ora, o que conferia validade ao esforço dos clássicos da moder-nidade era a relação à ideia de política, relação mais complicada do que aquilo que comummente se pensa. Há nela uma ambivalência que faz com que a política seja obliterada pela idealização da «universalidade», exigindo a destruição do espaço concreto em que se expressa historicamente. E o que podemos chamar de Idealpolitik, em que assentam todas as utopias. Esta última não é menos perigosa que a Realpolitik, inteiramente voltada para a gestão e administração do existente. A relação destas à política é puramente negativa: não a podem realizar, embora a possam impedir". A evidência, demasiada, da Realpolitik, leva a ocultar os perigos da idealização do político. Na verdade, temos de partir do existente, sem o sacralizar nem o negar -o que seria, sempre, uma ilusão piedosa.

Sendo a política um agir livre, tudo pode recomeçar, mas não de qualquer maneira nem em qualquer lugar'2. Esta não se reduz, é evi-dente, à maneira jurídica nem ao espaço público; mas estes só têm sentido se neles vigorar a ideia de política. A Idealpolitik e a Realpo-litik têm origem na ambivalência do espaço público clássico, absoluti-zando uma das suas tendências. E no momento em que o espaço público está a ser atravessado por forças aceleradoras, desmaterili-zadoras e, enfim, universalizadoras, produzidas pelas tecnologias.

 

 

 

t l Isso é particularmente verdadeiro no caso dos totalitarismos que são antipolíticos de modo radical, podendo destruir a própria possibilidade da política. Que isto não seJa reconhecido deve-se ao facto de os totalitarismos, tendendo a controlar todos os espaços, actuarem também no espaço político. Mas isso não demonstra a sua natureza política. Aliás, é o caso da tecnocracia ou da burocracia que, mais dissimuladamente, não são menos anti-políticas.

 

Na medida em que a política tem de ser pensada como um acto livre que, enquanto tal, pode originar «novos começos» como se não houvesse nada até esse acto então ela é intrinsecamente violenta. A dignidade da política tem que ver com ã «maneira» como suspende essa violência potencial, respeitando o existente, como ponte para o novo. Evidentemente, não se reduz ao «respeito». Este é uma condi-cão necessária, mas insuficiente.

 

actuais, o espaço de mediação parece estender-se a toda a experiência, atravessando as fronteiras jurídicas, nacionais e estatais. O destino da política depende do que podemos esperar deste movimento. O fenómeno mais radical da nossa época está justamente no devir medialidade de toda a experiência. Toda a dificuldade radica no alcance deste fenómeno. Será que se trata ainda, à semelhança do espaço público clássico, de um espaço de mediação - embora desmesurado - que está ao «serviço» do Estado, ou é apenas um suporte para o infinito desdobramento da técnica? (Em ambas as hipóteses o meio é o meio de um fim exterior e violento.) Ou, ao invés disso, será que a própria experiência se liberta, desse modo, como pura actividade constituinte, como «experiência da experiência»'3, como puro meio que a todos afecta, sendo agenciada pelo agir de todos e de cada um? Esta última possibilidade, por ínfima que seja, tem de ser privilegiada. Que ela se possa colocar é precisamente o novum da situação actual'4.

A emergência da medialidade pura está em correspondência com o surgimento da experiência enquanto um permanente fazer-se em cada acto; em que cada acto está dotado de capacidade constituinte (escapando assim ao controlo do agir colectivo através dos grandes corpos constitucionais). Dizer que a experiência é o meio do agir significa que a constituição está imediatamente em acto'5, o que passa por uma alteração profunda da relação ao espaço e ao tempo. Estando a manifestar-se actualmente, tal possibilidade já estava implícita no espaço público clássico - estava implícita, mas barrada, censurada; a

 

 

3 Trata-se de uma formulação politicamente essencial, proposta por Lacoue-Labarthc in L~ŒExpérience de la Liberté, Paris, Galilée, 1990.

 

4 A mediação está a emergir como um problema crucial do pensamento contemporâ-neo. Mas não se trata de um problema teórico, remetendo para transformações ocorridas no nosso século e que estão indissociavelmente ligadas à técnica actual. McLuhan é, deste ponto de vista, uma referência incontornável, estando a recru-descer de importância. A filosofia europeia, demasiado presa da dialéctica, só muito recentemente se tem vindo a debruçar sobre este fenómeno. A excepção que é Jean Baudrillard não desmente esta asserçao, já que nunca foi além do quadro mcluhaniano. Daí a relevância dos estudos de Giorgio Agamben, nomeadamente, Moyens sans Fins, Paris, Rivages, 1995.

 

5 É conveniente distinguir entre «constituição» como processo de permanente reelaboração prática da experiência e a «constituição» jurídico-política, que enquadra racionalmente as acções públicas legítimas. Nao é, evidentemente, por acaso que o constitucionalismo político se instituiu na modernidade, que podemos definir como «a era da constituição».

espacialidade que serve de base ao agir político estava controlada por mecanismos jurídicos e geopolíticos; a consistência própria do espaço estava cristalizada em certas figuras históricas, apresentadas como as únicas «racionais», neste sentido an-históricas - e este era um efeito necessário, que levava Novalis a dizer: «Procuramos por todo o lado o incondicionado [Unbedingt] mas só encontramos coisas [Dingen]».

Que na realização histórica da espacialidade política esta se concretize num rígido espaço de consistência, submetido à lógica de potência do Estado, isso acarreta a perda de tensão entre o agir e o agido, entre o incondicionado e o condicionado. Ora, é nesta tensão que emerge o agir livre como meio absoluto, e tudo indica que o desenvolvimento da técnica tendeu a «destruir» a consistência do espaço público clássico. Com esse resultado, também a temporalidade do agir é alterada - e profundamente. A estatização da política -indissociável da obsessão pelo Estado -, implica a sobredeterminação do tempo pelo espaço. O tempo é como que espacializado, i.e, dotado de consistência. A melhor metáfora desta situação é a fórmula para-doxal de «e.spa,co de tempo»l6. As cronologias, os faseamentos elei-torais, os períodos de revisão constitucional, a possibilidade de tudo isso reside num controlo da temporalidade. Ora, esta é a melhor marca da finitude do agir. A abolição da finitude é inseparável da eternização do tempo jurídico. Com a crescente velocidade tecnológica, que acelera enormemente a experiência, a consistência temporal dos clássicos entra em crise. Esta breve descrição comprova minimamente que há uma transformação profunda da experiência, de que depende a repolitização da ordem política clássica. O que passa por libertá-la do seu aprisionamento pelo Estado'7. É justamente isto que parece estar a

 

 

16 Parece contraditório mas é um tenómeno determinado pelas condições modernas da necessidade de controlo. Bom exemplo é o das eleições, que são um mecanismo de «espacialização do tempo», resultante do aumento de controlo dos processos de transmissão do poder. Basta recordar as análises de Ernst Kantarowicz no famoso The çYing's two Bodies, com o imenso dramatismo que implicava a morte do rei, sempre inesperada. ocasião de crises mais ou menos profundas, para perceber que as eleições realizam o mesmo processo, cronologizando o tempo. Assim, de quatro em quatro anos os governantes saem do poder e são substituídos com a regulari-dade pendular do mecanismo constitucional, obviando à mudança catastrófica anterior à modernidade.

 

'7 Cujo eteito era uma dada visão de pertença ao Estado, que fazia de todos os que não estavam incluídos nesse espaço, uns «párias». No livro As Origens do totali-tarismo, Hannah Arendt analisou com interesse este tenómeno, em si mesmo para-doxal. Se todos são igualmente homens, a não pertença a uma nação, a Inglaterra,

 

suceder. Sem que isso deva surpreender, novos perigos estão a despertar' 8,

 

 

3. Emergência do espaço público

 

Para apreender algo das novas tendências convém relançar a análise do espaço público propriamente dito. Referimos já alguns traços da sua ambivalência, senão mesmo da sua paradoxia. A forma que acabou por se impor historicamente tem que ver com a coexistência de dois tipos de espaços: o espaço político que se alarga a toda a «comunidade humana», i.e, à «humanidade», e os espaços políticos nacionais e estatais. O espaço público, que serve de mediador entre os dois, e em que se plasmou esta contradição, constitui uma novidade que não é mais antiga que a modernidade. Falamos de modernidade, não enquanto época, mas como ruptura da experiência Ocidental quanto ao fundamento. Enquanto antes era dado a priori (assentando nos deuses ou em Deus), agora surge a posteriori, como efeito da acção e vontade humanas. Numa rápida síntese, o espaço público surge quando o cosmos antigo perde a sua densidade ontológica e a sua centralidade teocrática; quando a «totalidade», mais do que dada, é postulada como um projecto; quando a acção surge como puramente racional e humana, etc. Sendo um processo necessário, e não apenas do ponto de vista político, de modo algum se esgota nas formas que começou a assumir desde os princípios do século XIX. Nele estão ínsitas outras possibilidades bem mais interessantes.

Dissemos que, com a emergência do espaço público, estava em causa a possibilitação da política em condições de universalidade. Se é verdade que o seu modelo é em larga medida o da agora grega, esse modelo seria uma pura ilusão sem a libertação dos indivíduos da

 

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ou a França ou Portugal, implica a perda correlativa do estatuto de «homem». Como se só fosse possível ser homem sendo ao mesmo tempo «inglês», «francês», etc.

 

Boa parte desses perigos têm base na permanente tentação de estender a lógica do Estado a todo o novo espaço, seja interior seja exterior. No caso do «espaço virtual», ou Cyberspace, isso é bem nítido. Sabemos das intenções da adminis-tração Clinton em controlar a Internet, usando o argumento da luta contra a «pornografia». A moralização pública sempre foi uma t`orma de estender o poder de Estado. A tentativa de Clinton tem merecido forte resistência dos cidadãos americanos, pelo menos aqueles reunidos em torno da Electronic Frontier Founda-tion. Para uma defesa das posições do Estado americano, cf. «D'ont Worry, Be Happy: Why Clipper is good for you» de Stewart A. Baker in WMED, 206, Junho 1994, pp.]00, 132-133.

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escravidão, da servidão medieval, das suas comunidades de pertença. Ora, tal universalidade está em correspondência com um fenómeno absoluto, o da ruptura generalizada da experiência tradicional. Na sua radicalidade é dificilmente apreensível. Nenhuma das descrições de que dispomos é satisfatória, nem mesmo a sua caracterização como nihilismo (Nietzsche). Mas uma coisa é certa, a partir de um certo momento surge à consciência pública uma outra forma de experiência em que tudo se transforma em problema, ou seja, em que todas as «evidências» e «fundamentos» são problematizados; em que tudo tem de ser justificado; em que tudo pode ser negado. Se nos detivermos minimamente sobre esta questão, é extraordinário que a partir de certo momento tudo aquilo que era aceite com a maior naturalidade do mundo passe de repente a ser encarado como constituindo, ou contendo, um problema.

Que se passe a exigir justificação de todos os actos, de todas as instituições, isso instaura a «era da crítica»'9, a partir da qual tudo é inevitavelmente político. Este excesso teria de ser controlado, e aí desempenhou papel crucial a divisão entre público e privado. Só o público tem de justificar-se, i.e, só ele é passível de ser interrogado do ponto de vista da universalidade, sendo a garantida pelo espaço público clássico e pela forma assumida por este processo, através da «discussão livre». Foram, aliás, estas novas funções que levaram a identificar o espaço público com um espa,co de palavra. O efeito inevitável foi a redução da política ao diálogo, e a mediação à palavra. É através desta que o possível vem ao «aberto», é através dela que se decide o que merece perdurar ou o que tem de ser recusado. Quando a palavra foi invadida pela imagem, como está hoje a ocorrer, percebe-se a crise profunda que isso implica.

Todavia, a sobredeterminação da política pelo Estado não deixou de ter efeitos na própria palavra. Aliás, a própria necessidade de justificação era já um efeito da crise do mundo medieval e, simultaneamente, era uma forma de controlar os seus efeitos. Assim, a tal palavra que no jogo eleitoral já só sobrevive como «voto» e não como «voz» é o resultado de um controlo por estratégias nominalistas que caracterizam a palavra tal como ela foi modalizada pelo espaço público. O que remete para um fenómeno mais geral, uma crise profunda, que permeia toda a experiência, sendo bem patente na separação radi-

 

 

19 Sobre isto, ver o texto «Inevitabilidade da crise», neste livro.

 

cal entre as palavras e as coisas. A ligação ontológica entre o mundo e as palavras desaparece, sendo preciso reinstaurá-la. E na procura de um novo relacionamento entre as palavras e as coisas que encontra-mos a matriz geral da tecnologização da experiência. Trata-se de «recortar» o mundo pelo nome, para melhor poder dispor dele. É assim que deve ser compreendida a frase de Foucault: "é preciso, sem d~Œ'cvida, ser nominalista: o poder não é uma instituicão, e não é umcc estruttera nem uma certa potência de que alguns estariam dotados; é o nome que se dá a uma situa,cão estratégica complexa numa sociedade determinada"(Foucault, 1976: 123). Muito se joga em torno desta experiência de ordenação, de nomeação, de hierarquização atraves da palavra. É um processo que escapa à mera esfera do político (de facto, a esfera do Estado), alargando-se a programas de todo o género, às «ideologias» ou às «visões do mundo» que Ihe ser-vem de horizonte de sentido20.

Ora, o domínio da palavra sobre a mediação é já uma forma de controlar o agir político. Surgindo historicamente como possibilidade de acção livre, ao ser reelaborado como palavra tende a ser circunscrito no interior de rígidos quadros jurídicos. Daí que o espaço público clássico2', criado para possibilitar a política, acabe por a diferir per-manentemente, não conseguindo escapar à lógica de controlo instaurada para responder à crise generalizada que constitui o moderno. A centralidade da representa~Œcão22 provém justamente deste pôr à distân-

 

 

20 De um ponto de vista muito geral, o t`enómeno essencial que está aqui em causa é a natureza estratégica das nomeações (e classificações), visando o controlo da expe-riência. É no novo poder dapalavra que se irão fundar as «concepçoes do mundo» e as «visões do mundo». E sabido que o primeiro conccito foi formulado com algum rigor por Dilthey, vindo a ser reelaborado criticamente por Heidegger, que preterirá o termo Weltbilden, imagens do mundo. Cf. Martin Heidegger (1949), "L'Époque des "conceptions du monde" (or. "Die Zeit des Weltbildes") in CIIemins Qui ne Mènent Nulle Part (or. Holzwege), Paris, Gallimard, pp.99- 146.

 

21 Na realidade o espaço público clássico é todo o espaço público que há. O que chamamos actualmente «espaço público», colonizado pelos media, alargado pelas redes de telecomunicações, constitui um híbndo incaracterístico, em que o espaço público clássico sobrevive apenas como um simulacro. O que tem vantagens e desvantgens, como procurarei mostrar.

 

22 A representação é um motivo central da ordem moderna, tendo relevância em todos os domínios da experiência para além do político. Especificamente do ponto de vista político trata-se de uma forma para resolver praticamente a oposição metafísica entre presença e ausência. Assunto bem dramático, pois se todos os homens são cidadãos, e portanto dotados de capacidade política, todos deveriam estar presentes na decisão, deliberação e governo. Mas uns estão mais presentes do

cia para controlar, com o que se procura estabilizar a experiência. Não significa isto que o espaço público seja exclusivamente uma estrutura de controlo, dada a ambivalência constitutiva que contém. É devido a essa ambivalência que esse espaço mantinha as suas virtualidades, sendo de facto incapaz de se fechar absolutamente. A representação, altamente codificada, que servia de esquema à mediação, mormente para gerir a relação entre presença e ausência, proximidade e distân-cia, etc., está a ser desmantelada por forças (nomeadamente tecnológi-cas, mas também económicas e culturais) que, em princípio, estaria encarregada de controlar. Mas este resultado era inevitável dada a crispação dos clássicos em torno do poder da palavra. Ora, esta revelou-se demasiado fraca para resistir a essas forças, quando não as potenciou.

É esta estrutura abstracta, em toda a sua ambivalência, que é essencial e não as formas concretas que assumiu na Inglaterra, em França ou nos Estados Unidos. Apenas na sua concretização histórica esta se identifica com o espaço nacional-estatal, ou com a divisão entre público e privado. O mesmo se dirá da sua função de mediação entre os interesses gerais do Estado e os interesses dos indivíduos ou dos grupos. Todos estes factores devem-se a razões históricas contin-gentes, como as guerras religiosas europeias, mas baseiam-se também na maneira como a modernidade recolocou as tarefas históricas da Europa. Isto é essencial, pois se não se considerasse absolutamente a criação de uma espaço de mediação, isento de violência física, nem teria sentido falar de resolução de conflitos, de debate, etc.23. O pro-blema é que a forma histórica que assumiu era demasiado rígida para poder resistir a tendências internas e externas ao espaço público clás-sico, nomeadamente no que se refere à sua relação com o Estado.

 

 

que outros, como se sabe. Isso não impede que algo de essencial passe pela pro-blemática da representação, sendo discutível se está ou não a perder força nas condições actuais da «telepresença». Para uma análise deste conceito do ponto de vista político, vale a pena referir o estudo clássico de Hanna Pitkin, The Concept of Representation, Berkeley, University of California Press, 1972.

 

23 Não pretendemos afirmar que as funções do espaço público eram puramente estra-tégias. Limitamo-nos a sublinhar que a sua forma histórica é insuficiente para garantir a política, tal como a pensaram os grandes autores clássicos. Muitas das críticas ao «espaço público» sustentam que a sua função de mediação é imaginária ou uma forma de «violência simbólica», mas isso deve-se à confusão entre legiti-midade a priori e legitimidade a posteriori. E esta última que obriga o poder a justificar-se, e não se diga que não há diferença entre agir sem justificação e agir sabendo que se tem de ser capaz de apresentar justificação para o acto. É nesta questão que assenta toda a problemática da legitimação, politicamente essencial.

 

A tentativa de alargá-lo, afinal resultante das críticas marxistas e outras ao modelo clássico, foi acompanhada pelo extensionamento do Estado a esferas então «atribuídas» à sociedade civil. Mas a actual crise do Estado-Providência é o contra-golpe de tais tentativas, que em si mesmas já revelavam uma incompreensão do papel do liberalis-mo «histórico», voltado essencialmente para o enquadramento consti-tucional dos direitos individuais e, consequentemente, para a limita-ção do poder de governar24. A preocupação com a divisão dos poderes comprova-o. Deste ponto de vista, o espaço constitucional é vazio e neutro, puramente abstracto, sendo os seus limites a lei. Mas só o agir político Ihe pode dar um conteúdo qualquer, uma figuração concreta. Ora, a desmesura do Estado leva a reprimir o agir em favor da admi-nistração, da gestão e, em suma, da governação. Ao mesmo tempo que o constitucionalismo procurava potenciar a capacidade constituinte de todos, mas sem qualquer garantia, o que se implantava era uma máquina de governar, que é sempre uma «política» de poucos e para poucos, tanto mais forte quanto o Estado se revela como ingoverná-vel. O Estado buscará tanta mais potência quanto menos consiga res-ponder às forças que Ihe escapam. E estas são cada vez mais fortes. O ciclo infernal da potência que assim se abre pode pôr em causa a própria ideia de política.

Em síntese, a difusa sensação de crise do Estado é inseparável das transformações do espaço público que tendeu a controlar, e que, de certo modo, entrou por isso em declínio inevitável. No fundo, con-fundiu-se a mediação do agir político com a legitimação formal do poder de governar. A universalização da mediação a que estamos a assistir, que é em si mesma bastante problemática, tende a destruir o modelo clássico do espaço público, que vigorou durante cem anos e que ainda hoje alimenta o imaginário político. É este que está em causa e não o movimento histórico que o animava politicamente.

 

 

 

24 É preciso distinguir o «liberalismo histórico» das políticas liberais. Confundi-las sempre deu mau resultado, devido à paixão política. Boa parte dos ataques ao «liberalismo» devem-se ao facto de se Ihe exigir mais do que historicamente Ihe corresponde: a garantia de neutralidade perante todos os valores e aquilo a que Berlin chamou «liberdade negativa». Parece pouco mas é essencial. Seja como for, o í`undamento das críticas vem do romantismo que sempre desconfiou da «representação» e do «individualismo», sustentando um comunitarismo virulento. A vontade de fusão, o desejo de uma mimesis perfeita, torna o romantismo político fácil presa dos totalitarismos.

A ambivalência de tal espaço, que não cabia na forma rígida que venceu historicamente, acabou por originar a auto-destruição deste último, por motivos intrínsecos e extrínsecos. Sem pretendermos à exaustividade, referimos os seguintes aspectos:

 

a) A tendência a concentrar-se num espaço político particular, identificado com a nação25, estava em nítida contradição com o imaginário da Polis universal que animou os contratualistas clássicos, e que expressava a ideia política mais radical do ocidente. Ocultando, sem o poder anular, a pura espacialidade que constitui o meio do agir político, fechando-se em torno da legitimação do governar, foi obri-gado a expulsar a crítica para o seu exterior, tornando-se num espaço progressivamente inerte e despolitizador. A crescente abstenção política é disso um sinal evidente.

 

b) As categorias políticas que suportavam a ordem política moderna, como é o caso da «soberania»26, estabilizadas de modo redu-tor, identificando-a com o Estado-nação, eram antitéticas com as tendências à globalização e a mundialização, não apenas económicas, fenómeno que se tornou massivo neste século. A crispação em torno das fronteiras, de que dependia a governabilidade, não consegue resis-tir às forças deslocalizadoras que atravessam todas as «fronteiras».

 

c) A decisão racional dos governos, que se baseava no fechamen-to do espaço concentrado do Estado e no controlo total da informação, cujo apuramento dependia dos processo públicos, foi abalada por uma série de «incertezas» e pelo encurtamento do tempo de decisão.

 

d) O operador político do espaço público - a representação -revelou-se incapaz de produzir os efeitos esperados. Como mostrou Bobbio, as consequências foram: l) ao indivíduo autónomo contra-põe-se a rede de interesses dos grupos de pressão e a persistência das

 

 

25 Daí a contusão da polis com a cidade, desta com a capital e desta com a nação, etc.. Esta série de derivas não é casual, longe disso. Indicam todas a difícil com-posição da «cidade humana» com as cidades ou nações reais.

 

26 É claro que, à medida que se governamentalizava a política e se reduzia esta ao domínio do Estado, houve uma restrição excessiva da ideia de soberania, retiran-do-a do monarca para a transferir para grandes agregados imaginários como o «povo» ou a «nação». O que leva alguns autores, como é o caso de Agamben, a defenderem o fim da própria ideia de soberania. Mas há na modernidade toda uma outra linhagem que faz assentar a soberania no agir livre dos indivíduos, que tem um ponto alto em Sade e que no nosso século é defendida por Bataille ou Beüys.

 

Oligarquias; 2) à representação política (mandato livre) opõe-se o mandato imperativo regido por interesses particulares (neo-corporati-vismo); 3) à democratização social, a persistência de ilhas não demo-cráticas (casos da empresa, da escola, etc.); 4) à visibilidade e contro-lo do poder pelo espaço público, o poder invisível dos Estados dentro do Estado); S) à participação de todos na vida colectiva, contrapõe-se a impreparação dos cidadãos e o abstencionismo27. Esta série de para-doxos consusbstancia-se na própria ideia de representação, que estaria encarregada de garantir a presença em ausência, o agir dos que estão fora do espaço-de-Estado. O efeito foi a despolitização generalizada do Estado.

 

e) A tendência a reduzir-se à palavra amputava o agir político de aspectos essenciais, reduzindo-o ao diálogo (e em contrapartida o agir ficava limitado à «participação»). A pura espacialidade de onde irrompia o agir, fundindo todo o existente em figuras únicas e irrepe-tíveis é assim destruída. O resultado é que a própria ideia de um espaço da palavra livre acabou por ser lesado. A palavra, que é uma forma de universalização, depressa acabou por ser controlada juridi-camente, mas também pelos discursos e os programas28. A que se deve acrescentar o seu aprisionamento à captura da política pelo Esta-do ou a sua profissionalização pelos media autorizados por este. A redução da voz ao voto, ligou a palavra ao regulamento burocrático, aos decretos e aos regulamentos. Os novos meios de propagar a pala-vra, como se observa em Serajevo, pelo recurso à Internet e aos novos

 

 

27 Cf. Norbert Bobbio, O Futuro da Democracia, cit.. As análises de Bobbio ievam a concluir, um pouco contra elas, que afinal, mais do que promessas e esperanças da democracia, estamos perante verdadeiros paradoxos constitutivos da ordem política moderna. E a forma dos paradoxos que tem vindo a mudar, pelo que não é evidente que possamos dispensar os paradoxos modernos por decisões tecnológi-cas (a cyberdemocracy), jurídicas (nco-liberalismos) ou fundacionalistas (teorias da justiça, nomeadamente de Rawls).

28 É no palavreado sem sentido que desaba sobre o espaço público que Hannah Arendt vê um sinal claro de crise do político: «Isso era bem real pois tinha lugar publicamente; não tinha nada de secreto nem de misterioso. E contudo não era absolutamente visivel para todos, nem nada fácil de perceber; porque até ao momento bem deMindo em que a catástrofe atingba tuJo e toda a gente ela estava dissimulada não por realidades, mas por palavras, as palavras enganadoras e perfeitamente eficazes de quase todas as personagens oficiais, que encontravam, continuameItte e em numerosas e engenhosas variantes, uma explica,cão satisfa-tória para os acontecimentos preoeupantes e os receios justificados» (in Homens em Tempos Sombrios, Relógio D'Água, Lisboa, 1991).

J U J ç A . p p

 

 

suportes, estão a revelar os limites da palavra burocrática. Mas tam-bém da própria palavra.

 

f) O espaço público foi alargado a pontos incomportáveis, para o modelo clássico, com a entrada dos mass media no chamado espaço público e a subsequente «espectacularização» do político. A desme-sura tem que ver com a crise da palavra certa e, mais ainda, com a maquinação das paixões através da visão. O seu efeito, foi a invasão do espaço pela imagem, o silenciamento da palavra política, submer-gido pelo «nevoeiro» da hiper-informação que tudo torna indistinto. Situação esplendidamente sugerida pelo Fog de Carpenter, onde sobre o espaço público se abate uma figura que apaga toda a figuralidade (muito embora seja depois reposta, o que já é mais duvidoso). É sabido que a crítica ao espectáculo foi desenvolvida nos anos 60, havendo alguns que consideram que hoje é uma «categoria» ultrapas-sada. Temos alguns argumentos que contrariam esta tese, mas interes-sa-nos analisar neste texto um outro factor, o da tecnologização do virtual. Aliás, não por acaso os defensores do virtual consideram superada a categoria de espectáculo29.

 

g) A invasão do espaço público pelo desenvolvimento das redes e das novas tecnologias da informação. O efeito foi o alargamento desse espaço a toda a experiência, o que é positivo, correspondendo à neces-sidade de universalização da política, embora tenda a assumir formas perversas. O espaço público é o nome histórico do espaço de media-ção. Foi reduzido a espaço político ou controlado politicamente, ficando assim localizado. A tecnologização da mediação de massa levou à deslocalização desse espaço e as novas tecnologias conduzi-ram esse espaço ao desaparecimento.

 

 

 

29 Entre muitos outros, é este o caso de Leo Scheer que no seu último livro afirma: «A política faz parte, hoje, desses domínios obsoletos que têm que ver com o que o telespectador designa como «zappé». Mesmo o espectáculo, que a salvou apenas durante o tempo efémero de uma «situa,cão» transitória, já não tem a capacidade de a reactivar; assistimos, perturbados e divertidos, à sua dissolu,cão catódica. Uma vez retirados do seu contexto ficcional, os acontecimentos, e com eles a polztica, dissolvem-se como peda,cos de gelo na transparência do líquido mediático até se confundirem nele». Cf. Leo Scheer, La Démocratie Virtuelle, Paris, Seuil, 1995. Para além da evidência da descrição, que quadra bem com uma série de fenómenos, o entusiasmo de Scheer é excessivo. O político tem a eterni-dade do humano, sendo independente de todas as suas figurações históricas. E na verdade o que ele critica é a Realpolitik dominada pelo Estado.

 

4. Explosão do espac,o público

 

Alguns destes factores de crise têm que ver com a sua organiza-ção interna, e isso explica que esteja a ocorrer uma auto-destituição do espaço clássico provocada pelos seus paradoxos constitutivos. A sua natureza paradoxal torna-se manifesta à medida que se desdobram os seus paradoxos através da prórpia prática do espaço público. Este desdobramento é possibilitador, ou não, da política? O que é certo é que o controlo previsto pelos clássicos falhou e está a arrastar-nos no seu precipício. Outros factores, aparentemente exteriores, não deixa-ram de o afectar profundamente. A potência que os anima tem que ver com a forma contemporânea da técnica. Dizemos que são aparentes, porque justamente o Estado propiciou o desenvolvimento da técnica privilegiando as tecnologias de controlo - uma mescla de software e de orgware - que o estão a pôr em causa. Trata-se de um processo de convergência de todas as tecnologias convertíveis em linguagem digital, que se aplica a toda a experiência. Seja como for, o resultado inegável é a entrada em crise do espaço público clássico. Mas essa crise já está inscrita no próprio espaço público. Tudo reside em saber se a desestabilização da forma clássica e a subsequente extensão a toda a experiência, que assim surge como um continuum espacial, aprofunda a despolitização ou se, pelo contrário, a propicia. Mas tam-bém poderá suceder que nos deixe num ponto que a torne imperativa. O que remete para um fenómeno ambivalente. Ao mesmo tempo que o espaço público clássico entrava em crise, ele era libertado de algumas das suas premissas, dando a ver algumas das suas possibilidades actuais e também alguns dos seus perigos. No imenso continuum de fragmentos ligados entre si pela aceleração tecnológica poderá estar a emergir a possibilidade de uma pura medialidade, de tal modo que muitos dos esforços actuais estão voltados para a controlar. Contra as novas formas de controlo, toda a urgência está em dar uma nova visiblidade à ideia de política.

 

Ora, esta possibilidade é diferida pelo espaço público clássico, que era uma peça essencial da arquitectónica política moderna. Essa ambivalência resolve-se, dissolvendo a forma histórica em que se cristalizou, quando entre a idealidade e o seu funcionamento concreto ocorrem curto-circuitos, dos quais já descrevemos alguns traços principais. Nos pontos de instabilização dessa forma ressurge um novo bloco - de possibilitação-suspensão da ideia de política. Com efeito, se esta não é realizável definitivamente, sob pena da liberdade

da acção ficar adstrita a uma decisão histórica irreversível, também não pode ficar «atrás» enquanto pura sublimidade. Desde que as suas condições históricas surgiram, e estas são as da «modernidade», ela está toda aí, em cada momento, sem nunca se esgotar. Cada forma histórica é um modo da sua presença, mas também um efeito da sua ausência, i.e, da sua potencialização permanente30.

Com a crise do espaço público clássico - a sua forma contempo-rânea é já um simulacro deste -, chega ao fim uma visão limitada da mediação, que o restringia às instituições enquadradas constitucio-nalmente, aos espaços historicamente ligados às nações (i.e, com a geopolítica) ou então mais decisivamente à sua relação ao Estado. A consequência inevitável acabou por ser a crescente despolitização da vida pública, a difusão de um hedonismo banalizado, a espectaculari-zação do próprio Estado, etc.. Agora é a própria mediação que emerge como uma questão decisiva. Ao generalizar-se, cria um espaço exten-so para a efectivação da ideia de política, que se joga em todo o lado como agir e não apenas como diálogo, ou administração, etc.. Se aceitarmos que tal ideia abrange virtualmente a totalidade da Polis humana - enquanto comunidade justa de homens livres -, a sua poten-cialização depende da libertação da espacialidade pura do político3'. A implicação imediata é que o agir é o meio de mediar e que a expe-riência é o meio do agir.

O novo espaço de mediação foi constituído pela destituição do espaço público clássico, mas também pelo seu prolongamento por outros mecanismos, consistindo essencialmente no desenvolvimento exponencial das tecnologias da informação - a crescente digitalização de toda a experiência. Aquilo que ainda se insiste em denominar «espaço público» é, portanto, um misto das formas institucionais, mas

 

 

30 Descontando todas as dificuldades intrínsecas à mediação, i.e, que entre os gover-nantes e os cidadãos houvesse uma relação perfeita e um entendimento imediato, ou que os governantes resultassem de um processo de delogação sem interrupções e perfeito, ainda restariam problemas de sobra e que têm que ver com uma defini-ção lata de mediação. A mediação, ao tornar-se absoluta, redobra-se sobre si própria, polanzando-se. Por exemplo, no caso de um projecto, a sua realização no tempo, meio por que tem de passar absolutamente, faz do tempo um meio e um objecto (um obstáculo). O controlo absoluto do meio tenderia a abolir a sua medialidade, i.e, tudo se realizaria instantaneamente, etc..

 

3i Sendo puramente potencial, percebe-se que não pode realizar-se de uma vez por todas, precipitando-se numa figura única e que se repetiria para todo o sempre. Era essa visão que animava as utopias. Tal espacialidade absoluta tem de ser pensada como uma chora, onde tudo é acolhível sem ser destruído no acolhimento.

 

amplamente transformadas relativamente à forma clássica, com a convergência destas duas tendências. Independentemente da justeza do nome, está a impôr-se uma nova forma de mediação, cujo destino ainda mal podemos entrever. O facto de se pretender integrá-lo dentro dos padrões clássicos do contratualismo não deixa de produzir as suas ambiguidades, que se devem acima de tudo à sobredeterminação, por parte do imaginário moderno da política, do novo espaço virtual, extenso, leve e invisível.

É esta remarca,cao pela estruturação moderna do político que confere uma nova ambivalência à configuração da medialidade con-temporânea, embora esta difira em muitos aspectos da ambivalência clássica. Limitar-nos-emos a pôr em relevo alguns dos seus aspectos essenciais. Assim:

 

I ) O efeito mais radical da crise do espaço público clássico foi a emergência da mediação como problema imediato. Ou seja, o «meio» já não é uma forma de instrumentalização das relações entre «pólos» ou «identidades» estáveis. Agora as identidades são um efeito da medialidade, que se afirma como pura constitutividade. A mediação está a sair da sua «ancoragem» instrumental, que caracterizava a visão racionalista. O meio era um instrumento para atingir uma dada finali-dade ou intenção, articulando entre si dois «pólos» autónomos e exte-riores à mediação. Dada a evidente implausibilidade desta concepção percebe-se que, para manter este quadro, fosse necessário ir acrescen-tando outros elementos: um dos mais conhecidos é o «contexto». Ora o contexto é basicamente o meio. Com a emergência da mediação como absolutamente geral, tudo decorre nesse meio, no qual se podem distinguir certas polarizações, que são uma maneira de o meio pros-seguir por outros meFos. A famosa e incompreendida frase de McLuhan, «The medium is the message» (o meio é a mensagem), parece ter ganho uma pertinência quase universal32. Mas esta mediali-dade está presa da configuração deformada por dois séculos de prática do espaço público clássico.

 

 

 

32 McLuhan é o único autor da «sociologia dos media» do qual ainda há muito a esperar, sendo preciso desinseri-lo da estrutura espectacular em que ele próprio se delxou enredar. E preciso separar o que há de Camille Paglia em McLuhan. A enorme vantagem de McLuhan está no facto de conseguir articular a mediação com a questão da técnica, que é afinal o motivo profundo que está a libertar a mediação do instrumentalismo racionalista.

2) Dissemos já que a ideia de política surge com toda a urgência no instante em que a mediação se absolutiza. Isso é contraditório com a perduração do imaginário clássico, das suas categorias, classifica-ções e nomes. É nessa permanência que se apoia a tese da transforma-ção do espaço público em uma agora virtual33. Isso levara ainda Philippe Nemo a falar, nos anos 80, de um «espaço público hertzia-no»34. Trata-se, evidentemente, de uma extensão metafórica do espaço público clássico, numa situação que o destituiu. Seja como for, esta extensão não é um «erro», mas uma necessidade. O espaço clássico, mesmo transformado, tende a articular-se complexamente com o novo espaço virtual.

 

3) Há uma tendência a considerar o virtual como um fenómeno que anula a distinção entre ficção e «realidade». Como se o antigo sistema fosse real por ser limitado, e o novo fosse virtual por ser ten-dencialmente infinito. Na verdade, nada disso ocorre, pois o espaço publico clássico era eminentemente «simbólico», ou melhor, artificial. A sua evidência remontava à maneira como positivara historicamente uma relação em si mesma virtual à potencialidade. A chamada «reali-dade» implicava um dado controlo da potencialidade, operado pelo próprio «espaço» da representação clássica, que tendia a repetir-se automaticamente. Que essa repetição tenha sido quebrada, isso tem o efeito de libertar o controlo da potencialidade que é feito através de um enquadramento rígido da mediação. O que é certo é que o novo

 

 

33 A ideia de uma agora virtual vai-se impondo, apesar de ser facilmente comprová-vel que nada traz dc novo à política moderna. Basta pensar que em meados do século passado o «saintsimonismo» era também uma forma técnica de resolver o problema político, que operou exactamente o contrário do que se esperava. Daí a ingenuidade de afirmações como as de Pierre Lévy: «Os cidadãos poderiam então participar num agenciamento sociotécnico de outro género, que permitiria a grandes colectividades comunicar entre si em tempo real. O cyberspace coopera-tivo deve ser concebido como um verdadeiro serviço público. Esta agora virtual facilizaria a navegação e a orientação no conhecimento; favoreceria as trocas de saberes; acolheria a construção colectiva do sentido; ofereceria pontos de vista dinâmicos de situações colectivas; e permitiria uma avaliação multi-critérios em tempo real de inúmeras porposições, informações e processos em curso. O cyberspace poderia tornar-se no lugar de uma nova forma de democracia directa a grande escala». Cf. LÉVY, Pierre, L'lntelligence Collective. Pour une AnthI opologie du Cyberspace, Paris, La Découverte, 1994, p.70.

34 Tipcamente, Nemo coloca o «espaço público hertziano» na continuidade do espaço público clássico, a que apenas acrescenta «_ um refinamento suplementar, dado que, nesse caso, os indivíduos estão verdadeiramente isolados e ao mesmo tempo ligados à instância que representa a totalidade social», in Le Mónde, 2.10.84, p.2

 

espaço e o espaço clássico se recobrem, e nesse fenómeno desempe-nha um papel essencial o imaginário contemporâneo.

 

4) Os entusiastas do novo espaço, lido como uma forma de «democracia directa», tendem a identificá-lo com o Cyberspace. Esta fórmula é sintomática. O espaço cibernético é um espaço de controlo substancialmente distinto de controlo clássico35, pelo jurídico nomeadamente. O controlo da potencialidade era uma forma de estabilizar a experiência em torno de uma figura historicamente evi-dente, como é o caso do estado de direito. O que enquadrava e limita-va o controlo dentro dessa própria figura que ele potenciava, restrin-gindo-se ao mesmo tempo. Hoje, o controlo é o palco de uma luta incessante em torno do «controlo do controlo», i.e, pelo domínio da actualização. O visado é a actualidade tal como emerge no momento em que a experiência, na sua totalidade, se transforma em meio absoluto do agir. A virtualização implica o controlo, mas o controlo pode destruir a virtualização e com ela a espontaneidade da política.

 

5) A representação era o operador primeiro dos procedimentos clássicos de controlo. Com a crise do espaço a própria representação sai abalada. Tudo indica que a representação é integrada numa mime-sis puramente performativa, que resulta do encurtamento da distância entre representante e representado, não sendo alheio a isso a acelera-ção que permite encurtar a distância, fazendo a repetição descer ten-dencialmente para zero. Muito impende sobre a distância, que agora tem de ser vista como uma dissonância temporal. Só ela permite cur-to-circuitar o novo bloco formado pela permanente reversibilidade do imaginário e do «real». Como diz Mark Taylor: «A acvcão imaginária

 

 

35 Gilles Deleuze tem vindo a desenvolver, embora esparsamente, algumas análises da situação de poder actual, propondo a noção de sociedade de controlo. Destc ponto de vista os textos «Contrôle et Devenir» e «Post-scriptum sur les sociétés de contrôle» são altamente sugestivos, embora algo problemáticos. Com eteito, para Deleuze, entrámos na sociedade de controlo, que se segue à disciplinar (tratada por Foucault), como esta se seguiu à da soberania (a famosa época clássica). Esta é a sociedade da cibernética, da comunicação, caracterizada «non plus par l'enfern1eI1t, mais par contrôle continu et communication instantanée». Para responder a esta situação ele fala na criação de «vacuolos de não-comunica,cão, interruptores, para escapar ao controlo». Sucede, porém, que é possível retraçar uma arqueologia do controlo que acompanha toda a ordem política, sem se confundir com ela. Por nós tendemos a considerar que a metafísica da potência/acto aristotélica é um dos momentos essenciais do pensamento do controlo. A resistência deleuziana, sendo «exterior» à política realmente existente é, neste sentido, bastante problemática. Cf. Pourparlers: 1972-1990, Paris, Minuit, 1991.

não é irreal. Pelo contrário, na cultsim a acção real é necessaria-mente imaginária»36. Quando se pode dizer o inverso com a mesma pertinência37 é porque desembocamos numa situação radicalmente distinta, que a representação já não consegue apreender. Isso não signfica que possa ser abolida, como era o desejo utópico do imaginá-rio da «democracia directa» e, afinal, de toda a idealização do políti-co. A representação irá provavelmente permanecer, mas à custa da sua constante destruição e restauração38.

 

Embora de modo demasiado expedito, verificamos que novos problemas começam a despontar a partir da crise do espaço público. O novo espaço que está a ser constituído não é menos ambivalente que aquele que até agora tem vigorado. As suas possibilidades e os seus perigos, agora potenciados como nunca, não podem ser contidos por uma qualquer revitalização do espaço público moderno. Mas, como vimos, este estava demasiado preso do Estado, que é por essência impolítico. A sua garantização jurídica, enquanto relativa ao público, acabou por revelar-se ilusória. Trata-se de inscrever na medialidade um estilo de agir em modo público, sempre indeterminado e aberto. O que é público só poderá existir, por frágil que seja, como efeito de um agir orientado pela ideia de política; na falta disso, ficará um simples simulacro desse agir. Cada vez menos efectivo, cada vez mais adiado.

 

 

5. Que fazer do espaço público que resta?

 

Porque resta algo - nem que seja o simulacro do seu modelo clássico, ou os restos da sua explosão provocada por forças que não consegue conter, que cada vez mais imaginariamente articula. A uto-

 

 

36 Cultsim traduz o termo americano simcult, combinando dois termos: cultura e simulação. Cf.Mark Taylor e Esa Sarinen, Imagologies. Media Philosophy, Londres, Routledge, 1994:8.

 

37 De qualquer modo estas frases valem o que valem. São indicativas de um proble-ma, não a sua descrição. Que talvez seja impossível se o fenómeno for verdadeiro. Tudo indica, porém, que não se trata de uma experiência generalizada, existindo apenas segmentariamente em certas práticas computacionais e que, previsivel-mente, se irão ampliar. Se abolirão tudo o resto, ou não, é algo que só pode ser respondido politicamente ou tecnicamente. A segunda resposta implicaria a catástrofe do humano.

 

38 Dado o inexorável aceleramento tecnológico de todos os processos, destruição e restauração tenderão a identificar-se, a converter-se uma na outra. Dai a difusa sensação de um esteticismo que se vai disseminando, fazendo de tudo um jogo arbitrário com as formas.

 

pia tecnológica de uma agora virtual é a forma final dessa sobrevi-vência simulacral. Como se tudo pudesse permanecer na mesma, com um remendo aqui, um acrescento ali. Trata-se de uma falsa solução para a falta de política e o excesso de Estado que caracterizou o nosso século. Mas nunca se chega a pôr verdadeiramente em causa a relação do Estado à política, como se este se viesse a dissolver por motivos tecnológicos. Tanta subtilidade dos novos utopistas tem afinal como efeito deixar tudo como está.

 

 

O fundo de verdade das utopias da agora virtual assenta em dois fenómenos interessantes: a difusão da medialidade e o peso crescente da singularidade. Mas a política não é da ordem do individual. A crise dos grandes conceitos agregadores como os de «grupo», de «colecti-vo» e, menos paradoxalmente do que poderá parecer, de «indivíduo», deixa tudo num estado turbilhonário, arrasta tudo para o vórtice da medialidade. Estamos a entrar numa situação quasi-heraclitiana, com um rio cheio de fragmentos, de palavras, de imagens, de desejos, de lixo, mas onde ninguém pode ficar à margem, discutindo se o devir ou o eterno se contrapõem. O «eterno» é um simples fragmento arrastado pelo turbilhão, pois não é mais do que uma imagem, uma miragem, sem outras amarras que o estarjunto, que o ser arrastado juntamente, com todos os outros fragmentos. É este o novum da nosa situação: no fim da história reencontramos a inumanidade da physis, na sua máxi-ma urgência. Os velhos mecanismos de controlo como os do espaço público e o Estado podem cada vez menos nesta situação, que também os arrasta. É precisa uma nova heroicidade, uma frieza capaz de afrontar a irremediável solidão com que todos somos arrastados no turbilhão tecnologicamente acelerado. Não é pelo facto de sermos todos arrastados que se pode formar uma comunidade. Mas é preciso agir aí. Como disse Marx um dia: Hic rodus hic salta .

 

 

Sob pena de a incapacidade para a afrontar a vertigem, a recusa do «conhecimento da dor» (Gadda), prolongarem o que mais de pro-blemático estava oculto na ordem política moderna - a vontade de controlo total e absoluto. Quanto mais as coisas «nos» escaparem mais controlo daremos ao Estado. Quanto mais este se sentir impoten-te, mais será dirigido pela vontade de controlo. A tarefa mais urgente é a luta contra o controlo, contra o imaginário do controlo. Como disse Mark Taylor «na cultura do simulacro [...] o domínio da luta

política é agora o imaginário»39. O imaginário é o palco da luta porque nele se joga a polarização da medialidade em torno de certas imagens, ideias e palavras. No controlo está em jogo a capacidade constituinte de cada um e de todos, num momento em que a «consti-tuição» clássica já não consegue controlar tudo o que de centrífugo existe na experiência.

Dada a urgência da situação, tudo depende do agir político. E se já não podemos falar de um universal positivo, como era antanho a razão ou o diálogo, podemos falar ainda de um universal negativo. Todos estamos arrastados, pressionados pela mesma situação. Con-duzidos até à linha, como diria Jünger. Em suma, dada a universaliza-ção do problema do controlo, todos estamos intimados a responder--lhe, sem esperar pelos outros. Como de vários modos o diremos com estes ensaios, cada um tem de agir, aqui e agora. A difusão acelerada de todo o acto, que funciona como uma espécie de pontualizador do grande vórtice, tem virtualidades políticas.

Mas, aqui chegados, não há nenhuma garantia de sucesso. Tam-bém nenhuma experiência anterior nos pode certificar ou orientar. O passado e o futuro convergem para a medialidade instantânea do actual. O que nos permite responder às perguntas: o que pode restar? o qlle merece perdurar? Não devemos abandonar nada, nem mesmo aquilo que constituiu a ordem política moderna, as nações, as línguas, as diferenças. Mesmo que estes apareçam cada vez mais frágeis. Trata-se então de defender tudo? Não, apenas aquilo porque estamos dispostos a lutar.

 

 

 

 

 

39 Taylor, op. ult. cit., «Telepolitics», 2.

ESPAÇO PÚBLICO, POLÍTICA E MEDIAÇÃO

 

«Estás a caminhar. E embora nem sempre te dês conta disso, estás sempre a cair. A cada passo cais para diante ligeiramente. E então agarras-te a ti próprio para não cair. Uma e outra vez vais caindo. E então agarras-te a ti próprio para não caires. E é assim que tu podes estar a caminhar e a cair ao mesmo tempo».

                            Laurie ANDERSON

 

1. Introdução

 

É indubitável que o «espaço público», tal como se instituiu modernamente, está submetido a pressões tais que o tornam quase um simulacro daquilo que era, ou daquilo que os clássicos pretenderam que fosse. Bem mais complicado é ajuizar relativamente ao que pode-rá vir a ser, numa época em que, como afirma John Ballard, «pela primeira vez, a humanidade poderá negar a realidade e substituí-la pela sua versão preferida».

Quando a visão da «realidade» que suporta a vontade de seguran-ça é ameaçada, tudo ganha contornos inquietantes. Aparentemente, a crise do espaço público é de somenos importância, mas o fenómeno anunciado por Ballard afecta também o destino do espaço público e, correlativamente, da própria política. A ligação entre a política e o espaço público, que sustentou durante duzentos anos a interacção dos modernos, volta a instabilizar-se sob o impacto de novas forças e tendências, potenciadas pelas novas tecnologias da informação.

Será que se trata de uma mutação radical, como alguns preten-dem, levando ao fim o espaço público? (É a posição identificável com o «pós-modernismo», cujo fundo de verdade é tão somente o desajus-

tamento das imagens da modernidade relativamente à experiência concreta que é a nossa. Como não se dão conta dessa diferença ten-dem a «superar» a modernidade quando afinal estão apenas a superar as teorias de onde partem, na maioria das vezes o marxismo. Exemplo típico é o de Jean Baudrillard. Cf. Simulacres et Simulation, Paris, Galilée.) Ou trata-se antes de uma evolução na continuidade, manten-do-se basicamente na mesma? (É o caso daqueles que vêm nas trans-formações actuais uma possibilidade efectiva de «democracia» senão mesmo de democracia «directa», sem as «dificuldades» da mediação clássica e verdadeiramente universal.) Parece-nos que nem uma coisa nem outra coisa: tudo indica que a situação corresponde a algumas tendências últimas da modernidade, as quais, vistas a esta luz, pode-rão finalmente ser olhadas de frente, sem subterfúgios nem ilusões.

A abordagem deste assunto tem de escapar à aparente obviedade de que o espaço público, tal como foi constituído classicamente, está a sofrer alterações em alguns dos seus segmentos, porque o problema é mais radical e põe em causa a visão tradicional desse mesmo espaço. Aliás, o espaço público nunca se reduziu à oposição entre público e privado, nem à simples mediação entre sociedade civil e Estado, nem mesmo à representação, artifício inventado para despar-ticularizar os interesses individuais, conferindo-lhes universalidade. Embora também por aí passasse, era mais do que isso, e, tendo uma certa relação à política, nunca se reduziu a ela - apesar de enquadrado constitucionalmente, o espaço público é acima de tudo um espaço de mediação, tendencialmente universal, que suporta a actividade consti-tuinte dos modernos. E o que na verdade está a entrar em crise é a noção de um espaço bem delimitado, um espaço entre outros, como seriam os do privado, os da governação (ou do Estado), para não falar da cultura, dos «campos sociais», etc.. Isso torna-se mais evidente agora que a mediação está progressivamente a ser tecnologizada. Sem sabermos muito bem o que nos trará, a evidência dessa mudança leva a que se fale de «fim da modernidade» ou de «pós-moderno». Uma coisa é certa: as concepções clássicas estão em nítida perda de força, mas também é verdade que nunca se aplicaram bem ao mundo que acreditaram ter construído.

De um ponto de vista transpolítico, o «espaço público», enquanto controlo da mediação, era uma forma histórica de controlar o apare-cer, de prever o acontecimento, antecipando-o ou produzindo-o. A preocupação moderna com a aparência, remontando historicamente ao Iluminismo, é sinal da necessidade imperativa de controlar o aparecer, numa situação permanentemente assolada pelo inesperado, e onde tudo o que aparece fora do controlo humano surge como catástrofe ou como acidentel - controlar o aparecer, que é da ordem da physis e não do humano, embora não haja aparecer sem o humano.

Claro que, enquanto forma histórica, nada há de «errado» com o espaço público. O que talvez esteja em causa é a maneira como ainda nos pretendemos ater a essa forma, cujos limites são hoje evidentes. A temporalidade política, basicamente anual, e a temporalidade tenden-cialmente instantânea das tecnologias contemporâneas, relacionam-se em grave assincronia cujo alcance urge reconhecer. E necessário reflectir sobre esta nova situação.

Todo este assunto é político, sem se confundir com a Realpolitik, a política realmente existente. As condições de visibilidade da política alteram-se profundamente, enquanto necessidade, justamente no momento em que a forma clássica deixa de ser capaz de a «conter», em todos os sentidos da palavra. A invasão do «espaço público» pela cultura mediática, a tecnologização das formas de mediação, a acele-rada Bilderstreit2 que ataca a centralidade da palavra, a explosão das

 

 

X Com a modernidade institui-se uma dialéctica da aparência que l`unciona como algo público e prático. Se a aparência é um motivo fulcral da filosofia, que se torna obsessivo no platonismo, é na chamada modernidade que revela todo o seu alcan-ce. De facto, entre Platão e Nietzsche a associação de aparência e erro tende a deixar de ser um problema filosófico para se tornar um problema ético ou político. A preocupação moderna com a aparência é uma peça essencial da criação do sujoi-to racional e de controlo do aparecer, i.e, daquilo que é passível de chegar à visi-bilidade.

Quando se fala de aparência, de visibilidade e de verdade, alguns vêem logo despontar a «metafísica». Por mim, tendo a pensar que os famosos problemas metatísicos sobre o conhecimento não eram mais do que aqueles que estavam ligados à imposição de uma estrutura de controlo do acontecimento. A preocu-pação com o contingente e o aleatório é um outro nome para o mesmo processo de controlo. O desenvolvimento dos métodos de planeamento racional mais não visa-ram do que controlar directamene o acontecimento, produzindo-o. O pensamento político, mais prudencial, tenderá apenas controlar as formas do aparecer do acon-tecimento. Cria-se para isso um «quadro» onde este deverá «repousar», o que é um dos motivos profundos do «constitucionalismo» jurídico-político.

 

2 A «imagem» tornou-se um dos desafios essenciais para o pensamento que se acha desmunido perante ela, apesar de nunca se ter escrito tanto sobre ela como nos nossos dias. Sobre a «luta das imagens», cf. Donald Judd - «Bilderstreit» in AD, New York New Art, 1989, pp.5 1-52. Para uma análise das relações da imagem com a tecnologia, vj. Peter Weibel, Dir Beschieunigund der Bilder in der Chronokratie, Berna, Bentelli Verlag, 1987.

categorias políticas clássicas, como a de soberania, etc., sendo fenómemos omnipresentes, não têm validade em si. Mas, na medida em que nos colocam questões urgentes, tudo depende da sua relação à política. Quanto mais o estado das coisas se torna premente, mais a política se torna necessária3.

 

 

2. Natureza paradoxal do espaço público clássico

 

Como tese geral, diremos que o espaço público constitui a forma histórica da mediação, possibilitando e constrangendo em simultâneo a visibilidade da política. Essa limitação tem que ver com as condi-ções próprias da modernidade. Apesar das semelhanças formais com a agora grega, há uma diferença que se revela decisiva: o espaço público é abstracto e deslocalizado, tendo limites extremamente flu-tuantes, o que não sucedia no «espaço» grego ou medieval, que era concreto e localizado. Sendo abstracto, atravessa todos os limites que as culturas, as comunidades, etc., Ihe colocavam. Mas é essa caracte-rística que o faz corresponder à universalidade da ideia de política, que está em expectância em toda a experiência ocidental4. 0 cons-trangimento histórico liga-se com a necessidade de controlar essa extensão excessiva, que só politicamente podia ser percorrida, ou então ser suspendida. De certo modo, é esse o papel do contratualismo e da ordenação institucional que enquadra o espaço público. É uma forma de delimitá-la, nacionalmente, localmente - o que é paradoxal, pois politicamente não cabe nesses espaços. É ao liberalismo histórico, posicionado entre as revoluções e a sua estabilização consti-tucional, que se deve a configuração clássica desse espaço, mas é também a ele que deve a sua tremenda ambiguidade.

Historicamente, o novo espaço de mediação moderno acabou cir-cunscrito a um espaço de representação dos interesses particulares da «sociedade civil», de modo a permitir, positivamente, a universali-

 

 

3 Isso, porque a política é a resposta de todos, ou, pelo menos, potencialmente de todos, a um problema humano. A resposta tecnocrática ou estética agrava mais o problema, pois é impolítica.

 

4 Esta ideia é a de uma «comunidade humana justa habitada por homens livres». A sua radicalidade ideal fá-la conviver bastante mal com a polttica-realmente--existente, baseada em particularidades que a adiam indefinidamente. Não se veja aqui qualquer platonismo, pois a ideia de política é uma das «possibilidades objectivas» do humano tal como se institui na sua «restância» histónca. Isso é abordado em «A ideia de política», neste livro.

 

zação desses interesses particulares, e, negativamente, a salvaguarda dos direitos individuais, das minorias, etc., limitando por aí o poder de Estado (e acima de tudo da governação)5. Mas essa forma não esgotava as suas potencialidades, nem as conseguia conter, embora fosse basicamente esta a visão liberal e democrática que se plasmou constitucionalmente. Correspondendo a um movimento de universali-zação inevitável6, o resultado acabou por ser a integração do espaço público, enquanto modelo da mediação, no «espaço político» domi-nado pelo Estado, que se apresenta assim como um «centro» de con-trolo que acaba por afectar a chamada sociedade CiVil7.

As evidentes limitações deste modelo foram denunciadas desde o início. Basta lembrar as críticas marxistas que denunciavam a sua falsa universalidade8, as teses radicais da «democracia directa»9 ou a recusa anarquista da sua relação ao Estado. Mas não pesaram menos as perversões intrínsecas a esse espaço, bem analisadas por Norberto Bobbiol° e, nos nossos dias, a penetração da cultura mediática, que o contamunaram com a sua atracção fatal pelo espectáculo. Mas talvez seja apenas com as transformações provocadas pela tecnologização

 

 

5 Tratamento clássico deste problema é o de 1. Berlin em Four Essays on Liberty (1969) que contém o famoso ensaio sobre as «duas concepções da liberdade», a liberdade positiva e a liberdade negativa..

 

6 Como mostrou Gilles Deleuze, o «capitalismo» varia constitutivamente entre a universalização e a particularização. Esse movimento tensional é por ele descrito como um processo de «desterritorialização e de «reterritorialização». Cf. Deleuze & Guattari, L'Anti-Oedipe, Paris, 1972, part. «La représentation capitaliste» (pp.285-3 1 2).

 

7 Aliás, o movimento é duplo. A sociedade civil tende a invadi-lo também. Podería-mos mesmo falar de duas fases que acabarão por convergir. A primeira, de contro-lo do espaço público pelo estado, de que é exemplo a Alemanha de Bismarck no século passado. A segunda, de controlo desse mesmo espaço pelos mass media e a economia de que é exemplo o «americanismo».

 

S Nomeadamente as críticas de Habermas ao espaço público liberal. Não tanto por ser falsamente universal, mas porque perverte a própria questão da universalidade. Onde nos afastamos de Habermas é na sua fundação da universalidade na ética e no consenso determinados aprioristicamente. Cf. «a institucionalização da esfera pública no seio do Estado burguês: as contradições do processo» in J. Habermas Strukturwandel der Of eentlichkeit (1962).

 

9 De que o «conselhismo» europeu, pós-primeira guerra mundial e activado pela revolução russa, é um modelo fundamental. Para além de Rosa Luxemburgo, nome importante desta corrente, todo o radicalismo político dos anos 20 era «con-selhista».

 

0 Cf. Norberto Bobbio, O Futuro da Democracia, Lisboa, Dom Quixote, 1988.

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generalizada da experiência que o espaço público clássico encontra o seu limiar último. De qualquer maneira, este desenvolvimento estava já implícito no próprio modelo que vingou historicamente, um modelo que, visando a universalidade, se realizava na particularidade. Essa tensão não deixou nunca de estar presente: procurando a «comunidade humana», o espaço público apresentava-se como espaço localizado, estatal e nacional.

Ora, o que conferia validade ao esforço dos clássicos da moder-nidade era a relação à ideia de política, relação mais complicada do que aquilo que comummente se pensa. Há nela uma ambivalência que faz com que a política seja obliterada pela idealização da «universali-dade», exigindo a destruição do espaço concreto em que se expressa historicamente. E o que podemos chamar de Idealpolitik, em que assentam todas as utopias. Esta última não é menos perigosa que a Realpolitik, inteiramente voltada para a gestão e administração do existente. A relação destas à política é puramente negativa: não a podem realizar, embora a possam impedir". A evidência, demasiada, da Realpolitik, leva a ocultar os perigos da idealização do político. Na verdade, temos de partir do existente, sem o sacralizar nem o negar -o que seria, sempre, uma ilusão piedosa.

Sendo a política um agir livre, tudo pode recomeçar, mas não de qualquer maneira nem em qualquer lugar'2. Esta não se reduz, é evi-dente, à maneira jurídica nem ao espaço público; mas estes só têm sentido se neles vigorar a ideia de política. A Idealpolitik e a Realpo-litik têm origem na ambivalência do espaço público clássico, absoluti-zando uma das suas tendências. E no momento em que o espaço público está a ser atravessado por forças aceleradoras, desmaterili-zadoras e, enfim, universalizadoras, produzidas pelas tecnologais

 

 

 

t l Isso é particularmente verdadeiro no caso dos totalitarismos que são antipolíticos de modo radical, podendo destruir a própria possibilidade da política. Que isto não seJa reconhecido deve-se ao facto de os totalitarismos, tendendo a controlar todos os espaços, actuarem também no espaço político. Mas isso não demonstra a sua natureza política. Aliás, é o caso da tecnocracia ou da burocracia que, mais dissimuladamente, não são menos anti-políticas.

 

Na medida em que a política tem de ser pensada como um acto livre que, enquanto tal, pode originar «novos começos» como se não houvesse nada até esse acto então ela é intrinsecamente violenta. A dignidade da política tem que ver com ã «maneira» como suspende essa violência potencial, respeitando o existente, como ponte para o novo. Evidentemente, não se reduz ao «respeito». Este é uma condi-cão necessária, mas insuficiente.

 

actuais, o espaço de mediação parece estender-se a toda a experiência, atravessando as fronteiras jurídicas, nacionais e estatais. O destino da política depende do que podemos esperar deste movimento. O fenómeno mais radical da nossa época está justamente no devir medialidade de toda a experiência. Toda a dificuldade radica no alcance deste fenómeno. Será que se trata ainda, à semelhança do espaço público clássico, de um espaço de mediação - embora desme-surado - que está ao «serviço» do Estado, ou é apenas um suporte para o infinito desdobramento da técnica? (Em ambas as hipóteses o meio é o meio de um fim exterior e violento.) Ou, ao invés disso, será que a própria experiência se liberta, desse modo, como pura activida-de constituinte, como «experiência da experiência»'3, como puro meio que a todos afecta, sendo agenciada pelo agir de todos e de cada um? Esta última possibilidade, por ínfima que seja, tem de ser privi-legiada. Que ela se possa colocar é precisamente o novum da situação actual'4.

A emergência da medialidade pura está em correspondência com o surgimento da experiência enquanto um permanente fazer-se em cada acto; em que cada acto está dotado de capacidade constituinte (escapando assim ao controlo do agir colectivo através dos grandes corpos constitucionais). Dizer que a experiência é o meio do agir sig-nifica que a constituição está imediatamente em acto'5, o que passa por uma alteração profunda da relação ao espaço e ao tempo. Estando a manifestar-se actualmente, tal possibilidade já estava implícita no espaço público clássico - estava implícita, mas barrada, censurada; a

 

 

3 Trata-se de uma formulação politicamente essencial, proposta por Lacoue-Labarthc in L~ŒExpérience de la Liberté, Paris, Galilée, 1990.

 

4 A mediação está a emergir como um problema crucial do pensamento contemporâ-neo. Mas não se trata de um problema teórico, remetendo para transformações ocorridas no nosso século e que estão indissociavelmente ligadas à técnica actual. McLuhan é, deste ponto de vista, uma referência incontornável, estando a recru-descer de importância. A filosofia europeia, demasiado presa da dialéctica, só muito recentemente se tem vindo a debruçar sobre este fenómeno. A excepção que é Jean Baudrillard não desmente esta asserçao, já que nunca foi além do quadro mcluhaniano. Daí a relevância dos estudos de Giorgio Agamben, nomeadamente, Moyens sans Fins, Paris, Rivages, 1995.

 

5 É conveniente distinguir entre «constituição» como processo de permanente reelaboração prática da experiência e a «constituição» jurídico-política, que enquadra racionalmente as acções públicas legítimas. Nao é, evidentemente, por acaso que o constitucionalismo político se instituiu na modernidade, que podemos definir como «a era da constituição».

espacialidade que serve de base ao agir político estava controlada por mecanismos jurídicos e geopolíticos; a consistência própria do espaço estava cristalizada em certas figuras históricas, apresentadas como as únicas «racionais», neste sentido an-históricas - e este era um efeito necessário, que levava Novalis a dizer: «Procuramos por todo o lado o incondicionado [Unbedingt] mas só encontramos coisas [Dingen]».

Que na realização histórica da espacialidade política esta se con-cretize num rígido espaço de consistência, submetido à lógica de potência do Estado, isso acarreta a perda de tensão entre o agir e o agido, entre o incondicionado e o condicionado. Ora, é nesta tensão que emerge o agir livre como meio absoluto, e tudo indica que o desenvolvimento da técnica tendeu a «destruir» a consistência do espaço público clássico. Com esse resultado, também a temporalidade do agir é alterada - e profundamente. A estatização da política -indissociável da obsessão pelo Estado -, implica a sobredeterminação do tempo pelo espaço. O tempo é como que espacializado, i.e, dotado de consistência. A melhor metáfora desta situação é a fórmula para-doxal de «e.spa,co de tempo»l6. As cronologias, os faseamentos elei-torais, os períodos de revisão constitucional, a possibilidade de tudo isso reside num controlo da temporalidade. Ora, esta é a melhor marca da finitude do agir. A abolição da finitude é inseparável da eterni-zação do tempo jurídico. Com a crescente velocidade tecnológica, que acelera enormemente a experiência, a consistência temporal dos clás-sicos entra em crise. Esta breve descrição comprova minimamente que há uma transformação profunda da experiência, de que depende a repolitização da ordem política clássica. O que passa por libertá-la do seu aprisionamento pelo Estado'7. É justamente isto que parece estar a

 

 

16 Parece contraditório mas é um tenómeno determinado pelas condições modernas da necessidade de controlo. Bom exemplo é o das eleições, que são um mecanismo de «espacialização do tempo», resultante do aumento de controlo dos processos de transmissão do poder. Basta recordar as análises de Ernst Kantarowicz no famoso The çYing's two Bodies, com o imenso dramatismo que implicava a morte do rei, sempre inesperada. ocasião de crises mais ou menos profundas, para perceber que as eleições realizam o mesmo processo, cronologizando o tempo. Assim, de quatro em quatro anos os governantes saem do poder e são substituídos com a regulari-dade pendular do mecanismo constitucional, obviando à mudança catastrófica anterior à modernidade.

 

'7 Cujo eteito era uma dada visão de pertença ao Estado, que fazia de todos os que não estavam incluídos nesse espaço, uns «párias». No livro As Origens do totali-tarismo, Hannah Arendt analisou com interesse este tenómeno, em si mesmo para-doxal. Se todos são igualmente homens, a não pertença a uma nação, a Inglaterra,

 

suceder. Sem que isso deva surpreender, novos perigos estão a desper-tar' 8,

 

 

3. Emergência do espaço público

 

Para apreender algo das novas tendências convém relançar a análise do espaço público propriamente dito. Referimos já alguns traços da sua ambivalência, senão mesmo da sua paradoxia. A forma que acabou por se impor historicamente tem que ver com a coexis-tência de dois tipos de espaços: o espaço político que se alarga a toda a «comunidade humana», i.e, à «humanidade», e os espaços políticos nacionais e estatais. O espaço público, que serve de mediador entre os dois, e em que se plasmou esta contradição, constitui uma novidade que não é mais antiga que a modernidade. Falamos de modernidade, não enquanto época, mas como ruptura da experiência Ocidental quanto ao fundamento. Enquanto antes era dado a priori (assentando nos deuses ou em Deus), agora surge a posteriori, como efeito da acção e vontade humanas. Numa rápida síntese, o espaço público surge quando o cosmos antigo perde a sua densidade ontológica e a sua centralidade teocrática; quando a «totalidade», mais do que dada, é postulada como um projecto; quando a acção surge como puramente racional e humana, etc. Sendo um processo necessário, e não apenas do ponto de vista político, de modo algum se esgota nas formas que começou a assumir desde os princípios do século XIX. Nele estão ínsitas outras possibilidades bem mais interessantes.

Dissemos que, com a emergência do espaço público, estava em causa a possibilitação da política em condições de universalidade. Se é verdade que o seu modelo é em larga medida o da agora grega, esse modelo seria uma pura ilusão sem a libertação dos indivíduos da

 

                                           -

 

ou a França ou Portugal, implica a perda correlativa do estatuto de «homem». Como se só fosse possível ser homem sendo ao mesmo tempo «inglês», «francês», etc.

 

Boa parte desses perigos têm base na permanente tentação de estender a lógica do Estado a todo o novo espaço, seja interior seja exterior. No caso do «espaço virtual», ou Cyberspace, isso é bem nítido. Sabemos das intenções da adminis-tração Clinton em controlar a Internet, usando o argumento da luta contra a «pornografia». A moralização pública sempre foi uma t`orma de estender o poder de Estado. A tentativa de Clinton tem merecido forte resistência dos cidadãos americanos, pelo menos aqueles reunidos em torno da Electronic Frontier Founda-tion. Para uma defesa das posições do Estado americano, cf. «D'ont Worry, Be Happy: Why Clipper is good for you» de Stewart A. Baker in WMED, 206, Junho 1994, pp.]00, 132-133.

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escravidão, da servidão medieval, das suas comunidades de pertença. Ora, tal universalidade está em correspondência com um fenómeno absoluto, o da ruptura generalizada da experiência tradicional. Na sua radicalidade é dificilmente apreensível. Nenhuma das descrições de que dispomos é satisfatória, nem mesmo a sua caracterização como nihilismo (Nietzsche). Mas uma coisa é certa, a partir de um certo momento surge à consciência pública uma outra forma de experiência em que tudo se transforma em problema, ou seja, em que todas as «evidências» e «fundamentos» são problematizados; em que tudo tem de ser justificado; em que tudo pode ser negado. Se nos detivermos minimamente sobre esta questão, é extraordinário que a partir de certo momento tudo aquilo que era aceite com a maior naturalidade do mundo passe de repente a ser encarado como constituindo, ou conten-do, um problema.

Que se passe a exigir justificação de todos os actos, de todas as instituições, isso instaura a «era da crítica»'9, a partir da qual tudo é inevitavelmente político. Este excesso teria de ser controlado, e aí desempenhou papel crucial a divisão entre público e privado. Só o público tem de justificar-se, i.e, só ele é passível de ser interrogado do ponto de vista da universalidade, sendo a garantida pelo espaço público clássico e pela forma assumida por este processo, através da «discussão livre». Foram, aliás, estas novas funções que levaram a identificar o espaço público com um espa,co de palavra. O efeito inevitável foi a redução da política ao diálogo, e a mediação à palavra. É através desta que o possível vem ao «aberto», é através dela que se decide o que merece perdurar ou o que tem de ser recusado. Quando a palavra foi invadida pela imagem, como está hoje a ocorrer, percebe--se a crise profunda que isso implica.

Todavia, a sobredeterminação da política pelo Estado não deixou de ter efeitos na própria palavra. Aliás, a própria necessidade de jus-tificação era já um efeito da crise do mundo medieval e, simultanea-mente, era uma forma de controlar os seus efeitos. Assim, a tal pala-vra que no jogo eleitoral já só sobrevive como «voto» e não como «voz» é o resultado de um controlo por estratégias nominalistas que caracterizam a palavra tal como ela foi modalizada pelo espaço públi-co. O que remete para um fenómeno mais geral, uma crise profunda, que permeia toda a experiência, sendo bem patente na separação radi-

 

 

19 Sobre isto, ver o texto «Inevitabilidade da crise», neste livro.

 

cal entre as palavras e as coisas. A ligação ontológica entre o mundo e as palavras desaparece, sendo preciso reinstaurá-la. E na procura de um novo relacionamento entre as palavras e as coisas que encontra-mos a matriz geral da tecnologização da experiência. Trata-se de «recortar» o mundo pelo nome, para melhor poder dispor dele. É assim que deve ser compreendida a frase de Foucault: "é preciso, sem d~Œ'cvida, ser nominalista: o poder não é uma institui,cão, e não é umcc estruttera nem uma certa potência de que alguns estariam dotados; é o nome que se dá a uma situa,cão estratégica complexa numa socie-dade determinada"(Foucault, 1976: 123). Muito se joga em torno desta experiência de ordenação, de nomeação, de hierarquização atraves da palavra. É um processo que escapa à mera esfera do político (de facto, a esfera do Estado), alargando-se a programas de todo o género, às «ideologias» ou às «visões do mundo» que Ihe ser-vem de horizonte de sentido20.

Ora, o domínio da palavra sobre a mediação é já uma forma de controlar o agir político. Surgindo historicamente como possibilidade de acção livre, ao ser reelaborado como palavra tende a ser circunscri-to no interior de rígidos quadros jurídicos. Daí que o espaço público clássico2', criado para possibilitar a política, acabe por a diferir per-manentemente, não conseguindo escapar à lógica de controlo instau-rada para responder à crise generalizada que constitui o moderno. A centralidade da representa~Œcão22 provém justamente deste pôr à distân-

 

 

20 De um ponto de vista muito geral, o t`enómeno essencial que está aqui em causa é a natureza estratégica das nomeações (e classificações), visando o controlo da expe-riência. É no novo poder dapalavra que se irão fundar as «concepçoes do mundo» e as «visões do mundo». E sabido que o primeiro conccito foi formulado com algum rigor por Dilthey, vindo a ser reelaborado criticamente por Heidegger, que preterirá o termo Weltbilden, imagens do mundo. Cf. Martin Heidegger (1949), "L'Époque des "conceptions du monde" (or. "Die Zeit des Weltbildes") in CIIemins Qui ne Mènent Nulle Part (or. Holzwege), Paris, Gallimard, pp.99- 146.

 

21 Na realidade o espaço público clássico é todo o espaço público que há. O que chamamos actualmente «espaço público», colonizado pelos media, alargado pelas redes de telecomunicações, constitui um híbndo incaracterístico, em que o espaço público clássico sobrevive apenas como um simulacro. O que tem vantagens e desvantgens, como procurarei mostrar.

 

22 A representação é um motivo central da ordem moderna, tendo relevância em todos os domínios da experiência para além do político. Especificamente do ponto de vista político trata-se de uma forma para resolver praticamente a oposição metafísica entre presença e ausência. Assunto bem dramático, pois se todos os homens são cidadãos, e portanto dotados de capacidade política, todos deveriam estar presentes na decisão, deliberação e governo. Mas uns estão mais presentes do

cia para controlar, com o que se procura estabilizar a experiência. Não significa isto que o espaço público seja exclusivamente uma estrutura de controlo, dada a ambivalência constitutiva que contém. É devido a essa ambivalência que esse espaço mantinha as suas virtualidades, sendo de facto incapaz de se fechar absolutamente. A representação, altamente codificada, que servia de esquema à mediação, mormente para gerir a relação entre presença e ausência, proximidade e distân-cia, etc., está a ser desmantelada por forças (nomeadamente tecnológi-cas, mas também económicas e culturais) que, em princípio, estaria encarregada de controlar. Mas este resultado era inevitável dada a crispação dos clássicos em torno do poder da palavra. Ora, esta revelou-se demasiado fraca para resistir a essas forças, quando não as potenciou.

É esta estrutura abstracta, em toda a sua ambivalência, que é essencial e não as formas concretas que assumiu na Inglaterra, em França ou nos Estados Unidos. Apenas na sua concretização histórica esta se identifica com o espaço nacional-estatal, ou com a divisão entre público e privado. O mesmo se dirá da sua função de mediação entre os interesses gerais do Estado e os interesses dos indivíduos ou dos grupos. Todos estes factores devem-se a razões históricas contin-gentes, como as guerras religiosas europeias, mas baseiam-se também na maneira como a modernidade recolocou as tarefas históricas da Europa. Isto é essencial, pois se não se considerasse absolutamente a criação de uma espaço de mediação, isento de violência física, nem teria sentido falar de resolução de conflitos, de debate, etc.23. O pro-blema é que a forma histórica que assumiu era demasiado rígida para poder resistir a tendências internas e externas ao espaço público clás-sico, nomeadamente no que se refere à sua relação com o Estado.

 

 

que outros, como se sabe. Isso não impede que algo de essencial passe pela pro-blemática da representação, sendo discutível se está ou não a perder força nas condições actuais da «telepresença». Para uma análise deste conceito do ponto de vista político, vale a pena referir o estudo clássico de Hanna Pitkin, The Concept of Representation, Berkeley, University of California Press, 1972.

 

23 Não pretendemos afirmar que as funções do espaço público eram puramente estra-tégias. Limitamo-nos a sublinhar que a sua forma histórica é insuficiente para garantir a política, tal como a pensaram os grandes autores clássicos. Muitas das críticas ao «espaço público» sustentam que a sua função de mediação é imaginária ou uma forma de «violência simbólica», mas isso deve-se à confusão entre legiti-midade a priori e legitimidade a posteriori. E esta última que obriga o poder a justificar-se, e não se diga que não há diferença entre agir sem justificação e agir sabendo que se tem de ser capaz de apresentar justificação para o acto. É nesta questão que assenta toda a problemática da legitimação, politicamente essencial.

 

A tentativa de alargá-lo, afinal resultante das críticas marxistas e outras ao modelo clássico, foi acompanhada pelo extensionamento do Estado a esferas então «atribuídas» à sociedade civil. Mas a actual crise do Estado-Providência é o contra-golpe de tais tentativas, que em si mesmas já revelavam uma incompreensão do papel do liberalis-mo «histórico», voltado essencialmente para o enquadramento consti-tucional dos direitos individuais e, consequentemente, para a limita-ção do poder de governar24. A preocupação com a divisão dos poderes comprova-o. Deste ponto de vista, o espaço constitucional é vazio e neutro, puramente abstracto, sendo os seus limites a lei. Mas só o agir político Ihe pode dar um conteúdo qualquer, uma figuração concreta. Ora, a desmesura do Estado leva a reprimir o agir em favor da admi-nistração, da gestão e, em suma, da governação. Ao mesmo tempo que o constitucionalismo procurava potenciar a capacidade constituinte de todos, mas sem qualquer garantia, o que se implantava era uma máquina de governar, que é sempre uma «política» de poucos e para poucos, tanto mais forte quanto o Estado se revela como ingoverná-vel. O Estado buscará tanta mais potência quanto menos consiga res-ponder às forças que Ihe escapam. E estas são cada vez mais fortes. O ciclo infernal da potência que assim se abre pode pôr em causa a própria ideia de política.

Em síntese, a difusa sensação de crise do Estado é inseparável das transformações do espaço público que tendeu a controlar, e que, de certo modo, entrou por isso em declínio inevitável. No fundo, con-fundiu-se a mediação do agir político com a legitimação formal do poder de governar. A universalização da mediação a que estamos a assistir, que é em si mesma bastante problemática, tende a destruir o modelo clássico do espaço público, que vigorou durante cem anos e que ainda hoje alimenta o imaginário político. É este que está em causa e não o movimento histórico que o animava politicamente.

 

 

 

24 É preciso distinguir o «liberalismo histórico» das políticas liberais. Confundi-las sempre deu mau resultado, devido à paixão política. Boa parte dos ataques ao «liberalismo» devem-se ao facto de se Ihe exigir mais do que historicamente Ihe corresponde: a garantia de neutralidade perante todos os valores e aquilo a que Berlin chamou «liberdade negativa». Parece pouco mas é essencial. Seja como for, o í`undamento das críticas vem do romantismo que sempre desconfiou da «representação» e do «individualismo», sustentando um comunitarismo virulento. A vontade de fusão, o desejo de uma mimesis perfeita, torna o romantismo político fácil presa dos totalitarismos.

A ambivalência de tal espaço, que não cabia na forma rígida que venceu historicamente, acabou por originar a auto-destruição deste último, por motivos intrínsecos e extrínsecos. Sem pretendermos à exaustividade, referimos os seguintes aspectos:

 

a) A tendência a concentrar-se num espaço político particular, identificado com a nação25, estava em nítida contradição com o imaginário da Polis universal que animou os contratualistas clássicos, e que expressava a ideia política mais radical do ocidente. Ocultando, sem o poder anular, a pura espacialidade que constitui o meio do agir político, fechando-se em torno da legitimação do governar, foi obri-gado a expulsar a crítica para o seu exterior, tornando-se num espaço progressivamente inerte e despolitizador. A crescente abstenção política é disso um sinal evidente.

 

b) As categorias políticas que suportavam a ordem política moderna, como é o caso da «soberania»26, estabilizadas de modo redu-tor, identificando-a com o Estado-nação, eram antitéticas com as tendências à globalização e a mundialização, não apenas económicas, fenómeno que se tornou massivo neste século. A crispação em torno das fronteiras, de que dependia a governabilidade, não consegue resis-tir às forças deslocalizadoras que atravessam todas as «fronteiras».

 

c) A decisão racional dos governos, que se baseava no fechamen-to do espaço concentrado do Estado e no controlo total da informação, cujo apuramento dependia dos processo públicos, foi abalada por uma série de «incertezas» e pelo encurtamento do tempo de decisão.

 

d) O operador político do espaço público - a representação -revelou-se incapaz de produzir os efeitos esperados. Como mostrou Bobbio, as consequências foram: l) ao indivíduo autónomo contra-põe-se a rede de interesses dos grupos de pressão e a persistência das

 

 

25 Daí a contusão da polis com a cidade, desta com a capital e desta com a nação, etc.. Esta série de derivas não é casual, longe disso. Indicam todas a difícil com-posição da «cidade humana» com as cidades ou nações reais.

 

26 É claro que, à medida que se governamentalizava a política e se reduzia esta ao domínio do Estado, houve uma restrição excessiva da ideia de soberania, retiran-do-a do monarca para a transferir para grandes agregados imaginários como o «povo» ou a «nação». O que leva alguns autores, como é o caso de Agamben, a defenderem o fim da própria ideia de soberania. Mas há na modernidade toda uma outra linhagem que faz assentar a soberania no agir livre dos indivíduos, que tem um ponto alto em Sade e que no nosso século é defendida por Bataille ou Beüys.

 

Oligarquias; 2) à representação política (mandato livre) opõe-se o mandato imperativo regido por interesses particulares (neo-corporati-vismo); 3) à democratização social, a persistência de ilhas não demo-cráticas (casos da empresa, da escola, etc.); 4) à visibilidade e contro-lo do poder pelo espaço público, o poder invisível dos Estados dentro do Estado); S) à participação de todos na vida colectiva, contrapõe-se a impreparação dos cidadãos e o abstencionismo27. Esta série de para-doxos consusbstancia-se na própria ideia de representação, que estaria encarregada de garantir a presença em ausência, o agir dos que estão fora do espaço-de-Estado. O efeito foi a despolitização generalizada do Estado.

 

e) A tendência a reduzir-se à palavra amputava o agir político de aspectos essenciais, reduzindo-o ao diálogo (e em contrapartida o agir ficava limitado à «participação»). A pura espacialidade de onde irrompia o agir, fundindo todo o existente em figuras únicas e irrepe-tíveis é assim destruída. O resultado é que a própria ideia de um espaço da palavra livre acabou por ser lesado. A palavra, que é uma forma de universalização, depressa acabou por ser controlada juridi-camente, mas também pelos discursos e os programas28. A que se deve acrescentar o seu aprisionamento à captura da política pelo Esta-do ou a sua profissionalização pelos media autorizados por este. A redução da voz ao voto, ligou a palavra ao regulamento burocrático, aos decretos e aos regulamentos. Os novos meios de propagar a pala-vra, como se observa em Serajevo, pelo recurso à Internet e aos novos

 

 

27 Cf. Norbert Bobbio, O Futuro da Democracia, cit.. As análises de Bobbio ievam a concluir, um pouco contra elas, que afinal, mais do que promessas e esperanças da democracia, estamos perante verdadeiros paradoxos constitutivos da ordem política moderna. E a forma dos paradoxos que tem vindo a mudar, pelo que não é evidente que possamos dispensar os paradoxos modernos por decisões tecnológi-cas (a cyberdemocracy), jurídicas (nco-liberalismos) ou fundacionalistas (teorias da justiça, nomeadamente de Rawls).

28 É no palavreado sem sentido que desaba sobre o espaço público que Hannah Arendt vê um sinal claro de crise do político: «Isso era bem real pois tinha lugar publicamente; não tinha nada de secreto nem de misterioso. E contudo não era absolutamente visivel para todos, nem nada fácil de perceber; porque até ao momento bem deMindo em que a catástrofe atingba tuJo e toda a gente ela estava dissimulada não por realidades, mas por palavras, as palavras enganadoras e perfeitamente eficazes de quase todas as personagens oficiais, que encontravam, continuameItte e em numerosas e engenhosas variantes, uma explica,cão satisfa-tória para os acontecimentos preoeupantes e os receios justificados» (in Homens em Tempos Sombrios, Relógio D'Água, Lisboa, 1991).

J U J ç A . p p

 

 

suportes, estão a revelar os limites da palavra burocrática. Mas tam-bém da própria palavra.

 

f) O espaço público foi alargado a pontos incomportáveis, para o modelo clássico, com a entrada dos mass media no chamado espaço público e a subsequente «espectacularização» do político. A desme-sura tem que ver com a crise da palavra certa e, mais ainda, com a maquinação das paixões através da visão. O seu efeito, foi a invasão do espaço pela imagem, o silenciamento da palavra política, submer-gido pelo «nevoeiro» da hiper-informação que tudo torna indistinto. Situação esplendidamente sugerida pelo Fog de Carpenter, onde sobre o espaço público se abate uma figura que apaga toda a figuralidade (muito embora seja depois reposta, o que já é mais duvidoso). É sabido que a crítica ao espectáculo foi desenvolvida nos anos 60, havendo alguns que consideram que hoje é uma «categoria» ultrapas-sada. Temos alguns argumentos que contrariam esta tese, mas interes-sa-nos analisar neste texto um outro factor, o da tecnologização do virtual. Aliás, não por acaso os defensores do virtual consideram superada a categoria de espectáculo29.

 

g) A invasão do espaço público pelo desenvolvimento das redes e das novas tecnologias da informação. O efeito foi o alargamento desse espaço a toda a experiência, o que é positivo, correspondendo à neces-sidade de universalização da política, embora tenda a assumir formas perversas. O espaço público é o nome histórico do espaço de media-ção. Foi reduzido a espaço político ou controlado politicamente, ficando assim localizado. A tecnologização da mediação de massa levou à deslocalização desse espaço e as novas tecnologias conduzi-ram esse espaço ao desaparecimento.

 

 

 

29 Entre muitos outros, é este o caso de Leo Scheer que no seu último livro afirma: «A política faz parte, hoje, desses domínios obsoletos que têm que ver com o que o telespectador designa como «zappé». Mesmo o espectáculo, que a salvou apenas durante o tempo efémero de uma «situa,cão» transitória, já não tem a capacidade de a reactivar; assistimos, perturbados e divertidos, à sua dissolu,cão catódica. Uma vez retirados do seu contexto ficcional, os acontecimentos, e com eles a polztica, dissolvem-se como peda,cos de gelo na transparência do líquido mediático até se confundirem nele». Cf. Leo Scheer, La Démocratie Virtuelle, Paris, Seuil, 1995. Para além da evidência da descrição, que quadra bem com uma série de fenómenos, o entusiasmo de Scheer é excessivo. O político tem a eterni-dade do humano, sendo independente de todas as suas figurações históricas. E na verdade o que ele critica é a Realpolitik dominada pelo Estado.

 

4. Explosão do espac,o público

 

Alguns destes factores de crise têm que ver com a sua organiza-ção interna, e isso explica que esteja a ocorrer uma auto-destituição do espaço clássico provocada pelos seus paradoxos constitutivos. A sua natureza paradoxal torna-se manifesta à medida que se desdobram os seus paradoxos através da prórpia prática do espaço público. Este desdobramento é possibilitador, ou não, da política? O que é certo é que o controlo previsto pelos clássicos falhou e está a arrastar-nos no seu precipício. Outros factores, aparentemente exteriores, não deixa-ram de o afectar profundamente. A potência que os anima tem que ver com a forma contemporânea da técnica. Dizemos que são aparentes, porque justamente o Estado propiciou o desenvolvimento da técnica privilegiando as tecnologias de controlo - uma mescla de software e de orgware - que o estão a pôr em causa. Trata-se de um processo de convergência de todas as tecnologias convertíveis em linguagem digital, que se aplica a toda a experiência. Seja como for, o resultado inegável é a entrada em crise do espaço público clássico. Mas essa crise já está inscrita no próprio espaço público. Tudo reside em saber se a desestabilização da forma clássica e a subsequente extensão a toda a experiência, que assim surge como um continuum espacial, aprofunda a despolitização ou se, pelo contrário, a propicia. Mas tam-bém poderá suceder que nos deixe num ponto que a torne imperativa. O que remete para um fenómeno ambivalente. Ao mesmo tempo que o espaço público clássico entrava em crise, ele era libertado de algumas das suas premissas, dando a ver algumas das suas possibilidades actuais e também alguns dos seus perigos. No imenso continuum de fragmentos ligados entre si pela aceleração tecnológica poderá estar a emergir a possibilidade de uma pura medialidade, de tal modo que muitos dos esforços actuais estão voltados para a controlar. Contra as novas formas de controlo, toda a urgência está em dar uma nova visiblidade à ideia de política.

 

Ora, esta possibilidade é diferida pelo espaço público clássico, que era uma peça essencial da arquitectónica política moderna. Essa ambivalência resolve-se, dissolvendo a forma histórica em que se cristalizou, quando entre a idealidade e o seu funcionamento concreto ocorrem curto-circuitos, dos quais já descrevemos alguns traços principais. Nos pontos de instabilização dessa forma ressurge um novo bloco - de possibilitação-suspensão da ideia de política. Com efeito, se esta não é realizável definitivamente, sob pena da liberdade

da acção ficar adstrita a uma decisão histórica irreversível, também não pode ficar «atrás» enquanto pura sublimidade. Desde que as suas condições históricas surgiram, e estas são as da «modernidade», ela está toda aí, em cada momento, sem nunca se esgotar. Cada forma histórica é um modo da sua presença, mas também um efeito da sua ausência, i.e, da sua potencialização permanente30.

Com a crise do espaço público clássico - a sua forma contempo-rânea é já um simulacro deste -, chega ao fim uma visão limitada da mediação, que o restringia às instituições enquadradas constitucio-nalmente, aos espaços historicamente ligados às nações (i.e, com a geopolítica) ou então mais decisivamente à sua relação ao Estado. A consequência inevitável acabou por ser a crescente despolitização da vida pública, a difusão de um hedonismo banalizado, a espectaculari-zação do próprio Estado, etc.. Agora é a própria mediação que emerge como uma questão decisiva. Ao generalizar-se, cria um espaço exten-so para a efectivação da ideia de política, que se joga em todo o lado como agir e não apenas como diálogo, ou administração, etc.. Se aceitarmos que tal ideia abrange virtualmente a totalidade da Polis humana - enquanto comunidade justa de homens livres -, a sua poten-cialização depende da libertação da espacialidade pura do político3'. A implicação imediata é que o agir é o meio de mediar e que a expe-riência é o meio do agir.

O novo espaço de mediação foi constituído pela destituição do espaço público clássico, mas também pelo seu prolongamento por outros mecanismos, consistindo essencialmente no desenvolvimento exponencial das tecnologias da informação - a crescente digitalização de toda a experiência. Aquilo que ainda se insiste em denominar «espaço público» é, portanto, um misto das formas institucionais, mas

 

 

30 Descontando todas as dificuldades intrínsecas à mediação, i.e, que entre os gover-nantes e os cidadãos houvesse uma relação perfeita e um entendimento imediato, ou que os governantes resultassem de um processo de delogação sem interrupções e perfeito, ainda restariam problemas de sobra e que têm que ver com uma defini-ção lata de mediação. A mediação, ao tornar-se absoluta, redobra-se sobre si própria, polanzando-se. Por exemplo, no caso de um projecto, a sua realização no tempo, meio por que tem de passar absolutamente, faz do tempo um meio e um objecto (um obstáculo). O controlo absoluto do meio tenderia a abolir a sua medialidade, i.e, tudo se realizaria instantaneamente, etc..

 

3i Sendo puramente potencial, percebe-se que não pode realizar-se de uma vez por todas, precipitando-se numa figura única e que se repetiria para todo o sempre. Era essa visão que animava as utopias. Tal espacialidade absoluta tem de ser pensada como uma chora, onde tudo é acolhível sem ser destruído no acolhimento.

 

amplamente transformadas relativamente à forma clássica, com a convergência destas duas tendências. Independentemente da justeza do nome, está a impôr-se uma nova forma de mediação, cujo destino ainda mal podemos entrever. O facto de se pretender integrá-lo dentro dos padrões clássicos do contratualismo não deixa de produzir as suas ambiguidades, que se devem acima de tudo à sobredeterminação, por parte do imaginário moderno da política, do novo espaço virtual, extenso, leve e invisível.

É esta remarca,cao pela estruturação moderna do político que confere uma nova ambivalência à configuração da medialidade con-temporânea, embora esta difira em muitos aspectos da ambivalência clássica. Limitar-nos-emos a pôr em relevo alguns dos seus aspectos essenciais. Assim:

 

I ) O efeito mais radical da crise do espaço público clássico foi a emergência da mediação como problema imediato. Ou seja, o «meio» já não é uma forma de instrumentalização das relações entre «pólos» ou «identidades» estáveis. Agora as identidades são um efeito da medialidade, que se afirma como pura constitutividade. A mediação está a sair da sua «ancoragem» instrumental, que caracterizava a visão racionalista. O meio era um instrumento para atingir uma dada finali-dade ou intenção, articulando entre si dois «pólos» autónomos e exte-riores à mediação. Dada a evidente implausibilidade desta concepção percebe-se que, para manter este quadro, fosse necessário ir acrescen-tando outros elementos: um dos mais conhecidos é o «contexto». Ora o contexto é basicamente o meio. Com a emergência da mediação como absolutamente geral, tudo decorre nesse meio, no qual se podem distinguir certas polarizações, que são uma maneira de o meio pros-seguir por outros meFos. A famosa e incompreendida frase de McLuhan, «The medium is the message» (o meio é a mensagem), parece ter ganho uma pertinência quase universal32. Mas esta mediali-dade está presa da configuração deformada por dois séculos de prática do espaço público clássico.

 

 

 

32 McLuhan é o único autor da «sociologia dos media» do qual ainda há muito a esperar, sendo preciso desinseri-lo da estrutura espectacular em que ele próprio se delxou enredar. E preciso separar o que há de Camille Paglia em McLuhan. A enorme vantagem de McLuhan está no facto de conseguir articular a mediação com a questão da técnica, que é afinal o motivo profundo que está a libertar a mediação do instrumentalismo racionalista.

2) Dissemos já que a ideia de política surge com toda a urgência no instante em que a mediação se absolutiza. Isso é contraditório com a perduração do imaginário clássico, das suas categorias, classifica-ções e nomes. É nessa permanência que se apoia a tese da transforma-ção do espaço público em uma agora virtual33. Isso levara ainda Philippe Nemo a falar, nos anos 80, de um «espaço público hertzia-no»34. Trata-se, evidentemente, de uma extensão metafórica do espaço público clássico, numa situação que o destituiu. Seja como for, esta extensão não é um «erro», mas uma necessidade. O espaço clássico, mesmo transformado, tende a articular-se complexamente com o novo espaço virtual.

 

3) Há uma tendência a considerar o virtual como um fenómeno que anula a distinção entre ficção e «realidade». Como se o antigo sistema fosse real por ser limitado, e o novo fosse virtual por ser ten-dencialmente infinito. Na verdade, nada disso ocorre, pois o espaço publico clássico era eminentemente «simbólico», ou melhor, artificial. A sua evidência remontava à maneira como positivara historicamente uma relação em si mesma virtual à potencialidade. A chamada «reali-dade» implicava um dado controlo da potencialidade, operado pelo próprio «espaço» da representação clássica, que tendia a repetir-se automaticamente. Que essa repetição tenha sido quebrada, isso tem o efeito de libertar o controlo da potencialidade que é feito através de um enquadramento rígido da mediação. O que é certo é que o novo

 

 

33 A ideia de uma agora virtual vai-se impondo, apesar de ser facilmente comprová-vel que nada traz dc novo à política moderna. Basta pensar que em meados do século passado o «saintsimonismo» era também uma forma técnica de resolver o problema político, que operou exactamente o contrário do que se esperava. Daí a ingenuidade de afirmações como as de Pierre Lévy: «Os cidadãos poderiam então participar num agenciamento sociotécnico de outro género, que permitiria a grandes colectividades comunicar entre si em tempo real. O cyberspace coopera-tivo deve ser concebido como um verdadeiro serviço público. Esta agora virtual facilizaria a navegação e a orientação no conhecimento; favoreceria as trocas de saberes; acolheria a construção colectiva do sentido; ofereceria pontos de vista dinâmicos de situações colectivas; e permitiria uma avaliação multi-critérios em tempo real de inúmeras porposições, informações e processos em curso. O cyberspace poderia tornar-se no lugar de uma nova forma de democracia directa a grande escala». Cf. LÉVY, Pierre, L'lntelligence Collective. Pour une AnthI opologie du Cyberspace, Paris, La Découverte, 1994, p.70.

34 Tipcamente, Nemo coloca o «espaço público hertziano» na continuidade do espaço público clássico, a que apenas acrescenta «_ um refinamento suplementar, dado que, nesse caso, os indivíduos estão verdadeiramente isolados e ao mesmo tempo ligados à instância que representa a totalidade social», in Le Mónde, 2.10.84, p.2

 

espaço e o espaço clássico se recobrem, e nesse fenómeno desempe-nha um papel essencial o imaginário contemporâneo.

 

4) Os entusiastas do novo espaço, lido como uma forma de «democracia directa», tendem a identificá-lo com o Cyberspace. Esta fórmula é sintomática. O espaço cibernético é um espaço de controlo substancialmente distinto de controlo clássico35, pelo jurídico nomeadamente. O controlo da potencialidade era uma forma de estabilizar a experiência em torno de uma figura historicamente evi-dente, como é o caso do estado de direito. O que enquadrava e limita-va o controlo dentro dessa própria figura que ele potenciava, restrin-gindo-se ao mesmo tempo. Hoje, o controlo é o palco de uma luta incessante em torno do «controlo do controlo», i.e, pelo domínio da actualização. O visado é a actualidade tal como emerge no momento em que a experiência, na sua totalidade, se transforma em meio absoluto do agir. A virtualização implica o controlo, mas o controlo pode destruir a virtualização e com ela a espontaneidade da política.

 

5) A representação era o operador primeiro dos procedimentos clássicos de controlo. Com a crise do espaço a própria representação sai abalada. Tudo indica que a representação é integrada numa mime-sis puramente performativa, que resulta do encurtamento da distância entre representante e representado, não sendo alheio a isso a acelera-ção que permite encurtar a distância, fazendo a repetição descer ten-dencialmente para zero. Muito impende sobre a distância, que agora tem de ser vista como uma dissonância temporal. Só ela permite cur-to-circuitar o novo bloco formado pela permanente reversibilidade do imaginário e do «real». Como diz Mark Taylor: «A acvcão imaginária

 

 

35 Gilles Deleuze tem vindo a desenvolver, embora esparsamente, algumas análises da situação de poder actual, propondo a noção de sociedade de controlo. Destc ponto de vista os textos «Contrôle et Devenir» e «Post-scriptum sur les sociétés de contrôle» são altamente sugestivos, embora algo problemáticos. Com eteito, para Deleuze, entrámos na sociedade de controlo, que se segue à disciplinar (tratada por Foucault), como esta se seguiu à da soberania (a famosa época clássica). Esta é a sociedade da cibernética, da comunicação, caracterizada «non plus par l'enfern1eI1t, mais par contrôle continu et communication instantanée». Para responder a esta situação ele fala na criação de «vacuolos de não-comunica,cão, interruptores, para escapar ao controlo». Sucede, porém, que é possível retraçar uma arqueologia do controlo que acompanha toda a ordem política, sem se confundir com ela. Por nós tendemos a considerar que a metafísica da potência/acto aristotélica é um dos momentos essenciais do pensamento do controlo. A resistência deleuziana, sendo «exterior» à política realmente existente é, neste sentido, bastante problemática. Cf. Pourparlers: 1972-1990, Paris, Minuit, 1991.

não é irreal. Pelo contrário, na cultsim a acção real é necessaria-mente imaginária»36. Quando se pode dizer o inverso com a mesma pertinência37 é porque desembocamos numa situação radicalmente distinta, que a representação já não consegue apreender. Isso não signfica que possa ser abolida, como era o desejo utópico do imaginá-rio da «democracia directa» e, afinal, de toda a idealização do políti-co. A representação irá provavelmente permanecer, mas à custa da sua constante destruição e restauração38.

 

Embora de modo demasiado expedito, verificamos que novos problemas começam a despontar a partir da crise do espaço público. O novo espaço que está a ser constituído não é menos ambivalente que aquele que até agora tem vigorado. As suas possibilidades e os seus perigos, agora potenciados como nunca, não podem ser contidos por uma qualquer revitalização do espaço público moderno. Mas, como vimos, este estava demasiado preso do Estado, que é por essência impolítico. A sua garantização jurídica, enquanto relativa ao público, acabou por revelar-se ilusória. Trata-se de inscrever na medialidade um estilo de agir em modo público, sempre indeterminado e aberto. O que é público só poderá existir, por frágil que seja, como efeito de um agir orientado pela ideia de política; na falta disso, ficará um simples simulacro desse agir. Cada vez menos efectivo, cada vez mais adiado.

 

 

5. Que fazer do espaço público que resta?

 

Porque resta algo - nem que seja o simulacro do seu modelo clássico, ou os restos da sua explosão provocada por forças que não consegue conter, que cada vez mais imaginariamente articula. A uto-

 

 

36 Cultsim traduz o termo americano simcult, combinando dois termos: cultura e simulação. Cf.Mark Taylor e Esa Sarinen, Imagologies. Media Philosophy, Londres, Routledge, 1994:8.

 

37 De qualquer modo estas frases valem o que valem. São indicativas de um proble-ma, não a sua descrição. Que talvez seja impossível se o fenómeno for verdadeiro. Tudo indica, porém, que não se trata de uma experiência generalizada, existindo apenas segmentariamente em certas práticas computacionais e que, previsivel-mente, se irão ampliar. Se abolirão tudo o resto, ou não, é algo que só pode ser respondido politicamente ou tecnicamente. A segunda resposta implicaria a catástrofe do humano.

 

38 Dado o inexorável aceleramento tecnológico de todos os processos, destruição e restauração tenderão a identificar-se, a converter-se uma na outra. Dai a difusa sensação de um esteticismo que se vai disseminando, fazendo de tudo um jogo arbitrário com as formas.

 

pia tecnológica de uma agora virtual é a forma final dessa sobrevi-vência simulacral. Como se tudo pudesse permanecer na mesma, com um remendo aqui, um acrescento ali. Trata-se de uma falsa solução para a falta de política e o excesso de Estado que caracterizou o nosso século. Mas nunca se chega a pôr verdadeiramente em causa a relação do Estado à política, como se este se viesse a dissolver por motivos tecnológicos. Tanta subtilidade dos novos utopistas tem afinal como efeito deixar tudo como está.

 

 

O fundo de verdade das utopias da agora virtual assenta em dois fenómenos interessantes: a difusão da medialidade e o peso crescente da singularidade. Mas a política não é da ordem do individual. A crise dos grandes conceitos agregadores como os de «grupo», de «colecti-vo» e, menos paradoxalmente do que poderá parecer, de «indivíduo», deixa tudo num estado turbilhonário, arrasta tudo para o vórtice da medialidade. Estamos a entrar numa situação quasi-heraclitiana, com um rio cheio de fragmentos, de palavras, de imagens, de desejos, de lixo, mas onde ninguém pode ficar à margem, discutindo se o devir ou o eterno se contrapõem. O «eterno» é um simples fragmento arrastado pelo turbilhão, pois não é mais do que uma imagem, uma miragem, sem outras amarras que o estarjunto, que o ser arrastado juntamente, com todos os outros fragmentos. É este o novum da nosa situação: no fim da história reencontramos a inumanidade da physis, na sua máxi-ma urgência. Os velhos mecanismos de controlo como os do espaço público e o Estado podem cada vez menos nesta situação, que também os arrasta. É precisa uma nova heroicidade, uma frieza capaz de afrontar a irremediável solidão com que todos somos arrastados no turbilhão tecnologicamente acelerado. Não é pelo facto de sermos todos arrastados que se pode formar uma comunidade. Mas é preciso agir aí. Como disse Marx um dia: Hic rodus hic salta .

 

 

Sob pena de a incapacidade para a afrontar a vertigem, a recusa do «conhecimento da dor» (Gadda), prolongarem o que mais de pro-blemático estava oculto na ordem política moderna - a vontade de controlo total e absoluto. Quanto mais as coisas «nos» escaparem mais controlo daremos ao Estado. Quanto mais este se sentir impoten-te, mais será dirigido pela vontade de controlo. A tarefa mais urgente é a luta contra o controlo, contra o imaginário do controlo. Como disse Mark Taylor «na cultura do simulacro [...] o domínio da luta

política é agora o imaginário»39. O imaginário é o palco da luta porque nele se joga a polarização da medialidade em torno de certas imagens, ideias e palavras. No controlo está em jogo a capacidade constituinte de cada um e de todos, num momento em que a «consti-tuição» clássica já não consegue controlar tudo o que de centrífugo existe na experiência.

Dada a urgência da situação, tudo depende do agir político. E se já não podemos falar de um universal positivo, como era antanho a razão ou o diálogo, podemos falar ainda de um universal negativo. Todos estamos arrastados, pressionados pela mesma situação. Con-duzidos até à linha, como diria Jünger. Em suma, dada a universaliza-ção do problema do controlo, todos estamos intimados a responder--lhe, sem esperar pelos outros. Como de vários modos o diremos com estes ensaios, cada um tem de agir, aqui e agora. A difusão acelerada de todo o acto, que funciona como uma espécie de pontualizador do grande vórtice, tem virtualidades políticas.

Mas, aqui chegados, não há nenhuma garantia de sucesso. Tam-bém nenhuma experiência anterior nos pode certificar ou orientar. O passado e o futuro convergem para a medialidade instantânea do actual. O que nos permite responder às perguntas: o que pode restar? o qlle merece perdurar? Não devemos abandonar nada, nem mesmo aquilo que constituiu a ordem política moderna, as nações, as línguas, as diferenças. Mesmo que estes apareçam cada vez mais frágeis. Trata-se então de defender tudo? Não, apenas aquilo porque estamos dispostos a lutar.

 

 

 

 

 

39 Taylor, op. ult. cit., «Telepolitics», 2.