Objectos Indutores e Formação do Valor

 

Eduardo Jorge Esperança

 

 

 

"Ninguém ignora - nem mesmo os economistas - que o mercado da arte, antigo ou contemporâneo, é uma construção extremamente sofisticada e que a primeira realidade a analisar é a sociológica. O preço ratifica com efeito um trabalho não económico de credibilização sobre o plano estético, um trabalho de homologação realizado pelos especialistas, historiadores, teóricos e críticos de arte, conservadores de museu, profissionais da arte de todos os géneros.  A certificação do valor artístico de uma obra particular, operada pelos experts (...) intervém num momento chave no processo de construção do valor artístico, quer se trate da entrada da obra no museu, ou do seu leilão. Reduzindo a incerteza sobre o valor das obras, a certificação do valor de arte pelos experts é um meio de corrigir a assimetria da informação característica dos mercados de arte."

Traduzido de De La Valeur de L`art, Raymonde Moulin, ed. Flammarion, Paris, 1995, p. 256

 

 

Dentro das condições de constituição e manutenção do Espaço Público, observa-se a

existência de uma experiência inerente a este espaço que impõe condições de visibilidade. Condições de um determinado tipo,  daí emergindo a necessidade de exposição e acesso ao próprio espaço público. "Remontando historicamente ao Iluminismo, a preocupação Moderna com a aparência é sinal da necessidade imperativa de controlar o aparecer, numa situação permanentemente assolada pelo inesperado, onde tudo o que aparece fora do ontrolo humano, surge como catástrofe ou como acidente. (...)A invasão do Espaço Público pela cultura mediática, a tecnologização das formas de mediação, a acelerada Bilderstreit que ataca a centralidade da palavra, a explosão das categorias políticas clássicas(...)  Apesar das semelhanças formais com a agora grega, há uma diferença que se revela decisiva: o espaço público é abstracto e ldeslocalizado, tendo limites extremamente flutuantes, o que não acontecia no «espaço» grego ou medieval, que era concreto e localizado."[1]

Fazendo a generalização possível, para o acesso ao valor e formas de valoração inerentes e exigindo exposição no Espaço Público, os objectos "candidatos" a essa forma de exposição e valoração, sujeitam-se aos constrangimentos de adequação às morfologias específicas  que cada medium impõe.

Destaca-se, assim, a capacidade intrínseca de adequação de cada objecto a um dado medium. Existirão objectos que, pela própria morfologia original, parecem talhados para o sucesso num determinado tipo de medium. Por exemplo, um objecto simbólico-ideológico, símbolo/ideia enformada pela palavra que lhe dá corpo, será necessariamente um "objecto" com estatuto de privilégio na imprensa escrita. O mesmo não acontece com o mesmo objecto incorporado na palavra e na linguagem ao emergir num medium imagético como a televisão - no caso da palavra, esta terá de ser embrulhada, "packadged",  com imagens - para ter acesso ou ser acedida num medium de imagem.

Observa-se, por vezes, alguma inépcia dos produtores publicitários quando se nota a sua negligência relativamente a este factor - a morfologia da palavra escrita - essencialmente imagética, não é a mesma da palavra falada, que produz uma imagem fonética. Há nomes que são agradáveis de ver escritos e horríveis de ouvir, e vice-versa. O meio não será a mensagem em termos absolutos, mas a mensagem/sinal que não tiver em conta o meio, arrisca-se a não chegar ou chegar mal ao receptor.

Mas, qual é hoje a ordem do privilégio?  Que formas de expressão e objectos mais adequados saem hoje beneficiados, perante o panorama mediático que se nos apresenta?

Sem grandes contestações, podemos observar uma morfologia que se caracteriza por implicar:

1 - a necessidade impressiva da imagem;

2 - a necessidade de performatividade;

Uma cruza-se com a outra. Só por razões heurísticas as separamos. A imagem impressiva tem implicada, entre outras, a performance da impressão; por outro lado, é difícil perceber a performatividade num qualquer processo que envolva acção, sem prévia impressão.

A ordem da performatividade determina aqui O QUE É CAPAZ/ o que age/ consegue;

Observa-se na contemporaneidade  um império do valor da performatividade na acção — grande auxiliar do operador técnico e das suas lógicas de valoração. Só no fim desta cadeia de constrangimentos se pode perceber qualquer fenómeno de conversão de valores, (tendo como plataforma os media).

 

 

A Morfologia espectacular da mediação —

a evolução para um novo modelo da visibilidadeErro! Marcador não definido.

 

O espectacular, caracterizado enquanto a operacionalização do que é dado a ver, como factor, ocupa um lugar de destaque na "montra" do espaço público contemporâneo. Para abordar mais practicamente esta questão podemos, por exemplo, observar na preponderância dos edifícios, que hoje recebem o nome técnico de "património ou parque edificado", o modo como são contabilizadas todas as dimensões de espectacularidade: as dimensões inerentes ao modo objectal/objectivo como o edifício se corporifica na sua presença envolvente; as dimensões temporais em que o mesmo se presentifica ao sujeito como palimpsesto dos tempos e dos usos a que foi sujeito. O edifício é, à partida, um objecto passível de espectacularização. De entre as criações do homem, esta é um dos suportes ideais para tudo o que pode ser oferecido ao olhar, numa altura em que o olhar é um acto preponderante e valorizado na constituição das diversas práticas sociais que se desenrolam no quotidiano actual. A própria noção de património enquanto expressão abrangente, cobre um conjunto de factores e adquire uma dinâmica, por entre as situações e os objectos que dão a cara, que se mostram e se constituem ao olhar como espectáculo.[2]

Por exemplo, o Património, integrado no pelouro da cultura, não se afasta da lógica de espectacularização, antes pelo contrário. A especificidade do campo, todo ele constituído por objectos de maior ou menor porte, mas todos potencialmente espectacularizáveis, é uma fonte de exposição e "preenchimento da face" frente a um espaço público ávido de imagem. Em Portugal há exemplos de sobra relativamente ao predomínio da acção espectacularizável, em prejuízo da acção menor ou neutra em termos espectaculares. A começar pelo investimento no Centro Cultural de Belém, e depois na EXPO 98, com toda a polémica gerada e vigente, e cuja observação sociológica daria, decerto, um trabalho volumoso; ou, em organismos menores em que estivemos envolvidos, como o Arquivo Nacional de Imagens em Movimento, que só arrancou quando, por persistência, foi possível convencer a tutela de que não há museu sem arquivo, também no caso do cinema, pois a parte mais importante são os filmes a recuperar.

Também no caso da avidez mediática e de espectáculo, a observação sociológica é obrigada a cruzar e perceber a economia eleitoral com a psicologia política dos sujeitos no poder, cuja orientação é regida pela permanente construção de uma imagem pública securizante dos seus actos executivos e políticos. É a esta imagem que o político português presta cada vez mais atenção, ora rodeando-se de especialistas, ora produzindo uma "bricolage" (do-it-yourself), que vai do genial ao desastroso, consoante a capacidade mediática da personalidade.[3]

Praticamente toda a vida das sociedades nas quais se sustentam as condições modernas de produção pode ser observada como uma enorme acumulação de espectáculos; o que é dado a ver, se expõe e assume essa como a sua primeira função. Toda a vivência directa do mundo se afasta para dar lugar à representação.[4]  A encenação e o espectáculo não podem ser compreendidos como o abuso de um mundo da visão, o produto das técnicas de difusão massiva de imagens. Ele é bem mais uma Weltanschauung  tornada efectiva, materialmente traduzida. É uma visão do mundo que se objectivou nos locais e corpos mais propícios à exposição.

"O carácter fundamentalmente tautológico do espectáculo decorre do simples facto de os seus meios serem ao mesmo tempo a sua finalidade.(...) O espectáculo apresenta-se como uma enorme positividade indiscutível e inacessível. Ele nada mais diz senão que "o que aparece é bom, o que é bom aparece. A atitude que ele exige por princípio é esta aceitação passiva que, na verdade ele já obteve pela sua maneira de aparecer sem réplica, pelo seu monopólio da aparência."[5] Somos convidados a reparar em alguns elementos homólogos que emergem na cena do Património. O edifício que se restaura e ilumina; o objecto que se expõe no museu ou na galeria; a peça ou o concerto (espectaculares) que se levam à cena no "Centro Cultural" em salas contíguas àquelas em que se expõem objectos; enfim, a "cultura" que se espectaculariza.

A própria teoria e acordos mundiais acerca dos procedimentos de restauro de edifícios e obras de arte, passa pelo privilégio da imagem do objecto, da percepção da exterioridade do corpo do objecto que se deve manter, o que é mais que meio caminho andado para a potencialidade espectacular do objecto restaurado."La consistencia física de la obra de arte debe tener necesariamente prioridad, porque representa el lugar mismo de la manifestación de la imagen."[6]  Isto para não falar nos constrangimentos económicos que não vão decerto permitir um investimento pesado de restauro, sem a garantia de uma rendibilidade posterior, que passa pela exploração espectacular.[7]

Os próprios media, que atrás observámos, se enquadram totalmente nesta lógica da imagem-visão, mesmo quando na ritualidade dos seus procedimentos, lhe chamamos "transparência".[8]        De algum modo, podemos considerar as diversas formas e dispositivos de espectacularização nos campos da cultura e do património como agentes mercadológicos dos bens espectacularizados; um agenciamente que vai interferir na génese do valor desses bens, tanto dentro como fora do campo.         

É preciso então ter em conta a dimensão de espectacularidade que se torna cada vez mais candente no espaço público, na força da imagem que o bem veícula. Existirão assim, conforme a morfologia do objecto, envolvimentos experiênciais mais e menos espectaculares. Algo que vai determinar a força axiológica desse objecto e experiência específica a ele associados. Torna-se por isso importante especificarmos as características e morfologia desse «valor» que nos serve aqui de instrumento para o esboço de uma tipologia axiológica geral. Esta é uma análise que nos leva ao destaque das formas reificantes que emergem para a "lubrificação" da máquina de  exposição e consumo sobre a qual emerge o «valor» mais ou menos estabilizado, mais ou menos indexado aos campos de origem. São os efeitos produzidos pela acção de reificação que a racionalidade Moderna proporcionou, assim como a facilitação que um campo de representações reificadas proporciona à constituição do valor a partir da interacção e relação entre representações estabilizadas. É preciso atentar ainda no papel da troca enquanto acção de intercâmbio na génese de um valor supra-campo, indexado a um outro estalão e uma outra racionalidade axiológica com base no valor de troca produzido no cenário do consenso possível e circunstancial do momento e da situação contextual.

Se quisermos descer um pouco ao nível de podermos observar a arqueologia dessa produção é necessário, pelo menos, estatuir alguns princípios conhecidos de emergência do valor. Este é, antes do mais, uma representação pré-figurativa de um acto de relação, de troca, de comparação com, de transacção. O valor indexado, por exemplo, a um objecto, implica que se pressuponha um quadro de opções de agenciamento, um quadro de hipóteses de actos de valoração no qual se situa o objecto. O ponto onde se situa o bem a valorar nesse quadro de opções de selecção — antes, depois de, ao mesmo tempo, primeiro que tudo, em segundo lugar, etc — constitui a representação do seu valor pelo nível de prioridade de selecção.[9]  Ao definir assim o «valor» como constituindo-se com base nas prioridades de selecção, temos uma certa dificuldade em chegar aos modos hiper-reificados como hoje se operam a generalidade das  transacções e relações num «mercado» tão vasto e abrangente como o que aqui contextualiza esta noção de «valor».

Impõe-se, no mínimo, reconfigurar a noção de «valor» que aqui queremos utilizar. Esta começa pela relatividade implicada em todas as actualizações em que emerge. É quando a transacção se realiza que o «valor» é observável. Por isso se torna necessário ter sempre bem presente o contexto contingencial, a situação em que se actualiza num qualquer género de bem, a que aqui chamamos bem-de-valor, numa redundância que é suposto apenas representar essas duas faces — a material e a axiológica — do objecto/bem. Esse contexto é constituído pelo «mercado», na acepção igualmente alargada a que antes aludimos e que, em poucas palavras, se pode definir como o conjunto das circunstâncias que contribuem para a indexação de uma determinada qualidade e quantidade de «valor» a um objecto/bem.

Assim, e em termos de caracterização do que pretendemos aqui abordar, percebe-se que o «valor»:

 

a) Está indexado a um objecto/bem que o materializa;

b) Só emerge, só se actualiza no processo de transacção entre instâncias de permuta que, na sua frequência e multiplicidade constituem um «mercado»;

c) Esse é um contexto de relatividade (maior ou menor), — por relação a — consoante o lugar que ocupa o bem indexado entre as selecções de prioridade;

d) Encontramos essencialmente dois padrões diferentes de emergência do «valor», diferindo consoante a morfologia do território em que emerge:

d-1) A actualização do «valor» dentro de um campo social específico emerge pautada por uma axiologia muito precisa e pré-configurada pela axiologia própria do campo; pode dizer-se que o valor actualizado dentro de um campo tem muito pouco de contingente dada a lógica de continuidade e estabilização por que se rege. Pode dizer-se que esta actualização transaccional do «valor» é nitidamente mediada pela axiologia («mercado» localizado) do campo.

d-2) A actualização do «valor» num «mercado» global e vasto como o económico ou mesmo o da generalidade das indústrias culturais, é padronizada pela contingência determinada por uma infinidade de elementos co-presentes em qualquer acto de transacção. Uma lógica de emergência que não respeita qualquer axiologia pré-constituída — excepto a níveis muito reduzidos e apenas com fins operacionais para facilitar e acelerar as transacções. Uma lógica, em princípio, articulada apenas sobre o acordo (sobre o valor) entre as partes; mediada pela situação (de necessidade maior ou menor, de informação, de poder extra-negocial, etc) das partes, sua localização na contingência do mercado global e do tempo.

Uma vez que o índice de visibilidade do objecto no Espaço Público está dependente da adequação da sua morfologia à morfologia do medium, pode partir-se para a asserção de que existe uma relação não directa, mas condicionada, entre visibilidade e capacidade de valoração logo, entre a morfologia do objecto e a sua capacidade de valoração;

Existem portanto objectos, à partida, com diversos potenciais de valoração, cujo índice pode ser mais ou menos aferido pela sua morfologia mais ou menos espectacular em termos de visibilidade, mais ou menos indutores de performatividade. —  Os objectos espectaculares são, na contemporaneiadade, os objectos naturalmente mais valorados. Falamos de uma espectacularidade "natural"[10] inerente à morfologia objectal do objecto.

No entanto, podemos encontrar outras formas de espectacularidade, estas mais de tipo retórico-narrativo que, a um certo nível se poderiam considerar virtuais. Estas formas de espectacularidade podem ser encontradas nos discursos,  narrativas e cenários constituídos em volta dos objectos. As situações mais demonstrativas disto ocorrem quando são envolvidos objectos de visibilidade e espectacularidade quase nula, mas expostos sobre cenários constituídos a partir da enunciação produzida por individualidades com capital de visibilidade e valoração adquiridos. A estes podemos chamar sujeitos e objectos indutores de valoração. Como é que os podemos definir:

Sujeitos indutores de valoração, podem ser consideradas todas as individualidades e personalidades ou instâncias que se apresentem frente a um público - televisivo, radiofónico, etc, - e que de algum modo transportem consigo um capital e um crédito que podemos nomear como capital histórico de exposição, caracterizado pela história das suas aparições - força, impacto e tempo de exposição -  nos media. O resultado oferecido é um determinado nível de referência no espaço público, constituinte do seu capital de exposição.

Objectos indutores de valoração, podem igualmente ser considerados todos os objectos que, devido a fenómenos modais, ou pela sua adequação ao olhar, são naturalmente detentores de um capital de exposição e valoração adquiridos ao longo do tempo.

A indção, tanto por parte de sujeitos, como de objectos, ocorre sempre que determinado objecto - geralmente de índice de valor fraco - é associado a um objecto de maior capital. Assim ocorrem todo o tipo de associações por parte de sujeitos com capital que se pronunciam sobre objectos ou sujeitos-objecto de modo a produzir uma contaminação de valor do seu capital para o do objecto.

Podem ocorrer vários tipos de operação nesta economia do intercâmbio de valores ou da comunicação dos valores, que são sempre levadas a efeito por sujeitos, mas que podem expôr apenas objectos. Por exemplo, quando alguém associa objectos diferentemente valorados de modo a que se observem contaminações de valor, sejam elas positivas ou negativas.[11]

A partir daqui há a hipótese arriscada de gisar um quadro contemporâneo da produção axiológica, isto é, perceber e definir a rede por onde se cruzam formas diferentes de valor emergente na contemporaneidade , a sua morfologia, os modos de emergência e os padrões inerentes aos campos em que emerge.

Interessa então, a partir da parcelização operada por este quadro, conseguir encontrar um outro, ao mesmo tempo técnico, operativo, envolvendo uma percentagem de determinação, e compósito na sua constituição qualitativa e axiológica. Quer isto dizer que iríamos observar, em termos de uma pragmática:

a) a performance dos vários tipos de indutores colocados em campo, particularmente nos media;

b) se é possível separar ou indexar indutores naturais e indutores construídos;

c) O que caracteriza a sua acção , modelo de acção, e lhes define uma identidade técnica para nosso uso (tangibilidade metodológica);

d) Que formas de articulação se podem encontrar entre sujeitos e sujeitos, sujeitos e objectos, objectos e objectos de indução;

e) Se é possível descortinar constelações padronizadas de indutores.

Em termos de síntese, observamos na contemporaneidade,  na ordem da videosfera, da imagem e da presentação, a generalidade das condições que constrangem o percurso dos objectos. Sabemos que há uma faceta de engenharia comunicacional que faz render a excedência do simbólico, do imaginário mas, essencialmente, do espectacular e que é hoje bem paga.

 

Por exemplo, O PATRIMÓNIO, enquanto (marca/etiqueta) — é hoje uma casa dispersa onde se encenam os espectáculos do valor.  — onde acontecem, e por onde se induzem as metamorfoses possíveis — entre-campos, com os media como plataforma de conversão.

Já foi amplamente discutida nos anos oitenta, e está cada vez mais fora de questão confiar na  transparência formal dos media.

Por outro lado, existe uma pulverização das constituições axiológicas (como é que esta se construíu) mas, ainda assim, existem estabilidades.

Nesta pulverização da emergência e da constituição, Observa-se que:

O valor inerente a um objecto/indivíduo/situação, pode aparecer em qualquer lugar ou altura, mas só se mantém com o suporte de um aparelho que é a rede, melhor ou pior constituída por um campo de forças organizadas. Produz-se poder transaccional, força de exposição, performance, chamem-lhe o que quiserem, mas, a  Valoração específica, e a sua manutenção está dependente da morfologia específica e força de valoração de cada campo. Daqui a selecção de  indutores de valoração preferenciais conforme o campo.

A importância das indústrias mediáticas (campo da mediação)

Os dois casos exemplo que passamos a enunciar, ocorrem em termos comparativos apenas por razões heurísticas; são o caso das gravuras , agora parque de Foz Côa, versus a barragem em construção. São o caso de Timor versus Angola. Aparentemente nada os associa, mas ambos os casos têm algo em comum:

a) Foram casos hiper-mediatizados e

b) Os circunstantes locais não foram, na generalidade, perdidos nem achados para a decisão sobre o olhar.

Foz Côa tem, à partida e neste contexto,  um problema — uma Imagem fraca. Figuras sumidas em baixo relevo; as camaras não ver, e os olhos só de muito perto e no local.

O parque não impressiona o vulgo; só os especialistas e os "convertidos" entendem, choram, se comovem com Foz Côa  — os outros 4 milhões de telespectadores comovem-se e impressionam-se com telenovelas — esses não se encontram nem vão a Foz Côa.

Foz Côa não comove os votantes. Precisa de muitos e fortes indutores.

Estes são constituídos pelas personalidades locais com mais capital de exposição e valoração; por boa parte dos arqueólogos; por algumas individualidades fortes da política (gov.PS) e da cultura (P. governo).

É interessante, porque, como processo em aberto, pela sua morfologia frágil, está sujeita a qualquer tipo de convulsões/ contingências. Particularmente porque se envolve num conflito com outro bem social; uma barragem. — cenário:

 

Bem social de cultura e prestígio

               versus

Bem social de bem estar e progresso.

 

O conflito exorbitou o espaço nacional e envolveu arqueólogos de todo o mundo, e parte dos media, particularmente os impressos.

O cenário Foz Côa está em fase de estabilização, mas as convulsões ainda não pararam. Há novos indutores a identificar.

 

O caso de Timor pode assim enunciar-se:

à custa de muita indução e capital político foi possível produzir sobre Timor uma hegemonia opinativa e até interventora acerca do dever fazer e da política a aplicar ao território. Intervenções de todos os quadrantes, donativos de todos os quadrantes, resultado: um suporte em uníssono como nenhum outro objecto antes obtivera.

Por outro lado, Angola, outro "objecto" há muito carenciado, com fome e mortes aos milhões e não aos milhares; com uma intervenção (igualmente vergonhosa) da ONU que retirou quando mais era precisa, pouco ou nenhum impacto teve em Portugal[12], tendo o país laços de relação tão ou mais fortes que com Timor.

Há aqui muitos factores envolvidos, em particular as circuntâncias contextuais, mas é difícil perceber a "diferença de tratamento", e as orientações do olhar público...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1]"Com a crise do Espaço Público clássico - a sua forma contemporânea é já um simulacro deste - chega ao fim a visão limitada da mediação, que o restringia às instituições enquadradas institucionalmente, aos espaços historicamente ligados às nações (i.e. com a geopolítica) ou então mais decisivamente à sua relação ao Estado. A consequência inevitável acabou por ser a crescente despolitização da vida pública, a difusão de um hedonismo banalizado, a espectacularização do próprio Estado, etc. Agora é a própria mediação que emerge como uma questão decisiva."O Novo Espaço Público, Bragança de Miranda, José. em Revista de Comunicação e Linguagens, nº 21-22 Comunicação e Política, ed. Cosmos, Lisboa, 1995, pps. 130,131,138.

"Além disso é um espaço público caracterizado pela presença de sondagens, que constroem uma representação permanente da opinião pública.(...) Recenseámos pois, as características da sociedade individualista de massa, que passam pela gestõ de três parâmetros frequentemente contraditórios; a liberdade e a pluralidade da informação; a valorização do individuo; uma sociedade marcada pelo número e pelos estereótipos."

As contradições do Espaço Público meditatizado,  Wolton, D., em Revista de Comunicação e Linguagens, nº 21-22 Comunicação e Política, ed. Cosmos, Lisboa, 1995, p. 169.

 

 

[2]"Le spectacle n'est pas un ensemble d'images, mais un rapport social entre des presonnes, médiatisé par des images. (...) Toute la vie des sociétés dans lesquelles règnent les conditions modernes de production s'annonce comme une immense accumulation de spectacles. Tout ce qui était directement vécu s'est éloigné dans une représentation." G. Debord, La Société du Spectacle, Seuil 1976, trad. Port. A Sociedade do Espectáculo, ed. mobilis in mobile, Lisboa 1991

"Nous restons spectateurs de nous-mêmes, sans devenir jamais les acteurs de notre vie. Nous nous offrons en permanence des représentations, "expositions universelles" d'art et de savoir, oú notre jouissance avide de ce que d'autres ont fait suffit à nous ravir. La guerre elle-même est vécue pour nous sur le mode spectaculaire, papiers imprimés au XIX siécle, images au XX, présentée comme nouveau stimulant au gosier fatigué de l'homme avide d'histoire".

Introduction a Seconde Considération Intempestive de F. Nietzsche, por Pierre-Yves Bourdil, ed.Flammarion, Paris 1988, p.36

 

 

[3]O terror do político eleito é, na relação entre este Estado contraditório e a ideologia da "transparência" imposta pelos media, o aparecimento de qualquer mancha inusitada nessa imagem tratada com cuidado.

 

 

[4]E isto aos mais diversos níveis, quer na ordem do simbólico e discursivo, no modo como a palavra se quer representar o objecto, como na ordem do político ; "A representação é um motivo central da ordem moderna, tendo relevância em todos os domínios da experiência., para além do político.Especificamente do ponto de vista plitico, trata-se de uma forma de resolver praticamente a oposição metafísica entre presença e ausência.Assunto bem dramático, pois se todos os homens são cidadãos, e portanto dotados de capacidade política, todos deveriam estar presentes na decisão, deliberação e governo. Mas uns estão mais presentes do que outros, como se sabe. (...)"

O Novo Espaço Público, Bragança de Miranda, José. em Revista de Comunicação e Linguagens, nº 21-22 Comunicação e Política, ed. Cosmos, Lisboa, 1995, nota 25, p.146.

Ver, igualmente,  A Sociedade do Espectáculo, Guy Debord, ed. mobilis in mobile, Lisboa, 1991, p.9.

 

 

[5]ibidem em A Sociedade do Espectáculo, p.13

 

 

[6]"El concepto de restauración", em Teoria de la Restauración, Cesari Brandi, ed. Alianza, Madrid, 1992, p.16

 

 

[7]Apesar de Portugal ser um país de fenómenos sui-generis nestes campos, uma espécie de "Entroncamento" da Europa; só assim se percebe que se invistam centenas de milhares de contos em filmes que nunca foram vistos pelo público; em edifícios cujo restauro ficou a meio ou que se finalizou mas não se tratou da sua manutenção; em equipamento hospitalar que se manteve encaixotado sem nunca ter servido; em...     Apesar da explicação passar sempre por uma "cultura de Estado burocrático, desequilibrado e disfuncional", existem, de facto, erros e disfuncionalidades que, se fossem contabilizadas no OGE, deixariam o cidadão contribuinte um pouco mais mal-disposto do que já anda.

 

 

[8]"A dessacralização e a transparência são, por conseguinte, os mecanismos que presidem ao processo de ritualização do campo dos media."

Estratégias da Comunicação, Adriano D. Rodrigues, ed. Presença, Lisboa, 1990, p.157

 

 

[9]"(...) o valor sendo como é «uma ideia da proporção entre a posse de uma coisa e a posse de outra no conceito do homem», «significa sempre valor de troca». Pois é somente no mercado de trocas, onde todas as coisas podem ser trocadas por outras, que todas elas se tornam «valores», quer sejam produtos do labor ou do trabalho, quer sejam objectos de uso ou de consumo, necessários à vida do corpo, ao conforto da existência ou à vida mental. Este valor consiste unicamente na estima da esfera pública na qual as coisas surgem como mercadorias; e o que confere esse valor a um objecto não é o capital nem o lucro nem o material, mas única e exclusivamente a esfera pública, na qual o objecto surge para ser estimado, exigido ou desdenhado. O valor é aquela qualidade que nenhuma coisa pode ter na privatividade, mas que todas adquirem automaticamente assim que surgem em público.(...)"

ibidem, A Condição Humana, p. 177

 

[10]Pensar uma espectacularidade natural, implica descer ao étimo - speculum - o que é mais espelhável e visível, literalmente "o que dá mais nas vistas". Para lá de todas as contingências locais, pode dizer-se que "o que dá mais nas vistas " é necessariamente o que mais agrada ou agride o olhar. Isto não é assim tão simples, pois sabemos igualmente que o olhar é condicionado histórica e socialmente. Um objecto hoje interessante não o é amanhã e um objecto interessante aqui não o é ali, noura sociedade. É de notar que com a crescente globalização, até social, a panóplia de objectos interessantes tende a homogeneizar-se globalmente. Como tal, também o olhar tende a homogeneizar-se, o que leva a um empobrecimento da experiência global, e a outras consequências.

 

 

[11]Em termos simples, pode exemplificar-se com o enunciado do sujeito que diz ou mostra: "eu sou muito bom, e seguro este objecto igualmente conhecido e muito bom, junto deste outro desconhecido, que quero mostrar e associar a mim e ao objecto muito bom para que o seu valor cresça."

 

 

[12]Mais visíveis foram apenas alguns peditórios para as crianças carenciadas e algum trabalho das ONGs. Testemunho recente do que aqui refiro são, na revista FOCUS nº 1 de 25 de Outubro - logo a seguir às eleições legislativas em Portugal e ao uníssono Timorense, o título em capa de revista «Angola a Tragédia Esquecida» p.66. E no Jornal Público, de 25 de Outubro de 1999, pag. 20 pode ler-se "Pelo menos 200 pessoas estão a morrer diariamente na guerra de Angola, que o influente United States Institute of Peace (USIP) já disse este mês ser a mais mortífera que actualmente se está a passar no mundo "com muito mais gente a necessitar de auxílio do que no Kosovo e uma mais elevada taxa de mortalidade do que Timor-Leste".