Réponses

 

Pour une Anthropologie Reflexive

Pierre Bourdieu avec Loic J.D. Wacquant

ed. SEUIL, Paris, 1992

Tradução de Eduardo Jorge Esperança

p/ uso exclusivo na Un. Évora

 

Introdução (ao pensamento de Pierre Bourdieu)

 

O trabalho produzido por Pierre Bourdieu ao longo das últimas três décadas tem-se afirmado como um dos corpus de teoria e de pesquisa sociológica mais imaginativos e férteis do pós-guerra. Depois de uma longa fase de incubação, a sua influência cresceu rapidamente  e espalhou-se continuamente pelas disciplinas ‑ da antropologia e da sociologia da educação à História, à linguística, ciências políticas, filosofia, estética e estudos literários ‑ países europeus do ocidente e do leste, Escandinávia, América Latina, Þsia e Estados Unidos.

Devido ao seu profundo desrespeito pelas fronteiras disciplinares, da variadíssima gama de domínios  especializados de pesquisa que atravessa, (do estudo dos camponeses, da arte, desemprego, escola, direito, da ciência e literatura à análise do parentesco, classes, religião, política, desporto, linguagem, habitação, intelectuais e Estado), e pela sua diversidade estilística ‑ da descrição etnográfica pormenorizada aos argumentos teóricos e filosóficos mais abstractos passando pelos modelos estatísticos ‑ a obra de Bourdieu constitui um desafio às actuais divisões e modos de pensar estabelecidos das ciências sociais.

 

 

Nota (inocente) do tradutor

 

É a força de síntese e o carácter altamente didáctico destes textos o que me leva ao esforço de tradução e edição do mesmo. Num espaço carente de ideias e conhecimento, tanto ao nível intelectual como material, pela mais difusa panóplia de pressões e desinvestimento que hoje se vive, espero que isto seja útil pelo menos para os alunos do curso de sociologia da Universidade de Évora.


O que mais incomoda nesta obra, é que ela se aplica com obstinação a transcender várias das antinomias perénes que minam as ciências sociais por dentro por exemplo, o antagonismo aparentemente inultrapassável entre os modos de conhecimento subjectivo e objectivo, a separação da análise do simbólico e do material, enfim, o divórcio persistente entre a teoria e a pesquisa empírica. Com isto, Pierre Bourdieu foi levado a desfazer-se de outras duas dicotomias que têm recentemente aparecido à frente da cena teórica, a da estrutura e do agente por um lado, e a da micro e macro-análise por outro, elaborando um conjunto de conceitos e de abordagens metodológicas  capazes de dissolver estas distinções. Surdo às sirenes da moda intelectual, P. Bourdieu não cessou de afirmar a possibilidade de uma economia unificada das práticas, e particularmente do poder simbólico, capaz de soldar a abordagem fenomenológica e a estrutural num tipo de pesquisa integrado, epistemologicamente coerente e de validade universal uma antropologia no sentido kantiano do termo, mas que de distinto tem o facto de englobar explicitamente as actividades de  análise de si própria.

No entanto, paradoxalmente, este trabalho tão totalizante e sistemático ao mesmo tempo foi frequentemente entendido, apreendido e assimilado aos bocados e às tiras. Se alguns dos conceitos por ele forjados, como o de capital cultural, foram grandemente utilizados e por vezes de modo bastante engenhoso, por especialistas americanos, a economia e a lógica de conjunto da sua obra continuam bastante incompreendidos. A espantosa diversidade de interpretações, as críticas mutuamente exclusivas e as reacções contraditórias que esta obra suscitou são testemunho disso, tal como a fragmentação e mutilação que acompanhou a sua importação através do Atlântico. Em termos simples, a assimilação do trabalho de Bourdieu na América tem-se organizado essencialmente em volta de três centros principais, cada um marcado por um dos seus maiores livros os especialistas da Educação concentram-se n'"A Reprodução elementos para uma teoria do sistema de ensino"(ed. Vega, Lisboa 1979), os antropólogos nas etnografias da Argélia e na exposição da teoria do Habitus e do capital simbólico oferecidos em "Esquisse d'une theorie de la pratique, enquanto que os sociólogos da Cultura, da estética e das classes sociais trabalham "La Distinction. Critique sociale du jugement" que é o seu ponto de referência. Cada grupo ignora os outros, e raros são os que descobriram as ligações orgânicas, teóricas e empíricas  que ligam as pesquisas de Bourdieu nestes e noutros domínios. Acontece que apesar da vasta literatura secundária que proliferou nos últimos anos em volta dos seus trabalhos, Bourdieu continua uma espécie de enigma intelectual. O objectivo desta introdução é o de oferecer um início de resposta, esboçando em grandes traços a estrutura da sua teoria do conhecimento, das práticas e da sociedade.

_ guisa de prolegómeno ao corpo principal do livro, proponho-me destacar de modo sumário os postulados centrais que dão ao trabalho de Bourdieu a sua unidade e direcção de conjunto. Na base de uma ontologia não cartesiana que se recusa a separar ou opôr objecto e sujeito, intenção e causa, materialidade e representação simbólica, Bourdieu esforça-se por transcender a redução mutilante da Sociologia seja a uma física objectivista das estruturas materiais por um lado, seja a uma fenomenologia construtivista das formas cognitivas por outro, por via de um estruturalismo genético capaz de envolver uma na outra. Isto, propondo um método feito de modo a colocar os problemas, e de um conjunto parcimonioso de utensílios e procedimentos permitindo construir objectos e transferir o saber obtido num domínio de investigação para outro.(...)

 

 

1. Para lá da antinomia entre física social e fenomenologia social

 

Segundo Bourdieu, a Sociologia tem por tarefa mostrar as estruturas mais profundamente enterradas dos diversos mundos sociais que constituem o universo social, assim como os mecanismos que tendem a assegurar a sua reprodução ou transformação. Este universo tem por particularidade o facto das estruturas que o formam levarem, se assim se pode dizer, uma vida dupla. Existem duas vezes, uma primeira na "objectividade de primeira ordem" oferecida pela distribuição de recursos materiais e dos meios de apropriação dos bens e dos valores socialmente raros (dos tipos de capital na linguagem de Bourdieu) e uma segunda vez na "objectividade de segunda ordem", sob a forma de esquemas mentais e corporais que funcionam como matriz simbólica das actividades práticas, condutas, pensamentos, sentimentos e juízos dos agentes sociais. Os factos sociais são também objecto de conhecimentos na própria realidade, pois os seres humanos dão sentido ao mundo que os faz. Uma ciência da sociedade deve necessariamente por isso proceder a uma dupla leitura ou, para ser mais preciso, deve ajustar uns óculos analíticos tridimensionais que acumulem as virtudes epistémicas de cada uma das leituras evitando ainda assim os defeitos das duas.

A primeira leitura trata a sociedade como uma física social, enquanto estrutura objectiva, observada do exterior, cujas articulações podem ser vistas materialmente, medidas, cartografadas. A força deste ponto de vista objectivista ou estruturalista (cujo paradigma é dado pelo Durkheim do "Suicídio" e que é exemplificado, em França, quando Bourdieu apresenta o primeiro delineamento da sua teoria, pela linguística saussuriana e pelo estruturalismo levi-straussiano) está no facto de destruir a "ilusão de transparência do mundo social". A ruptura com as percepções comuns permite expôr as "relações definidas" no seio das quais homens e mulheres entram necessariamente "de modo a produzirem a sua existência social"(Marx). Com os utensílios da estatística, da descrição etnográfica ou da modelização formal, o observador exterior pode reconstituir  a "espécie de pauta não escrita segundo a qual se organizam as acções dos agentes que crêem cada um improvisar a sua melodia" (Bourdieu) e determinar as regularidades objectivas às quais obedecem.

O principal perigo do ponto de vista objectivista é que , sem se encontrar um princípio de génese destas regularidades, tende a deslizar do modelo para a realidade, a reificar as estruturas que constrói, tratando-as como entidades autónomas dotadas da faculdade de agir como agentes históricos. Incapaz de conceber as práticas a não ser pela negativa, como simples execução do modelo construido pelo analista, o objectivismo acaba por projectar no cérebro dos agentes uma visão (escolástica) das suas práticas  a que, paradoxalmente, nunca poderia chegar a menos que tivesse à partida escamoteado a experiência  por que  passaram os agentes. Assim, este ponto de vista destrói uma parte da realidade a que pretende chegar, no próprio movimento em que a tenta agarrar.  Levado ao seu limite, o objectivismo pode apenas produzir um ersatz do sujeito e representar os indivíduos ou os grupos como suportes passivos de forças que se articulam mecanicamente segundo uma lógica autónoma.

Para evitar cair nesta armadilha reducionista, uma ciência da sociedade deve reconhecer  que a visão e as interpretações dos agentes são uma componente incontornável da realidade completa do mundo social. É certo que a sociedade tem uma estrutura objectiva, mas não é menos verdade que ela seja também feita, segundo as palavras de Schopenhauer, de "vontade e representação". Os indivíduos têm um conhecimento prático do mundo e investem esse conhecimento prático nas suas actividades quotidianas.

O ponto de vista subjectivista ou "construtivista" (expresso sob uma forma paroxista por Sartre em "L'µtre et le Néant" é defendido hoje pela etnometodologia na sua variante culturalista e pela teoria da escolha racional de tipo racionalista) liga-se a essa objectividade de segunda ordem. Ao contrário do objectivismo estruturalista, o subjectivismo afirma que a realidade social é uma "consecução contingente e continua" de actores sociais competentes que constroem continuamente o seu mundo social através de "práticas organizadas da vida quotidiana". (Garfinkel). Pelas lentes dessa fenomenologia social, a sociedade aparece como produto das decisões, das acções e actos de conhecimento de indivíduos conscientes aos quais o mundo é dado como imediatamente familiar e significante. A sua vantagem reside no facto de reconhecer  aquilo que a contribuição do saber quotidiano e a competência prática trazem à produção contínua da sociedade;  dá um lugar de honra ao agente e ao "sistema socialmente aprovado de tipificações e de pertinência" através do qual os indivíduos investem de sentido o seu "mundo vivido", como diz Schutz.

Mas uma tal fenomenologia da vida social sofre, segundo Bourdieu,  de pelo menos dois grandes males. Primeiro, concebendo as estruturas sociais como simples agregação de estratégias e actos de classificação individuais, este tipo de marginalismo social proíbe-se de dar razão à sua persistência tal como à das configurações objectivas que estas estratégias perpetuam ou desafiam. Para mais, não consegue explicar porquê e a partir de que princípio o trabalho de produção da própria realidade é produzido.Se é bom lembrar, contra certas perspectivas mecanicistas da acção, que os agentes sociais constroem a realidade social, individualmente mas também colectivamente, é preciso não esquecer, como alguns etnometodólogos e interaccionistas, que não foram os agentes sociais que construiram as categorias que são aqui envolvidas neste trabalho de construção (Bourdieu, 1989, p.47).

Uma ciência total da sociedade deve libertar-se tanto do estruturalismo mecânico, que deixa os agentes "de férias", como do individualismo teleológico, que não oferece outro lugar aos indivíduos a não ser sob a forma truncada de um "oversocialized cultural dope" ou sob a aparência de reencarnações mais ou menos sofisticadas do homo ¤conomicus. Objectivismo e subjectivismo, mecanismo e finalismo, necessidade estrutural e acção individual são todas falsas antinomias; cada termo destes casais inimigos reforça os outros, e contribuem todos para o obscurecimento da verdade antropológica e das práticas humanas. Para ultrapassar estas dualidades, Bourdieu transforma as worlds hypothesis destes dois paradigmas aparentemente antagónicos, em momentos de uma forma de análise visando reconceber a realidade intrinsecamente dupla do mundo social. A praxeologia social que daí resulta envolve conjuntamente uma abordagem estruturalista e outra construtivista. Num primeiro movimento, ela separa as representações do senso comum de modo a construir as estruturas objectivas (espaço de posições), a distribuição dos recursos socialmente eficientes que definem as pressões exteriores que têm peso nas interacções e nas representações. Num segundo movimento, , esta praxeologia reintroduz a experiência imediata dos agentes de modo a explicitar as categorias de percepção e de apreciação (disposições) que estruturam as suas acções a partir do interior e estruturam as suas representações (tomadas de posição). É preciso sublinhar que, se estes dois momentos da análise são ambos necessários, nem por isso são equivalentes a prioridade epistemológica volta à ruptura objectivista por relação à compreensão subjectivista. A aplicação do primeiro princípio durkheimiano do "método sociológico", neste caso a rejeição sistemática dos preconceitos, deve aparecer antes da análise da apreensão prática do mundo do ponto de vista subjectivo. Isto porque o ponto de vista dos agentes varia sistematicamente em função do ponto que eles ocupam no espaço social objectivo (Bourdieu, 1984a, 1989e).

 

 

2.        Luta de classificações e dialéctica das estruturas mentais e das      estruturas sociais

 

Uma verdadeira ciência da prática humana não se pode contentar com a sobreposição de uma fenomenologia a uma topologia social. Deve também revelar os esquemas perceptivos e avaliativos em que se envolvem os agentes na sua vida quotidiana. De onde vêm estes esquemas (definição da situação, tipificações, procedimentos interpretativos) e qual a relação que eles mantêm com as estruturas externas à sociedade? É aqui que encontramos a segunda hipótese fundadora na qual se escora a sociologia de Bourdieu existe uma correspondência entre a estrutura social e as estruturas mentais, entre as divisões objectivas do mundo social, particularmente entre dominantes e dominados nos diferentes campos, e os princípios de visão e de divisão que os agentes lhes aplicam. Aqui, reconhecer-se-à, uma reformulação e uma generalização da ideia central, proposta em 1903 por Durkheim e Mauss (1963) no seu estudo clássico sobre "Quelques formes primitives de classification", segundo a qual os sistemas cognitivos em vigor nas sociedades primitivas derivam dos seus sistemas sociais; as categorias do entendimento que subjazem às representações colectivas organizam-se segundo a estrutura social do grupo. Bourdieu leva esta tese durkheimiana do "sociocentrismo" dos sistemas de pensamento por quatro direcções. Primeiramente, argumenta que a correspondência entre estruturas cognitivas e estruturas sociais que se observam nas comunidades pré-capitalistas existe também nas sociedades avançadas onde a sua homologia é produzida particularmente pelo funcionamento do sistema escolar. Em segundo lugar, onde a análise de Mauss e Durkheim pecava por ausência de um mecanismo causal sólido na determinação social das classificações, Bourdieu propõe que as divisões sociais e esquemas mentais são estruturalmente homólogos porque estão geneticamente ligados, resultando as segundas da incorporação das primeiras. A exposição repetida às condições sociais definidas, imprime nos indivíduos um conjunto de disposições duradoiras e transponíveis que são a interiorização da necessidade do seu ambiente social, inscrevendo no interior do organismo a inércia estruturada e as pressões da realidade externa. Se as estruturas da objectividade de segunda ordem (o habitus) são a versão incorporada das estruturas de primeira ordem, então a análise das estruturas objectivas encontra o seu prolongamento lógico na análise das estruturas subjectivas, fazendo assim desaparecer a falsa antinomia normalmente estabelecida entre a sociologia e a psicologia social (Bourdieu e Saint Martin, 1982, p.47). Uma adequada ciência da sociedade deve, por isso, agarrar tanto as regularidades objectivas e o processo de interiorização da objectividade segundo o qual se constituem os princípios transindividuais e inconscientes de divisão em que se envolvem os agentes nas suas práticas.

Em terceiro lugar, Bourdieu avança a ideia de que a correspondência entre estruturas sociais e estruturas mentais preenche funções políticas. Os sistemas simbólicos não são apenas instrumentos de conhecimento; são também instrumentos de domínio (das ideologias na terminologia de Marx e das teodiceias na de Weber). Enquanto operadores de integração cognitiva, os sistemas simbólicos promovem pela sua lógica a integração social de uma ordem arbitrária "Observa-se a contribuição decisiva que trás à conservação da ordem social (...) a orquestração das categorias de percepção do mundo social que, estando ajustadas às divisões da ordem estabelecida (e, por isso, aos interesses dos que dominam), e comuns a todos os espíritos estruturados conformes a estas estruturas,  se impõem com todas as aparências da necessidade objectiva" (Bourdieu, 1979, p.549). Os esquemas de classificação socialmente constituídos através dos quais construimos activamente a sociedade, tendem a representar as estruturas de onde saem como dados naturais e necessários, mais que como produtos historicamente contingentes de uma dada relação de forças entre grupos (classes, etnias ou sexos). Mas, se aceitarmos que os sistemas simbólicos são produtos sociais que produzem o mundo, que não lhes chega reflectirem as relações sociais mas que contribuem para a sua constituição, é então preciso admitir que se possa, dentro de certos limites, transformar o mundo transformando a sua representação (Bourdieu, 1980, 1981a).

Acontece ‑ é a quarta ruptura que Bourdieu opera com a problemática durkheimiana ‑ que os sistemas de classificação constituem  um contexto das lutas que opõem os indivíduos e os grupos nas interacções rotineiras da vida quotidiana assim como nos combates individuais e colectivos a que se expõem nos campos da política e da produção cultural (Bourdieu e Boltanski, 1981, p.149). É assim que Bourdieu enriquece a análise estrutural de Durkheim com uma sociologia genética e política da formação, da selecção e imposição dos sistemas de classificação. As estruturas sociais e as estruturas cognitivas estão recursiva e estruturalmente ligadas, e a correspondência que entre elas existe oferece a mais sólida das garantias de poder social. As classes e outros colectivos sociais antagonistas encontram-se sempre envolvidos numa luta que visa impôr a definição do mundo que é mais conforme aos seus interesses particulares. A sociologia do conhecimento ou das formas culturais é eo ipso  uma sociologia política, isto é uma sociologia do poder simbólico. De facto, o conjunto da obra de Bourdieu pode ser interpretado como uma antropologia materialista  a partir da contribuição específica que as diversas formas de violência simbólica trazem à reprodução e à transformação das estruturas de poder.

 

 

 

3. Relacionismo metodológico

 

Contra todas as formas de monismo metodológico que pretendem afirmar a prioridade ontológica da estrutura ou do agente, do sistema ou do actor, do colectivo ou do individual, Bourdieu proclama o primado das relações. Para ele, tais alternativas dualistas reflectem uma percepção da realidade social que é a do senso comum e da qual a sociologia se deve desligar. Essa percepção está inscrita na própria linguagem que utilizamos e que é mais apta para exprimir as coisas que as relações, os estados que os processos (Bourdieu, 1982a, p.35). Esta propensão da linguagem para favorecer a substância em detrimento das relações encontra-se reforçada pela permanente concorrência que os sociólogos encontram junto de outros especialistas da representação do mundo social, e particularmente por parte dos políticos e das pessoas dos media que estão intimamente ligados ao pensamento do senso comum. A oposição entre individuo e sociedade, e a sua principal tradução na antinomia do individualismo e do estruturalismo, é uma destas "proposições endoxicas"(veneno interno) que afect a sociologia porque reactivam constantemente as oposições políticas e sociais (Bourdieu, 1989f). As ciências sociais não têm que escolher entre estes dois polos porque o que faz a realidade social, tanto o habitus como a estrutura e a sua intersecção como história, reside nas relações. Assim, Bourdieu coloca de costas voltadas o individualismo metodológico e o holismo, tal como a sua falsa ultrapassagem no "situacionismo metodológico". A perspectiva relacional que forma o núcleo da sua visão sociológica não é uma novidade. É parte integrante de uma longa tradição estruturalista polimorfa amadurecida nos anos do pós-guerra com os trabalhos de Piaget, Jackobson, Lévi-Strauss e Braudel, e que com Merton se poderia demostrar que vem desde Marx e Durkheim. Encontra-se a sua expressão talvez mais sucinta e clara nos Grundrisse de Karl Marx "A sociedade não é composta por indivíduos,  exprime sim a soma das relações e ligações nas quais os indivíduos se inserem. " O que é característico de Bourdieu é o rigor metodológico com o qual desenvolve uma tal concepção, e que atesta particularmente o facto de que os seus dois conceitos centrais, habitus e campo, designem os nós das relações. Um campo é um conjunto de relações objectivas históricas entre posições fundadas em certas formas de poder (ou de capital), enquanto que o habitus toma a forma de um conjunto de relações históricas "arquivadas" dentro dos corpos individuais sob a forma de esquemas mentais e corporais de percepção, de apreciação e de acção.

Tal como Philip Abrams, Michael Mann e Charles Tilly, Bourdieu faz explodir a noção vaga de "sociedade" que substitui pelas noções de campo e de espaço social. Para ele, uma sociedade diferenciada não forma uma totalidade de uma só peça integrada por funções sistémicas, uma cultura comum, com conflitos intercruzados ou uma autoridade global, mas sim um conjunto de esferas de jogo relativamente autónomas que não conseguiriam ser levadas a uma lógica societal única, seja ela a do capitalismo, da modernidade ou da pós-modernidade. Como nos Lebensordnungen de Weber, estas "ordens de vida" económica, política, religiosa, estética e intelectual nas quais se divisa a vida social, cada campo, no moderno capitalismo, prescreve os seus valores particulares e possui os seus próprios princípios de regulação. Estes princípios definem os limites de um espaço socialmente estruturado no qual os agentes lutam em função da posição que ocupam nesse espaço, seja para o mudar, seja para lhe conservar as fronteiras e a configuração. Duas propriedades são essenciais a esta definição sucinta. Primeiro, um campo é, tal como um campo magnético, um sistema estruturado de forças objectivas, uma configuração relacional dotada de uma gravidade específica que é capaz de impôr a todos os objectos e agentes que nela penetrem. Neste prisma, todo o campo refracta as forças externas em função da sua estrutura interna. E os efeitos engendrados dentro dos campos não são nem a pura soma das acções anárquicas, nem o resultado integrado de um plano concertado é a estrutura do jogo e não o simples efeito de agregação mecânica que está no princípio da transcendência que revelam os casos de inversão das intenções. Um campo é também um espaço de conflitos e de concorrência, analogia com o campo de batalha sobre o qual os participantes rivalizam com o objectivo de estabelecer um monopólio sobre a espécie específica de capital que aí é eficiente a autoridade cultural no campo artístico , a autoridade científica no campo científico, a autoridade sacerdotal no campo religioso, etc, e o poder de decretar a hierarquia e as "taxas de conversão" entre as diversas formas de autoridade no campo do poder.

Ao longo destas lutas, a forma e as próprias divisões do campo tornam-se um elemento central na medida em que a modificação da distribuição e do peso relativo das formas de capital implicam a modificação da estrutura do campo.. O que confere a todo o campo um dinamismo e uma maleabilidade históricas que escapam ao determinismo rígido do estruturalismo clássico. Por exemplo, no seu estudo sobre a realização local da política de habitação do Estado françês nos anos setenta, Bourdieu (1990b,p.89) mostra que esse jogo não existe apenas no "jogo burocrático", isto é, na lógica organizacional particularmente rígida das burocracias de Estado que não permitem uma margem considerável de incerteza e de interacções estratégicas. E insistir sobre o facto de todo o campo se apresentar como uma estrutura de probabilidades, de recompensas, de ganhos, de lucros ou de sanções ‑ que implicam sempre um certo grau de indeterminação.

Como é possível que a vida social seja tão regular e previsível? Se as estruturas externas não pressionam mecanicamente a acção, o que é que lhe dá a forma (pattern)?  Parte da resposta é-nos fornecida pelo conceito de habitus. O habitus é um mecanismo estruturante que opera no interior dos agentes, apesar de não ser propriamente nem estritamente individual nem por si só completamente determinante das condutas.  O habitus é, segundo Bourdieu, o princípio gerador das estratégias que permitem aos agentes enfrentar situações muito diversas. Produto da interiorização das estruturas externas, o habitus reage às solicitações do campo de um modo mais ou menos coerente e sistemático. Enquanto colectivo individualizado pela distorção da incorporação ou individuo biológico "colectivisado" pela socialização, o habitus é um conceito próximo da "intenção de acção" de Searle ou da "estrutura profunda" de Chomsky, apesar de neste caso, longe de ser um invariante antropológico, esta estrutura profunda ser uma matriz generativa historicamente constituída, institucionalmente enraizada e, por isso, socialmente variavel (por exemplo Bourdieu 1987d).  O habitus é um operador de racionalidade, mas de uma racionalidade prática, imanente a um sistema histórico de relações sociais e por isso transcendente ao individuo. As estratégias que "gera" são sistemáticas e, no entanto ad hoc na medida em que elas são "despoletadas" pelo encontro com um campo particular. O habitus é criador, inventivo, mas dentro dos limites das suas estruturas.

Os dois conceitos de habitus e de campo são igualmente relacionais no sentido em que não funcionam completamente a não ser na sua relação de um com o outro.  Um campo não é simplesmente uma estrutura morta, um sistema de "lugares vazios" como no marxismo althusseriano, mas um espaço de jogo que só existe enquanto tal  na medida em que existem também jogadores que participam, que acreditam nas recompensas que o jogo oferece e as procuram activamente. Acontece que uma teoria adequada do campo implica por necessidade uma teoria dos agentes sociais. Só existe acção e história, isto é, acções tendentes à conservação ou à transformação das estruturas porque existem agentes, mas estes só agem eficazmente desde que não sejam reduzidos àquilo que normalmente se coloca na noção de individuo e, enquanto organismos socializados, dotados de um conjunto de disposições que implicam tanto a propensão e a capacidade para entrarem no jogo e jogarem (Bourdieu, 1989a, p.59). Inversamente, a teoria do habitus continua incompleta se a estrutura não der lugar à improvisação organizada dos agentes. Para compreender exactamente em que consiste essa arte social da improvisação, convém observar a ontologia social de Bourdieu.

 

 

 

4. A lógica fluida do sentido prático

 

A filosofia da acção de Pierre Bourdieu é monista quando recusa estabelecer uma demarcação traçada entre o interno e o externo, o consciente e o inconsciente, o corporal e o discursivo. Ela procura agarrar a intencionalidade sem intenção, o domínio pré-reflexivo e infraconsciente do seu mundo social que os agentes adquirem pela sua imersão duradoura no seu interior (é por essa razão que o desporto tem tanto interesse teórico para Bourdieu, 1988f)  e que define a prática social propriamente humana. Buscando selectivamente nas fenomenologias de Husserl, Heidegger e Merleau-Ponty, tal como na última filosofia de Wittgenstein, Bourdieu rejeita as dualidades ‑ entre corpo e espírito, compreensão e sensibilidade, sujeito e objecto, o em si e por si ‑ da ontologia cartesiana.

Bourdieu apoia-se particularmente na ideia, cara a Merleau-Ponty, da corporeidade intrínseca do contacto pré-objectivo entre sujeito e objecto de modo a restituir o corpo como fonte de uma intensionalidade prática, como princípio de uma significação intersubjectiva enraizada ao nível pré-objectivo da experiência. Esta sociologia estrutural incorporando uma fenomenologia da "unidade ante-predicativa do mundo e da nossa vida", como diz Merleau-Ponty, trata o corpo socializado não como um objecto mas como o depositário de uma capacidade geradora e criadora a compreender, como o suporte activo de uma forma de "saber cinético" dotado de um poder estruturante. A relação entre o agente social e o mundo não é a relação entre um sujeito (ou uma consciência) e um objecto, mas uma relação de "cumplicidade ontológica" ‑ ou de "possessão" mutua (Bourdieu, 1989a p.10) ‑ entre o habitus, como princípio socialmente constituido de percepção e de apreciação, e o mundo que o determina.  O sentido prático exprime o sentido social que nos orienta mesmo antes de colocarmos os  próprios objectos. Este sentido constitui o mundo como significante antecipando espontâneamente as suas tendências imanentes, exactamente como o jogador dotado de uma grande visão do jogo que, tomado no fogo da acção, tem a intuição instantânea dos movimentos dos adversários e dos seus parceiros, age e reage de modo "inspirado" sem o benefício do recuo reflexivo e da razão calculadora. O sentido prático pré-conhece; lê no estado presente os futuros estados possíveis de que o campo é portador. Dado que o passado o presente e o futuro se sobrepõem e interpenetram mutuamente no habitus. Pode-se compreender o habitus como uma "situação sedimentada" virtual, alojada na profundidade do corpo, que espera ser reactivada.

Os conceitos de habitus e de campo permitem a Bourdieu desenvencilhar-se do falso problema da espontâneidade pessoal e da pressão social, da liberdade e da necessidade, da escolha e da obrigação, e de separar num mesmo movimento as alternativas comuns do individual e da estrutura, da micro (Blumer, Coleman) e da macro-análise (Blau), que acartam com elas uma ontologia social polarizada e dualista. "Não existe qualquer necessidade de escolher entre estrutura e agente, entre campo, que constroi a significação e o valor das propriedades objectivadas nas coisas ou incorporadas nas pessoas, e os agentes, que jogam as suas propriedades no espaço de jogo assim definido"(Bourdieu, 1989a, p.448).

Mesmo que se afaste do debate entre a significação e o macrofuncionalismo, Bourdieu rejeita a alternativa da submissão e da resistência que tradicionalmente tem definido a questão das culturas dominadas e que, a seus olhos, nos impede de pensar adequadamente as práticas e as situações que frequentemente se definem pela sua natureza intrínseca dupla e tripla. Mas Bourdieu não se contenta em revelar a colaboração que os dominados trazem à sua própria exclusão; ele propõe uma análise do seu conluio que evita o psicologismo ingénuo ou o essencialismo da "servidão voluntária" de La Boétie. Se é bom lembrar que os dominados contribuem sempre para a sua dominação, é necessário também lembrar que as disposições que os inclinam para essa cumplicidade são um efeito incorporado dessa dominação/poder (Bourdieu, 1989a, p.12). A submissão dos trabalhadores, das mulheres e das minorias raciais não é, na maioria dos casos, uma concessão deliberada e consciente à força bruta dos dirigentes, dos homens ou dos Brancos. Ela encontra a sua génese na correspondência inconsciente entre os seus habitus e o campo no qual eles operam. Ela aloja-se no mais profundo do corpo socializado; para finalizar, ela é a expressão da "somatisação das relações sociais de dominação" (Bourdieu, 1990j).

Deveria assim parecer que aqueles que lêem a economia das praticas de Bourdieu como uma teoria geral do determinismo económico (por exemplo Jenkins, 1982; Honneth, 1986; Caillé, 1987; Miller, 1989) ou pior ainda, como uma variante da teoria da escolha racional, são vítimas de um duplo erro de interpretação. Primeiro erro eles injectam no conceito de estratégia as ideias de intenção e de visualização consciente, transformando assim uma acção congruente com certos interesses numa conduta racionalmente organizada e deliberadamente dirigida para objectivos claramente precisos. Segundo erro eles limitam a variabilidade histórica da noção de interesse, elevando-a a uma propensão invariante que persegue o rendimento económico ou material. Esta dupla redução, intencionalista e utilitarista, obscurece o movimento analítico paradoxal que Bourdieu efectua por meio da tríade conceptual habitus/capital/campo; que consiste justamente em ampliar a esfera do interesse, reduzindo a da utilidade e a da consciência.

Bourdieu não para de fazer lembrar que a sua economia das práticas não é nem intencionalista nem utilitarista.  Pelo que vimos, Bourdieu opõe-se ferozmente ao finalismo das filosofias da consciência que situam a mola da acção nas escolhas voluntaristas dos indivíduos. Com a noção de estratégia, ele faz referência não à procura intencional e planificada do avanço com objectivos calculados, mas à disposição activa de linhas objectivamente orientadas que obedecem a regularidades e formam configurações coerentes e socialmente inteligíveis apesar de não seguirem qualquer regra consciente ou visem objectivos premeditados como tal colocados por um estratega. A utilização que faz do conceito de interesse ‑ noção que substitui cada vez mais pela de illusio e, mais recentemente pela de libido ‑ responde a dois objectivos. Primeiro, acabar com a visão encantada da acção social que se agarra à fronteira artificial entre acção instrumental e acção expressiva ou normativa, e que por isso recusa conhecer as  diversas formas de rendimentos não materiais que orientam os agentes que "parecem ser" desinteressados. Segundo, sugerir a ideia de que as pessoas são arrancadas de um estado de indiferença pelos estimulos enviados por certos campos ‑ e não por outros. Uma vez que cada campo preenche o espaço vazio do interesse com uma motivação diferente. As pessoas não estão "pré-ocupadas" por certos resultados futuros inscritos no presente que encontram a menos que os seus habitus os disponham a percebê-los e procurá-los. E os futuros em função dos quais eles se orientam podem ser totalmente desinteressados no sentido comum do termo, tal como se observa no campo da produção cultural, este "mundo económico às avessas" (Bourdieu, 1983,1985d) no qual as acções que visam o lucro material são sistematicamente desvalorizadas e negativamente sancionadas.

 

 

5. Contra o teoricismo e o metodologismo uma ciência social total

 

Desta concepção racional e anticartesiana do seu objecto, Bourdieu retira uma sociologia que deve ser uma ciência total. Esta deve construir "factos sociais totais" (Mauss), capazes de restituir a unidade fundamental da prática humana através das fronteiras mutilantes das disciplinas, dos domínios empíricos e das técnicas de observação e de análise. É a razão pela qual Bourdieu se opõe à especialização científica prematura e ao "trabalho em migalhas" que isso implica o habitus dota a prática de uma sistematicidade e de interrelações internas que não aguentam estas divisões;as estruturas sociais que lhe correspondem perpetuam-se ou transformam-se em indivisão, em todas as suas dimensões simultaneamente. Isto é particularmente visível quando se estudam as estratégias de reprodução ou de conversão que os grupos desenvolvem de modo a manter ou melhorar a sua posição numa estrutura social em mudança (Bourdieu e Boltanski, 1977; Bourdieu, 1974a,1978b... pp99-168). Estas estratégias formam um sistema sui generis que não pode ser concebido enquanto tal se nos esquecermos de colocar metodicamente em relação os domínios da vida social que são normalmente tratados por ciências separadas e segundo metodologias diferentes. No caso da classe dominante cujo estudo é detalhado na La Noblesse d'État (Bourdieu, 1989a,pp373-420), estas estratégias dizem respeito à fecundidade, educação, investimento económico e transmissão patrimonial, a gestão do capital social (cujas estratégias matrimoniais são elemento central) e, enfim, as estratégias da sociodiceia que visam legitimar o poder e a forma de capital sobre a qual se apoia.

Compreende-se assim porque é que Bourdieu desconfia das duas formas de envolvimento opostas, e ainda assim complementares, que ameaçam hoje as ciências sociais o metodologismo e o teoricismo. O metodologismo pode ser definido como a tendência a separar a reflexão sobre o método da sua utilização efectiva no trabalho científico, e a cultivar o método por si só. Bourdieu vê na "metodologia" concebida como uma especialidade separada uma forma de academismo que, dissociando o método do objecto, reduz o problema da construção teórica deste à manipulação técnica de índices e de observações empíricas.  Esquecendo que a "metodologia não é a preceptora ou a tutora do sábio mas sempre sua aluna",  um tal fetichismo metodológico condena-se a vestir os objectos pré-construidos nos adereços da ciência e arrisca-se a induzir uma miopia científica (Bourdieu et al., 1973, p.88). Com efeito, isto pode transformar-se numa arte pela arte ou, pior, num imperialismo metodológico conduzindo à definição forçada dos objectos pelas técnicas de análise existentes e os corpus de dados disponíveis. Não é a sofisticação técnica dos instrumentos metodológicos que Bourdieu critica, mas o seu apuramento irreflectido destinado a tapar o vazio criado pela ausência de uma visão teórica. Ele afirma abertamente a sua rejeição absoluta da rejeição sectária deste ou daquele método de pesquisa (Bourdieu, 1989a, p.10) que conduz alguns investigadores a um monismo e absolutismo metodológico. Convencido de que a organização ou a realização prática da colecta ‑ ou para ser mais preciso, da produção ‑ dos dados está tão intimamente imbrincada na construção teórica do objecto que estas não podem ser reduzidas a tarefas técnicas deixadas aos empregados de serviço para a ocasião. Bourdieu recusa a hierarquia convencional das tarefas pelo modo como constitui toda uma série de oposições homologas que se reforçam mutuamente de alto a baixo, trabalho intelectual e trabalho manual, erudito criador e técnico encarregado da aplicação dos procedimentos rotineiros.

O politeísmo metodológico que Bourdieu prega e pratica  não se limita ao "anything goes" do anarquismo (ou do dadaismo) epistemológico de um Feyerabend. Implica mais que a palette dos métodos utilizados seja adequada ao problema tratado e seja objecto de reflexão no próprio movimento onde é colocada para resolver uma questão particular.  Não se poderia dissociar a construção do objecto dos instrumentos de construção do objecto e da sua crítica. Assim como reabilita a dimensão prática das práticas enquanto objecto de saber, Bourdieu ambiciona revalorizar o lado prático da teoria enquanto actividade produtora de saber. Os seus trabalhos testemunham amplamente o facto de ele se não opôr ao trabalho teórico. Aquilo a que ele se opõe é ao trabalho teórico feito por si próprio, ou à instituição da teoria enquanto domínio discursivo separado, fechado e auto-referente, aquilo a que Keneth Burke chama a "logologia", isto é, "palavras acerca de palavras".

Bourdieu nada pode fazer com essa "teoria ostentatória" isolada de qualquer ligação às realidades ou problemas práticos do trabalho empírico. A sua própria relação com os conceitos é uma relação pragmática  trata-os como "caixas de ferramenta" (Wittgenstein) concebidas para ajudar a resolver problemas. Mas este pragmatismo não abre caminho a um ecletismo conceptual sem protecção, uma vez que está enquadrado e disciplinado pelos postulados teóricos e problemas empíricos aqui expostos.

Se Pierre Bourdieu se mostra excessivamente severo na sua crítica àquilo que chama a "teoria teoricista", isso é sem dúvida a reacção a um ambiente intelectual que recompensa tradicionalmente as capacidades filosóficas e teóricas ao mesmo tempo que alimenta uma forte resistência ao empirismo (mesmo que a oposição entre uma Europa teoricista e uma América empirista deva mais, nos nossos dias, à combinação de eruditos estereótipos e ao cultural lag empirista que a uma comparação racional).  Nos Estados Unidos onde o "positivismo instrumental" reina virtualmente sem concorrência depois dos anos quarenta, e onde as permutas entre a sociologia e a filosofia foram muito fracas, para não dizer inexistentes, os teóricos podem preencher uma função mais positiva. Contudo, nestes últimos anos, o renascimento e desenvolvimento autónomo da teoria (Ritzer, 1990) fez aumentar o fosso entre os pensadores puros e aqueles a que frequentemente se chama, por gozo, "os contabilistas" (number crunchers).

Do ponto de vista de Bourdieu, os dissabores das teorias sociais contemporâneas não encontram a sua origem no que Jeffrey Alexander diagnostica como uma "incapacidade" de chegar à "generalidade préssuposicional" e a "multidimensionalidade",  mas sim numa divisão social do trabalho científico  que separa, reifica e compartimentaliza os momentos de um mesmo processo de construção do objecto sociológico em especialidades distintas, favorecendo por isso a "audácia sem rigor" da filosofia social e o "rigor sem imaginação" do positivismo hiper-empiricista. De facto, para lá dos seus antagonismos, a inibição metodológica e o fetichismo conceptual juntam-se no abdicar organizado do esforço de explicação da sociedade e da história tais como elas existem. Bourdieu defende que todo o acto de pesquisa é simultaneamente empírico (pelo modo como enfrenta o mundo dos fenómenos observáveis) e teórico (pelo modo como envolve necessariamente hipóteses relativas à estrutura sub-jacente das relações que a observação tenta agarrar). Até a mais pequena operação empírica ‑ a escolha de uma escala de medida, uma decisão sobre codificação, a construção de um índice ou inclusão de um item num questionário ‑ implica escolhas teóricas conscientes ou inconscientes; enquanto a mais abstracta das dificuldades conceptuais não possa ser completamente elucidada por uma confrontação sistemática com a realidade empírica.

 

 

6. Para uma reflexividade epistémica

 

Se há uma característica que distingue Bourdieu na paisagem das teorias sociais contemporâneas, é o seu cuidado  de reflexão constante. Após as suas primeiras pesquisas sobre as práticas matrimoniais numa aldeia isolada nos Pirinéus  de onde evoluiu (Bourdieu, 1962b, 1962c) até à observação do Homo academicus gallicus  (Bourdieu, 1988) Bourdieu nunca parou de interrogar os instrumentos da ciência, mesmo quando o fazia de um modo que não era imediatamente perceptível  para alguns dos seus leitores. A sua análise dos intelectuais e do olhar objectivante da sociologia, em particular, tal como a sua dissecação da linguagem enquanto instrumento e dispositivo de poder social, implicam e supõem uma auto-análise do sociólogo como produtor cultural e uma reflexão sobre as condições socio-históricas da possibilidade de uma ciência da sociedade (Wacquant, 1990a).

Bourdieu sugere três tipos de distorção capazes de obscurecer  o olhar sociológico. O primeiro que também foi lembrado por outros, tem a ver com a origem e coordenadas pessoais (de classe, sexo ou etnia) do investigador. É a distorção mais evidente e, à partida, directamente a mais controlável através da auto-crítica e da crítica mútua. A segunda, muito menos notada e discutida, está ligada à posição que o analista ocupa, não na estrutura social no seu mais amplo sentido, mas no microcosmos do campo académico, isto é, no espaço objectivo das posições intelectuais que se lhe oferecem num momento dado e, para lá disso, no campo do poder.

A distorção intelectualista, que nos leva a conceber o mundo como um espectáculo,  mais como um conjunto de significações que pedem para ser interpretadas do que como problemas concretos exigindo soluções práticas, é uma distorção muito mais profunda e mais perigosa nos seus efeitos que as que se inscrevem na origem social e na posição do analista dentro do campo universitário essa distorção leva de facto a ignorar completamente o que provoca a differencia specifica da lógica das práticas (Bourdieu, 1990a). Cada vez que fazemos escapar à submissão da crítica os "pressupostos inscritos no facto de pensar o mundo, de se retirar do mundo e da acção no mundo de modo a poder pensá-los" (Bourdieu, 1990f p.382), nós arriscamo-nos a reduzir a lógica prática à lógica teórica. Dado que estes pressupostos estão inscritos nos conceitos, nos instrumentos de análise (genealogia, questionário, análise estatística, etc.)  e nas operações práticas da pesquisa (tais como rotinas de codificação, procedimentos de clarificação de dados ou "truques" do trabalho de campo), a reflexividade requer menos uma introspecção intelectual que uma análise e um controlo sociológicos permanentes das práticas (ver Champagne et al., 1989).

Por isto, para Bourdieu a reflexividade não pressupõe uma reflexão do sujeito sobre o sujeito, no sentido da Selbstbewustzsein hegeliana (Lash, 1990, p.259) ou da "perspectiva egológica" (Sharrock & Anderson) defendida pela etnometodologia e pela sociologia fenomenológica, ou por Alvin Gouldner. A reflexividade requer mais uma exploração sistemática das "categorias dos pensamentos impensados que delimitam o pensável e prédeterminam o pensamento" (Bourdieu, 1982, p.10), orientando ao mesmo tempo a realização prática da pesquisa social. O "retorno" que ela exige passa para lá da experiência vivida do sujeito para englobar a estrutura organizacional e cognitiva da disciplina. O que deve constantemente ser submetido a exame e neutralizado no próprio acto de construção do objecto, é o inconsciente científico colectivo inscrito nas teorias, os problemas, as categorias (em particular as nacionais) do entendimento sapiente (Bourdieu, 1990k). Acontece portanto que o sujeito da reflexividade deve, em última análise, ser o próprio campo das ciências sociais.

Graças à dialógica do debate público e da crítica mútua, o trabalho de objectivação do sujeito objectivante é efectuado, não apenas pelo seu autor, mas pelos ocupantes de todas as posições antagonistas e complementares que constituem o campo científico. Para ser capaz de produzir e favorecer os habitus reflexivos científicos, este campo deve com efeito institucionalizar a reflexividade nos mecanismos de formação, de diálogo e de avaliação crítica. É por isso a organização social das ciências sociais, enquanto instituição inscrita nos mecanismos tanto objectivos como mentais, que deve tornar-se o alvo de uma prática transformadora.

É claro que Bourdieu não participa do "humor de cepticismo imperativo" (Wolgar, 1988, p.14) que alimenta a "reflexividade textual" defendida pelos antropólogos que, nestes últimos anos se entitularam encarregues do "processo hermenêutico da interpretação cultural" no trabalho de campo e da formação da realidade através do registo etnográfico. Bourdieu é um crítico sem piedade daquilo que Geertz alegremente chamou a "patologia do diário intimo" (diary disease), porque a verdadeira reflexividade não é o abandonar-se post-festum  a "reflexões sobre o trabalho de campo" ao estilo de Rabinow, uma vez que ela não requer o uso da primeira pessoa para valorizar a empatia, a diferença ou o trabalho de elaboração de textos que caracterizam a intervenção do observador individual no acto de observação. Trata-se mais de "submeter a posição do observador à mesma análise crítica à qual se submeteu o objecto construido" (Barnard, 1990, p.75). O etnógrafo não é separado do indígena por uma "trama de sentidos" weberianos como pretende Rabinow (1977, p.162), mas pela sua condição social, isto é, pela sua distância relativamente à necessidade específica do universo considerado (Bourdieu, 1990a, p.14).

A insistência quase obcessional de Bourdieu acerca da necessidade do retorno reflexivo não portanto uma expressão de uma espécie de senso de honra epistemológica, mas um princípio que leva a construir de um modo diferente os objectos científicos. Essa necessidade ajuda a produzir os objectos nos quais a relação do analista com o objecto não é inconscientemente projectada, não sofrendo a alteração introduzida pelo que, com John Austin, Bourdieu chamou  a Scholastic fallacy (o paralogismo ou falácia escolástica), numa discussão da passagem da regra à estratégia onde se afasta do estruturalismo lévi-straussiano. Vale a pena quedarmo-nos neste ponto, porque é esta inversão de perspectiva ligada à inclusão, ao centro de uma teoria das práticas, de uma teoria das práticas teóricas, que permitiu a Bourdieu descobrir a lógica das práticas, do mesmo modo que foi levado a reflectir sobre a especificidade da lógica teórica pelas anomalias empíricas  que esta última fazia obstinadamente emergir nos seus matérias de trabalho de campo.  Foi trabalhando na análise empírica, até ao menor detalhe, da rede de todas as correspondências e oposições que constituem a estrutura da cosmologia Kabyle,  que Bourdieu foi conduzido a teorizar a diferença entre a lógica abstracta e a lógica prática. Reciprocamente, foi apenas por não parar de se debruçar teoricamente sobre a sua própria prática enquanto antropólogo que lhe foi possível reconhecer e agarrar tudo o que a separa da prática dos agentes comuns, isto é, da sua própria prática, logo que deixe de se comportar como analista.

Se a reflexividade é fonte de uma diferença cognitiva tão significante na condução da pesquisa, porque é que não é mais frequentemente praticada? Bourdieu sugere que as verdadeiras razões da resistência à reflexividade são menos epistemológicas que sociais. Com efeito a reflexividade põe em questão  o sentido sagrado da individualidade e a representação carismática que os intelectuais têm de si próprios, levados sempre a pensar como livres de toda a determinação social. Para Bourdieu, a reflexividade é precisamente o que nos permite libertarmo-nos de tais ilusões, levando-nos a descobrir o social no centro do individual, o impessoal escondido sob a intimidade, , o universal encaixado no mais profundo do particular. Assim, quando declina o convite a entrar no jogo da confissão intimista, lembrando pelo contrário o carácter genérico das suas experiências sociais mais formativas (Bourdieu, 1988a), ele mais não faz que aplicar a si próprio o princípio da  sua sociologia (Bourdieu, 1989a, p.449)"Naquilo que têm de mais pessoal, as pessoas  são, essencialmente, a personificação das exigências real ou potencialmente inscritas na estrutura do campo ou, mais precisamente, na posição ocupada no interior desse campo."

 

 

7. Razão, Ética e Política

 

A reflexividade epistémica traz um outro benefício abre uma via de ultrapassagem à oposição entre o relativismo nihilista e a "desconstrução" pos-moderna de que Derrida se fez defensor, e o absolutismo do racionalismo "modernista"  defendido por Habermas. Isto porque a reflexividade permite historicizar a razão sem a dissolver, fundar um racionalismo historicista que reconcilia a desconstrução e a universalidade, razão e relatividade, escorando as suas operações nas estruturas objectivas ‑ apesar de historicamente factuais ‑ do campo científico. Por um lado, como Habermas, Bourdieu crê na possibilidade e necessidade de uma verdade científica. Mas mantém, contra o teórico da Escola de Francoforte, que o projecto de fundar a razão nas estruturas transhistóricas da consciência ou da linguagem, é parte de uma ilusão transcendentalista de que a filosofia e as ciências históricas devem largar. Por outro lado, Bourdieu está de acordo com Derrida e Foucault sobre a ideia de que o saber deve ser desconstruido, que as categorias são derivações sociais contingentes e instrumentos de poder (simbólico) que possuem uma eficácia constitutiva, e que as estruturas do discurso sobre o mundo social são frequentemente pré-construções sociais de grande carga política. A ciência é, como Gramsci o observou, uma actividade eminentemente política. Mas nem por isso se reduz a uma política, por isso incapaz de produzir verdades universalmente válidas. Confundir a política da ciência (o saber) com a da sociedade (o poder), é não fazer caso da autonomia historicamente instituída do campo científico. Bourdieu separa-se aqui do pós-estruturalismo se a desconstrução se desconstruisse a ele própria, descobriria as suas condições históricas de possibilidade e deveria por isso admitir que pressupõe, também, critérios de verdade e de diálogo racional enraizados na estrutura social do universo intelectual.

Segundo Bourdieu, a razão é, por isso, um produto histórico, mas um produto histórico altamente paradoxal no que pode, dentro de certos limites e sob certas condições, "escapar" à história, isto é, à particularidade. São estas condições que devem ser continuamente reproduzidas num e por um trabalho visando proteger  concretamente as bases institucionais do pensamento racional. Longe de lançar um desafio à ciência, a sua análise da génese do funcionamento dos campos de produção cultural tem por objectivo escorar a racionalidade científica na história , isto é, nas relações produtoras de conhecimentos objectivados numa rede de posições e "subjectividades" em disposições que, no seu conjunto, constituem o campo científico enquanto invenção social historicamente única (Bourdieu, 1990a).

A noção de reflexividade, tal como Bourdieu a entende,  inscreve-se não contra a "cientificidade modernista", como o diz Lash (1990), mas contra as concepções positivistas das ciências sociais e contra a separação estanque que elas estabelecem entre factos e valores (Giddens, 1997). Para o autor de La Distinction, o saber empírico não é tão compatível com a descoberta e a procura de objectivos morais como o queriam fazer crer certos partidários desta ou daquela corrente positivista. Na linha directa do projecto durkheimiano (Filloux,1970), Bourdieu está extremamente preocupado com o sentido moral e político da sociologia. Apesar de não poder ser redutível a isto, o seu trabalho veicula uma mensagem moral a dois níveis. Primeiro, do ponto de vista do indivíduo, ele forja instrumentos para distinguir as zonas de necessidade e as de liberdade e, à partida, para identificar os espaços abertos à acção moral.  Bourdieu (1989a p.41) argumenta que, enquanto os agentes agirem com base numa subjectividade que é a interiorização da objectividade, não podem tornar-se outra coisa senão "os aparentes sujeitos de acções que têm por tema a estrutura". Contrariamente, quanto mais tomam consciência do social no interior de si próprios assegurando-se de um domínio reflexivo das suas categorias de pensamento  e de acção, menos hipóteses têm de "ser agidos" pela exterioridade que os habita. A socioanálise pode, trazendo à luz do dia o inconsciente social inscrito nas instituições tal como em nós, oferecer-nos um meio de nos libertar desse inconsciente que conduz ou constrange as nossas práticas. Se o trabalho de Bourdieu partilha com todos os pós-estruturalismos uma rejeição do cogito cartesiano (Schmidt, 1985), ele separa-se deles pelo facto de tentar tornar possível a emergência histórica de algo como um sujeito racional através da aplicação reflexiva do saber das ciências sociais.

A dimensão moral da sociologia reflexiva é inerente àquilo que se poderia chamar a sua função espinozista.  Aos olhos de Bourdieu, a tarefa do sociólogo é a de desnaturalizar e de desfatalizar o mundo social, isto é, destruir os mitos que vestem o exercício do poder e perpetuam o seu domínio. Mas uma tal desmistificação não se destina a pôr os outros em causa e a suscitar-lhes um sentimento de culpabilidade. Pelo contrário, a missão do sociólogo é a de "fazer necessárias" ("nécessiter") as condutas, arrancá-las ao arbitrário sem no entanto as justificar, reconstituindo o universo das pressões que as determinam (Bourdieu, 1989a, p.143n). Tornando visíveis as ligações que ele percebe entre uma sociologia científica e a construção de morais quotidianas de pequena escala, Bourdieu remete para primeiro plano a dimensão ética das ciências sociais, juntando-se assim a Alan Wolfe e Richard Maxwell Brown. Contudo, ao contrário de Wolfe, ele não acredita que a sociologia possa fornecer uma filosofia moral às sociedades avançadas. Isso faria com que o sociólogo tivesse de representar o papel do "teólogo" saint-simoniano, profeta da "religião civil" da modernidade. Segundo Bourdieu, a sociologia pode dizer-nos sob que condições a acção moral é possível, e como é que ela pode ser posta em prática institucionalmente, mas não qual deverá ser o seu destino. Para Bourdieu, a sociologia é uma ciência eminentemente política pelo facto de estar profundamente preocupada com as estratégias e os mecanismos de domínio simbólico nas quais ela própria se encontra enredada. Pela própria natureza do seu objecto e a situação dos que a praticam, as ciências sociais não poderão ser neutras, desligadas, apolíticas. Nunca conseguirão chegar ao estatuto indiscutível das ciências naturais. A prova é que as ciências sociais se encontram constantemente à espreita de formas de resistência e de vigilância (tanto internas como externas) que ameaçam comprometer a sua autonomia sem cessar,  e que são desconhecidas nos sectores mais avançados da biologia ou da física.  O paradoxo das ciências sociais é que o progresso para uma maior autonomia não implica um progresso no sentido da neutralidade política. Quanto mais a sociologia se torna científica, mais ela se torna politicamente pertinente e eficiente, quanto mais não seja a título de instrumento de crítica, de sistema de defesa contra as formas de domínio simbólico que nos impedem de nos tornarmos verdadeiros agentes políticos.

Como se observa na secção final do seminário de Chicago, Bourdieu não partilha a visão fatalista do mundo que lhe atribuem os que lêem na sua obra um hiper-funcionalismo politicamente estéril. A sua perspectiva não é a da visão nitzsheana de "um universo de funcionalidade absoluta" (Rancière, 1984, p.34) no qual "o menor detalhe da acção social (participa) de um vasto plano de opressão" (Elster). Bourdieu não acredita, como Mosca e Pareto, os teóricos de elite da escola italiana, que o universo social está, por si só, necessariamente e para sempre,  dividido em blocos monolíticos de dominantes e dominados (rulers and ruled), de dirigentes e dirigidos. Primeiro porque as sociedades avançadas não formam um cosmos unificado mas são entidades diferenciadas, parcialmente totalizadas, compostas por um conjunto de campos que, uma vez afastados uns dos outros, não se tornam por isso mais autoregulados, cada um com os seus dominantes e dominados. Por outro lado, em cada campo a hierarquia é continuamente contestada e os próprios princípios que suportam a estrutura do campo podem ser desafiados e postos em causa. E a omnipresença do poder também não exclui a possibilidade de uma relativa democratização. à medida que o campo do poder se torna mais diferenciado, que a divisão do trabalho de exercício do poder se torna mais complexa (Bourdieu, 1989a, pp.533-559),  enredando um número cada vez maior de agentes, cada um com os seus interesses específicos, à medida que o universal é invocado nos sub-campos cada vez mais numerosos que constituem o espaço de jogo da classe dominante (na política, na religião, nas ciências e mesmo na economia como se pode observar com o peso crescente dos raciocínios jurídicos na gestão quotidiana e nas decisões estratégicas  das grandes empresas), aumentam as hipóteses de fazer progredir a razão.

Em segundo lugar, Bourdieu não quer de modo nenhum que o mundo social obedeça a leis inamovíveis. Ele não partilha em nada a "tese da fatalidade", essa figura de retórica conservadora (e por vezes progressista) segundo a qual toda a acção colectiva é em vão uma vez que se revela incapaz de corrigir as desigualdades presentes. Apesar de Bourdieu  extrair do mundo social uma imagem bastante estruturada, ele não aceita a ideia de que este mundo evolua "segundo as leis imanentes que as acções humanas não podem modificar"(Hirshman). Para ele, as leis sociais são regularidades limitadas no tempo e no espaço que existem durante tanto tempo quanto for permitido durar às condições institucionais que as suportam . Estas não exprimem aquilo a que Durkheim chama as "necessidades fatais", mas sim as relações históricas que podem frequentemente ser politicamente desfeitas pelo pouco que adquirimos do necessário conhecimento das suas origens sociais.  A missão política do sociólogo, segundo Bourdieu (1980b, p.18) é ao mesmo tempo modesta e essencial. A sociologia é também uma política no sentido que ele dá a este termo uma tentativa para transformar o olhar através do qual nós construimos o mundo social e a partir do qual podemos formar racional e humanamente a sociologia e a sociedade. E, por último,  formarmo-nos a nós próprios.

 

L.J.D.W.

 

 


     4

A Violência Simbólica

 

 

Em  Ce que parler veut dire (1982a), você faz uma crítica à linguística estrutural ou àquilo que se poderia chamar a análise pura da linguagem. Você propõe um modelo alternativo que, para simplificar, trata a linguagem como um instrumento ou um suporte de relações de poder ‑ mais que como um simples meio de comunicação que deve ser estudado nos contextos interactivos e estruturais da sua produção e da sua circulação.

 

O que caracteriza a linguística "pura", é a primazia em que coloca a perspectiva sincrónica e estrutural ou interna relativamente às determinações históricas, sociais, económicas  ou externas à linguagem. Especialmente em Le Sens Pratique  e em Ce que parler veut  dire (1980f, pp.51-70, e 1982a, pp.13-95 respectivamente) tentei chamar a atenção para a relação com o objecto e a teoria das práticas que estão implicadas nessa perspectiva. O ponto de vista saussuriano é o do "espectador imparcial" que procura a compreensão pela compreensão e que assim é conduzido a emprestar essa "intenção hermenêutica" aos agentes sociais, e a fazer dela o princípio das suas práticas. É a postura do gramático (grammairien) cujo  projecto é estudar e codificar a linguagem por oposição à do orador que procura agir no mundo e sobre o mundo graças à eficácia performativa da palavra.  Aqueles que tratam a linguagem como objecto de análise, em vez de a utilizarem para pensar ou falar, são levados a constitui-la como um logos por oposição a uma praxis, como letra morta sem fins práticos ou sem outra intenção que a de ser interpretada, exactamente como a obra de arte.

Esta visão tipicamente escolástica é um produto do ponto de vista e da situação escolásticas onde ela se gerou  a colocação, escolar, entre parênteses neutraliza as funções que estão implicadas na utilização normal da língua. Tanto em Saussure como na tradição hermenêutica, a linguagem é tratada como letra morta (escrita e estranha, como diz Bakhtine), como sistema autosuficiente completamente isolado do seu uso real e despojado das suas funções práticas e políticas (como na semântica pura de Fodor e Katz). A ilusão da autonomia de ordem puramente linguística que é assegurada pelo privilégio assim oferecido à lógica interna da linguagem, à custa das condições sociais e dos correlatos do seu uso social, abre uma via a todas as teorias que fazem como se o domínio teórico do código fosse suficiente para oferecer o domínio prático dos usos socialmente apropriados.

 

 

Quer com isto dizer, contra as pretensões da linguística estrutural, que o sentido das expressões linguísticas não poderia ser derivado ou deduzido da análise da sua estrutura formal?

 

A gramaticalidade não é condição necessária nem suficiente para a produção de sentido, e a linguagem não é feita para a análise linguística mas para ser falada e para ser falada a propósito. (Os sofistas tinham o hábito de dizer que o que é importante na aprendizagem da linguagem, é a aprendizagem do momento apropriado, kairos, para dizer algo apropriado.)  Todas as pressuposições do estruturalismo e todas as dificuldades que daí resultam ‑ e isso tanto  na antropologia como na sociologia ‑ são derivadas da filosofia intelectualista da acção humana que o suportam; essas pressuposições estão contidas na operação inicial que reduz a linguagem a um acto de pura execução. É essa distinção primordial entre a língua e a sua realização na fala, isto é, na prática e na história, que está na origem da incapacidade do estruturalismo para pensar a relação entre estas duas entidades de outro modo que não seja como uma relação entre o modelo e a sua execução, a essência e a existência.

Pondo em questão esta postura, tentei também ultrapassar as insuficiências de uma análise ou puramente económica ou puramente linguística da linguagem, destruir a oposição normal entre o materialismo e o culturalismo. Com efeito, para resumir uma longa e difícil demonstração numa frase, pode dizer-se que estas duas posições têm em comum o facto de se esquecerem que as relações linguísticas são sempre relações de força simbólica através das quais as relações de força entre os locutores  e os seus grupos respectivos que se actualizam sob forma transfigurada. Assim, é impossível interpretar um acto de comunicação dentro dos limites de uma análise puramente linguística. Até a permuta linguística mais simples coloca em jogo uma complexa e ramificada rede de relações de força históricas entre o locutor, dotado de uma autoridade social específica, e o seu interlocutor ou seu público, que reconhece a sua autoridade a diferentes níveis, tal como entre os respectivos grupos a que pertencem. O que tento demonstrar é que uma parte muito importante do que se produz na comunicação verbal, até ao próprio conteúdo da mensagem, é ininteligível durante tanto tempo que não nos damos conta da totalidade da estrutura de relações de força que aí está presente, na permuta,  mesmo num estado invisível.

 

 

Pode dar um exemplo?

 

Se quiser posso utilizar o exemplo da comunicação entre colonos e indígenas num contexto colonial ou pós-colonial, que esteve na origem destas reflexões. A primeira questão que se põe é a de saber que linguagem é que eles vão utilizar.  Será que o dominante vai adoptar a linguagem do dominado como indício de uma intenção de igualdade? Se o fizer há uma boa hipótese que isso tome a forma daquilo a que chamo uma estratégia de condescendência (1979a. p.551) abdicando temporária e ostentatoriamente da sua posição dominante de modo a colocar-se ao nível do seu interlocutor, o dominante, negando-a,  aproveita ainda a sua relação de domínio, que continua a existir. A negação simbólica (no sentido freudiano de Verneinung) isto é a colocação  simulada entre parenteses da relação de poder, explora essa relação de poder de modo a produzir o reconhecimento da relação de poder a que a abdicação de poder apela.. Mas voltemos à situação, de longe mais frequente, onde é o dominado que é obrigado a adoptar a linguagem do dominante ‑ e aqui podermos também pensar na relação entre o inglês standard branco e o americano vernáculo negro. Neste caso, o dominado fala uma langage brisé, como diz William Labov (1973), e o seu capital linguístico é mais ou menos completamente desvalorizado, seja na escola, no trabalho ou nos encontros quotidianos com o dominante. O que a análise conversacional facilmente deixa de lado neste caso, é o facto de que toda a interacção linguística entre brancos e negros é marcada pela relação estrutural entre a duma respectiva apropriação do inglês e pelo desequilíbrio na relação de forças que dá à imposição arbitrária do inglês branco e burguês o seu ar de natural.

Para levar estas análises um pouco mais longe, seria preciso introduzir todo o tipo de coordenadas posicionais (de localização), como sexo, nível de formação, origem social, residência, etc. Todas estas variáveis intervêm permanentemente na determinação da estrutura objectiva da "acção comunicativa" e a forma que assume a interacção linguística irá depender substancialmente desta estrutura, que continua inconsciente e funciona quase sempre "por detrás" dos locutores. Resumindo, se um francês fala com um argelino, ou um americano negro com um branco bem sucedido, isto não são duas pessoas a falar uma com a outra mas sim, por elas, toda uma história colonial ou toda a história da subjugação económica, política e cultural dos negros (ou das mulheres, dos trabalhadores, das minorias, etc.) nos Estados Unidos. Isto mostra que a "fixação (das etnometodologias) sobre a configuração imediatamente visível" (Sharrock e Anderson, 1986, p.113) e o cuidado de manter a análise tão próxima quanto possível da "realidade concreta", que inspira a análise conversacional (por exemplo Sacks e Schegloff, 1979) e que alimenta a vontade microsociológica, pode conduzir à omissão de uma realidade que escapa à intuição imediata porque está alojada nas estruturas que são transcendentes à interacção que  as informa.

 

 

Você defende que toda a expressão linguística é um acto de poder, mesmo que dissimulado. Não existirão no entanto situações (tais como a conversa fiada, o diálogo íntimo ou outras "maneiras de falar" quotidianas tais como as analisadas por Goffman (1981) que possam ser ortogonais, ou não ser pertinentes relativamente às estruturas de desigualdade, e onde o comportamento verbal não está inscrito nas relações de poder?

 

Toda a permuta linguística contém a virtualidade de um acto de poder e isso tanto quanto mais envolver agentes ocupando posições assimétricas dentro da distribuição do capital pertinente. Esta potencialidade pode ser colocada entre parenteses, como acontece frequentemente na família e nas relações de philia, no sentido aristotélico do termo, onde a violência é suspensa numa espécie de pacto simbólico de não agressão. Contudo, mesmo nesses casos,  a recusa de exercício do poder pode ser a dimensão de uma estratégia de condescendência ou uma maneira de levar a violência a um nível mais elevado de negação e dissimulação, um meio de reforçar o efeito de fingimento e por isso de violência simbólica.

 

 

Você denuncia também "a ilusão do comunismo linguístico", segundo a qual a competência social para falar é igualmente oferecida a todos.

 

Todo o acto de fala ou todo o discurso é uma conjuntura, o produto do encontro entre um habitus linguístico e um mercado linguístico, isto é, entre, por um lado, um sistema de disposições socialmente constituido,  que implica uma propensão a falar de uma certa maneira e a formular certas coisas (um interesse expressivo)  com uma competência para falar inseparavelmente definida como uma aptidão linguística para engendrar uma infinidade de discursos que são gramaticalmente conformes, e enquanto  capacidade social para utilizar adequadamente essa competência numa dada situação e, do outro lado, um sistema de relações de força simbólica que se impõe através de um sistema de sanções e de censuras específicas e que por isso contribui para configurar a produção linguística, determinando o "preço" dos produtos linguísticos.  A antecipação prática do preço que o meu discurso irá obter contribui para determinar a forma e o conteúdo do meu discurso, que será mais ou menos duro, mais ou menos censurado, por vezes até ao silêncio da intimidação. Quanto mais o mercado for oficial ou "duro", mais próximo se encontra das normas da linguagem dominante ( pode pensar-se por exemplo nas cerimónias da política oficial inaugurações, discursos, debates públicos), maior é a censura e mais o mercado é dominado pelos dominantes, os detentores da competência linguística legítima. (Devo aqui fazer um parenteses para corrigir uma das fórmulas que empreguei ou pelo menos o que por isso se pode entender. Dizer que a antecipação do preço provável do discurso contribui para determinar a forma e o conteúdo deste discurso não é voltar a um modelo economicista da linguagem essa antecipação não tem nada de cálculo consciente; ela é um facto do habitus linguístico que é produto de uma relação prolongada com um  certo mercado e que tende a funcionar como um senso de aceitabilidade e do valor provável dos seus produtos linguísticos ‑ (1982a.)

A competência linguística não é uma simples capacidade técnica mas também uma capacidade estatutária. Isso significa que todas as formulações linguísticas não são igualmente aceitáveis e que os locutores não são iguais. Empregando uma metáfora utilizada antes dele por Auguste Comte, Saussure diz que a linguagem é um "tesouro" e  ele descreve a relação dos indivíduos com a linguagem como uma espécie de participação mística num tesouro comum universal e uniformemente acessível a todos os "sujeitos que pertencem à mesma comunidade". A ilusão de um comunismo linguístico, que persegue a linguística, é a ilusão de que todos participam na linguagem do mesmo modo que gozam o sol, o ar ou a água ‑ numa palavra, a linguagem não é um bem raro. De facto, o acesso à linguagem legítima é claramente desigual e a competência teoricamente universal, se é livremente distribuida a todos pelos linguístas, na realidade ela é monopolizada apenas por alguns.

As desigualdades de competência linguística revelam-se constantemente no mercado das interacções quotidianas, isto é, na conversa ocasional entre duas pessoas, numa reunião pública, num seminário, numa entrevista de recrutamento, na rádio e na televisão. A competência funciona diferencialmente e existem monopólios dos bens linguísticos  tal como no mercado de bens económicos. Onde isso melhor se vê é na política onde os porta-vozes, pelo facto de deterem o monopólio da expressão política legítima da vontade de um colectivo, falam não apenas a favor daqueles que representam mas também, frequentemente, em vez deles.

 

 

Essa aptidão que têm os porta-vozes de configurar a realidade projectando uma representação definida (esquemas classificativos, conceitos, definições, etc.) da realidade, levanta a questão do poder das palavras de onde provem a eficácia social das palavras?  Aqui, você vira-se outra vez contra o modelo comunicacional puro representado por Austin, e sobretudo por Habermas, segundo o qual a substância linguística do discurso dá conta dos seus efeitos.

 

É preciso estar muito reconhecido aos filósofos da linguagem e em particular a Austin pelo facto de terem perguntado como é que é possível nós podermos "fazer coisas com as palavras",  como diz o título inglês Doing Things With Words, como é que é possível ás palavras produzirem efeitos. Como é que é possível , se eu disser a alguém "abra a janela", dentro de certas condições, essa pessoa abre a janela? (E, se eu for um velho lorde inglês a ler o jornal do fim de semana, enterrado num sofá, me baste dizer "John, não achas que há aqui uma corrente de ar?" e o John fecha a janela.) Se nos dermos ao trabalho de pensar nisso, esta atitude de fazer coisas com as palavras, o poder das palavras de dar ordens e ordenar as coisas, aparece como parecendo magia.

Mas tentar compreender linguisticamente o poder das expressões linguísticas, tentar encontrar dentro da linguagem o princípio da eficácia da linguagem é esquecer que a autoridade chega à linguagem vinda do exterior, como Benveniste o lembra na sua análise do skeptron que se dava ao orador, segundo Homero, no momento em que ía tomar a palavra. A eficácia da linguagem  não está nas "expressões ilocutórias" ou no próprio discurso como sugere Austin, pois tal não é outra coisa que o poder delegado pela instituição. (Para ser justo, o próprio Austin dava um lugar central às instituições na análise da linguagem, mas os seus comentadores têm geralmente abordado a sua teoria do performativo no sentido de um estudo das suas propriedades intrínsecas). O poder simbólico, poder de constituir o facto ao enunciá-lo, de agir sobre o mundo agindo sobre a representação do mundo, não está nos "sistemas simbólicos" sob a forma de uma "força ilocutória". Esse poder realiza-se dentro e através de uma relação definida que gera a crença na legitimidade das palavras e das pessoas que as enunciam, e não funciona a menos que os que a ele se submetem reconheçam os que o exercem. O que quer dizer que, para dar conta dessa situação à distância, dessa real transformação operada sem contacto físico, nós devemos, como acontece com a magia segundo Marcel Mauss, reconstruir a totalidade do espaço social no qual são engendrados e exercidas as disposições e as crenças que tornam possível a eficácia da magia da linguagem.

 

 

A sua análise da linguagem não é contudo uma incursão passageira nos domínios da linguística, mas representa mais uma extensão a um novo domínio empírico do método de análise que você aplicou  a outros produtos culturais.

 

Eu não parei de lutar contra as fronteiras arbitrárias, que são um puro produto da reprodução escolar e não têm qualquer fundamento epistemológico, entre a sociologia e a etnologia, a sociologia e a história, a sociologia e a linguística, a sociologia da arte e a sociologia da educação, a sociologia do desporto e a sociologia política, etc. Penso que não se pode compreender por completo a linguagem sem recolocar as práticas linguísticas dentro do universo completo das práticas possíveis as maneiras de comer e de beber, os consumos culturais, os gostos em matéria de arte, o desporto, o vestuário, os móveis, a política, etc. Porque é a totalidade do habitus de classe, isto é, a posição ocupada sincrónica e diacronicamente  dentro da estrutura social que se exprime através do habitus linguístico,  e que é apenas uma das suas dimensões.  A linguagem é uma técnica do corpo e da competência linguística, e especialmente fonética, é uma dimensão da hexis corporal na qual se exprime toda a relação com o mundo social. Tudo indica, por exemplo, que o esquema corporal característico de uma classe social determina o sistema de traços fonéticos que caracterizam uma pronúncia de classe por entre aquilo a que Pierre Guiraud chama o "estilo articulatório". Este estilo articulatório é parte integrante de um estilo de vida "tornado corpo", e está em relação directa com os usos do corpo e do tempo que definem claramente este estilo de vida. (Não é por acaso que a distinção burguesa investe a sua relação com a linguagem do mesmo modo de distanciação com que trata a sua relação com o corpo.)

Uma análise sociológica, tanto estrutural como genética, da linguagem deve fundar teoricamente e restaurar empiricamente a unidade das práticas humanas,  entre as quais as práticas linguísticas são apenas uma parte, de modo a tomar por objecto a relação que une os sistemas estruturados de diferenças linguísticas sociologicamente pertinentes aos sistemas de diferenças sociais estruturados de modo idêntico.

 

 

 

Então, a seu ver, o sentido e a eficácia social das mensagens não se determinam completamente a não ser no interior de um determinado campo (por exemplo o jornalismo ou a filosofia), este também dentro de uma rede de relações hierárquicas com outros campos.  Sem um entendimento da estrutura completa das relações objectivas que definem as posições neste campo, as formas específicas de censura que cada uma implica, sem um conhecimento das trajectórias e das disposições linguísticas daqueles que ocupam essas posições, sem isto é impossível explicar completamente os processos de comunicação porque é que algo é dito ou omitido, por quem, o que é significado e o que é entendido e, o mais importante, com que efeitos sociais.

 

Foi o que tentei demonstrar no meu estudo sobre a Ontologia política de Martin Heidegger (1975a,1988d), trabalho ao qual fui conduzido pela lógica da minha investigação sobre a linguagem e sobre a noção de campo.  A obra de Heidegger (que frequentei muito cedo, numa época da minha juventude em que preparava um livro sobre a fenomenologia da vida afectiva e da experiência temporal)  apareceu-me com,o um terreno particularmente favorável para verificar as minhas hipóteses sobre o efeito de censura exercido pelos campos de produção cultural.  Heidegger é um mestre ‑ tenho vontade de dizer o mestre ‑ da linguagem dupla ou, se se preferir, do discurso polifónico. Ele domina a arte de falar simultaneamente em dois modos, o da linguagem filosófica e o da linguagem normal. Isso é particularmente visível no caso do conceito aparentemente "puro" de Fursorge (cuidado, preocupação), que tem um papel central na teoria heideggeriana do tempo e que, na expressão soziale Fursorge, "assistência social", diz respeito ao contexto político e à condenação do Estado-providência, das licenças pagas, da segurança social, dos seguros de doença, etc.  Mas Heidegger interessou-me também enquanto incarnação exemplar do "filósofo puro" e eu quis mostrar, neste caso aparentemente desfavorável para a sociologia das obras culturais tal como a concebo, que o método de análise que proponho poderia não apenas dar conta das condições políticas de produção da obra, mas também conduzir a um melhor entendimento da própria obra, isto é, neste caso particular, pela intenção central da filosofia heideggeriana, a "ontologização" do historicismo.

O interesse de Heidegger como paradigma do filósofo "puro", anhistórico, que interdita e recusa explicitamente ligar o pensamento ao pensador, à sua bibliografia, e muito menos às condições económicas e sociais do seu tempo (e que sempre foi lido de um modo profundamente deshistoricizado), leva-nos a repensar as ligações entre a filosofia e a política. É isto que quer sugerir o título que dei ao meu trabalho a ontologia é política e a política torna-se ontologia. Mas, neste caso mais que em qualquer outro, a relação inteligível que existe entre o "Fuhrer filosófico" e a política  e a sociedade alemãs, longe de ser directa, estabelece-se apenas através da estrutura do microcosmos filosófico. Uma análise adequada do discurso de Heidegger implica por isso uma dupla recusa deve rejeitar tanto as pretensões do texto filosófico relativamente a uma autonomia absoluta e a sua rejeição de uma referência externa; e deve rejeitar a redução directa do texto ao contexto mais geral da sua produção e da sua circulação.

 

 

Esta dupla recusa é também o princípio director da sua sociologia da literatura, da pintura, da religião e do direito (ver respectivamente, 1983c, 1986c, 1987g, 1988b, 1991b). Em cada um destes casos, você coloca as obras culturais em ligação com o campo da sua produção e coloca de costas voltadas a leitura interna e a redução aos factores externos.

 

Tendo em conta o campo da produção específica e a sua autonomia, que é o produto da história específica do campo, ela própria irredutível à história "geral", evitam-se dois erros complementares, que se utilizam mutuamente como cavilha e alibi, o que consiste em tratar as obras como realidades auto-suficientes e o que as reduz directamente às condições económicas e sociais mais gerais.  Assim, por exemplo, os que se opõem a propósito do nazismo de Heidegger concedem ao seu discurso filosófico ou demasiada ou pouquíssima autonomia é facto indiscutível que Heidegger tenha sido membro do partido nazi, mas nem o Heidegger jovem nem o Heidegger de idade madura foram ideólogos nazis como o reitor de Krieck. A interpretação externa, iconoclasta, e a interpretação interna, laudatória, têm em comum a sua ignorância do efeito de configuração filosófica elas ignoram a possibilidade que a filosofia de Heidegger possa ter sido apenas a sublimação filosófica, imposta pela censura específica do campo de produção filosófica, dos próprios princípios políticos e étnicos que determinaram a sua adesão ao nazismo. Para ver isto, é necessário repudiar a oposição entre a leitura política e a leitura filosófica e submeter-se a uma dupla leitura, inseparavelmente filosófica e política, dos escritos que são fundamentalmente definidos pela sua ambiguidade, isto é, pela sua dupla referência constante a dois espaços sociais aos quais correspondem dois espaços mentais.

Para perceber o pensamento de Heidegger, é preciso compreender não apenas todas as "idées reçues" do seu tempo (tal como se exprimiam nos editoriais dos jornais, nos discursos universitários, nos prefácios a livros filosóficos e nas conversas entre professores, etc.) mas também a lógica específica do campo filosófico dentro do qual se encontravam os grandes especialistas, isto é, os neokantianos, os fenomenólogos, os neotomistas, etc.  Para realizar a "revolução conservadora" que ele levou a cabo na filosofia, Heidegger devia apoiar-se numa extraordinária capacidade de invenção técnica, isto é, sobre um capital filosófico excepcional (basta ver o virtuosismo que ele manifesta no seu Kant e o problema da Metafísica)  e uma aptidão também excepcional para dar às suas tomadas de posição uma forma filosoficamente aceitável que ela própria pressupunha um domínio prático da totalidade das posições do campo, um formidável sentido do jogo filosófico. Por oposição a simples panfletários ou ensaistas políticos tais como Spengler, Junger ou Niekisch, Heidegger integra verdadeiras tomadas de posição filosóficas até aí entendidas como incompatíveis, numa nova posição filosófica. Esse domínio do espaço dos possíveis aparece mais claramente ainda no segundo Heidegger, que se define constantemente de modo relacional, recusando antecipadamente e por negação as representações das suas tomadas de posição passadas e presentes que se poderiam produzir a partir de outras posições dentro do campo filosófico.

 

 

Você retira as ideias políticas de Heidegger menos do estudo do seu contexto que da leitura do próprio texto e do elucidar dos quadros semanticos múltiplos nos quais ele funciona.

 

É a leitura da própria obra, dos seus duplos sentidos, dos seus acordos duplos, que me revelou algumas das implicações políticas mais imprevisíveis da filosofia de Heidegger a rejeição do Estado-providência escondido no centro da teoria da temporalidade, o anti-semitismo sublimado na condenação da "errância", a recusa em denunciar a sua anterior defesa dos nazis inscrita nas alusões tortuosas do seu diálogo com Junger, etc. Tudo isso poderia ser encontrado nos próprios textos, como o demonstrei em 1975, mas continuava inacessível aos polícias da ortodoxia da leitura filosófica que, como os aristocratas em declínio, respondiam como o próprio Heidegger, no qual se projectavam, à ameaça que o progresso das ciências sociais fazia emergir pela sua diferença, pela sua distinção, agarrando-se à sagrada diferença entre a ontologia e a antropologia. A análise puramente lógica e a análise puramente política são ambas inaptas, tanto uma como a outra para dar conta do duplo discurso cuja verdade reside na relação entre o sistema declarado e o sistema escondido.

Contrariamente ao que se pensa muitas vezes, a compreensão adequada de uma filosofia não exige esse tipo de deshistoricização pela eternalidade que cumpre a leitura intemporal dos textos canónicos concebidos como philosophia perennis, ou pior, esse tipo de "rebaixamento" incessante, destinado a ajustá-las aos debates contemporâneos, por vezes a custo de contorsões e distorsões incríveis (quando penso que "Heidegger nos ajuda a pensar o holocausto", tenho dificuldade a acreditar que não estou a sonhar ‑ mas talvez eu não seja suficientemente pós-moderno"!).  Essa compreensão nasce principalmente de uma verdadeira historicização que permite descobrir o princípio subjacente à obra ao reconstruir a problemática, o espaço dos possíveis em relação aos quais ela se construiu e o efeito de campo específico que lhe deu a forma e que a revestiu.(...) p.129

 

Esteticização do pensamento

(...)Deste ponto de vista, o meu trabalho ‑ penso particularmente em L'Amour de l'art ou em La Distinction ‑ situa-se nos antípodas da postura ou da pose filosófica que, depois de Sartre, tem permanentemente implicado uma dimensão estética. A crítica, não da cultura mas dos usos sociais da cultura como capital e instrumento de poder simbólico, é incompatível com a diversão estéta ‑ frequentemente escondida atrás de uma fachada "científica", como em Barthes ou no Tel Quel (para não falar de Baudrillard) ‑ cara a estes filósofos franceses que levaram a estetização da filosofia a um grau jamais igualado. (...)" p.129

 

Aparências de cientificidade

"Bom número dos traços específicos da filosofia francesa, depois dos anos 60, pode explicar-se pelo facto de, como mostrei em Homo Academicus, a Universidade e o campo intelectual terem sido dominados, pela primeira vez, por especialistas das ciências humanas (tais como Lévi-Strauss, Dumézil, Braudel, etc.). O lugar central de todas as discussões da época deslizou para a linguística que se constituiu como modelo de todas as ciências humanas e mesmo de projectos filosóficos tais como o de Foucault. Tal é a origem daquilo a que chamo o efeito "-logia" designando os esforços das filosofias para agarrar os métodos e as aparências de cientificidade das ciências sociais sem abandonar o estatuto privilegiado do "filósofo" penso na semiologia literária de Barthes, na arqueologia de Foucault, na gramatologia de Derrida, ou na tentativa dos althusserianos para apresentarem uma leitura "científica" do texto de Marx instituido em ciência e em medida de todas as ciências como uma ciência autosuficiente e autónoma. (1975b).(...)

 

Epistemologia

"Tem-se muito frequentemente uma ideia da reflexão epistemológica que conduz a conceber a teoria ou a epistemologia como uma espécie de discurso vago e vazio sobre uma prática científica ausente. Para mim, a reflexão teórica manifesta-se apenas dissimulando-se na prática científica que ela enforma. E poderia aqui evocar o personagem de Hípias o Sofista.  No Hípias Menor, Hípias aparece como uma espécie de idiota incapaz de se elevar acima do caso particular. Interrogado sobre a essência do Belo, ele responde enumerando obstinadamente exemplos particulares uma bela marmita, uma jovem bela, etc. De facto, como mostrou Dupréel, ele obedece à intenção explícita de recusar a generalização e a reificação na abstracção que ela favorece. Não partilho a filosofia de Hípias (apesar de eu passar timidamente por baixo de toda a reificação das abstracções que é tão frequente nas ciências sociais), mas penso que não se pode pensar correctamente a não ser através de casos empíricos teoricamente construidos."(...)p.135

 

Teoria

"A teoria não é uma espécie de discurso profético ou programático, nascido da dissecação ou de uma amálgama de teorias (cujo melhor exemplo continua a ser o esquema AGIL de Parsons que hoje se anda a tentar ressuscitar). Tal como a concebo, a teoria científica apresenta-se como um programa de percepção e de acção. um habitus científico, se preferirem, que se mostra apenas no trabalho empírico em que se realiza. Em consequência, ganhamos mais confrontando-nos com novos objectos que envolvendo-nos em polémicas teóricas que mais não fazem que alimentar um meta-discurso auto-engendrado e frequentemente vazio a propósito de conceitos tratados como totems intelectuais.

Tratar uma teoria como um modus operandi que guia e estrutura praticamente a prática científica implica, evidentemente, que abandonemos a complacência um pouco fétichista com que os teóricos teoricistas a tratam. É por isso que nunca tive necessidade de rever a genealogia dos conceitos que forjei ou reactivei, tais como os de habitus, campo ou capital simbólico. Não tendo sido extraídos de uma partenogénese teórica (n.t. "reprodução sem fecundação"), estes conceitos não ganham muito em ser relocalizados em relação aos seus usos anteriores. É na prática da pesquisa que estes conceitos nascidos das dificuldades práticas do projecto de pesquisa devem ser avaliados. A função dos conceitos que emprego é primeiro e acima de tudo a de designar, de modo estenográfico, uma tomada de posição teórica, um princípio de escolha metodológica, tanto negativo como positivo. A sistematização vem necessariamente ex post, à medida que as analogias fecundas vão emergindo, à medida que as propriedades úteis do conceito são enunciadas e postas à prova.

Eu poderia, parafraseando Kant, dizer que a pesquisa sem teoria é cega e que a teoria sem pesquisa é vazia. O modelo socialmente dominante da sociologia repousa, infelizmente ainda hoje, sobre uma distinção cavada e um divórcio prático entre a pesquisa empírica sem teoria (penso aqui em particular nas ciências sem cientistas cujas sondagens de opinião pública representam o paradigma, e a esse disparate científico a que chamam "metodologia") e a teoria sem objecto dos teóricos puros, actualmente exemplificada pelas discussões que dão brado em volta da famosa relação micro-macro (por exemplo Alexander et al. 1987). A oposição entre a pura teoria do lector destinada ao culto hermenêutico das obras dos pais fundadores (quando não é dos seus próprios trabalhos) por um lado, e a pesquisa empírica e a metodologia por outro, é essencialmente de ordem social. Ela está inscrita nas ordens mentais e institucionais da profissão, enraizada na distribuição de recursos, de postos de trabalho e competências, e há escolas (n.t. correntes) inteiras (por exemplo a análise conversacional ou a status attainment research) que podem ser fundadas completamente sobre um método particular.(...)p.137

 

O Sociólogo ‑ le métier de sociologue

"No tempo em que eu estudava, aqueles que se distinguiam por um "cursus brillant" não podiam, sob pena de indignação, envolverem-se em tarefas práticas tão vulgarmente banais como as que fazem parte do trabalho do sociólogo. As ciências sociais são difíceis por razões sociais o sociólogo é alguém que vai para a rua e interroga o primeiro transeunte que aparece, escuta-o e tenta com ele aprender. Aquilo que Sócrates costumava fazer. Mas aqueles que hoje celebram Sócrates são os últimos a compreender e a aceitar essa espécie de abdicação do filósofo-rei frente ao "vulgar" que procura a sociologia."(...) p.176

"Flaubert dizia mais ou menos "Eu gostaria de viver todas as vidas." É algo que compreendo muito bem  ter todas as experiências humanas possíveis. Descubro que uma das mais extraordinárias satisfações que encontra o trabalho sociológico é essa possibilidade de entrar na vida dos outros. Pessoas que podem parecer chatas até mais não, nos clubes de luxo, por exemplo, onde as conveniências interditam que se fale de coisas sérias,  o mesmo é dizer de si próprio, do seu trabalho, etc., estas pessoas podem tornar-se interessantíssimas quando falam daquilo que fazem, do seu trabalho, por exemplo. Vá lá que na vida-de-todos-os-dias eu não estou permanentemente a fazer sociologia. Mas, mesmo sem me dar conta, "tiro fotografias" que "revelo" a seguir. Penso que uma parte daquilo a que se chama intuição, que está no princípio de bom número de hipóteses e análises, tem origem nestas "fotos", por vezes bastante antigas. É por isso que o trabalho do sociólogo se parece com o trabalho do escritor (penso por exemplo em Proust) como ele, temos que fazer chegar  à explicação as experiências que, normalmente, passam despercebidas ou continuam desconfiguradas."(...) p. 178

 

As Intuições e os positivismos tecnocratas

"Neste ponto, seria bom reflectir sobre  a noção de intuição. Quando se diz que um sociólogo tem intuição, isso não é um elogio... Posso dizer que levei quase vinte anos a descobrir porque raio fui logo escolher este espaçozito... penso até que ‑ isto são coisas que nunca diria ainda não há dez anos ‑ que a emoção da simpatia ‑ no seu sentido mais forte ‑ por que passei, o patético que se observava na cena que vi, etc, estiveram no ponto de partida do interesse que tive por esse objecto." (...) p.139

"(...)Que dizer deste trabalho, senão que transgride quase todos os preceitos da rotina metodológica, e que é por isso que tem algumas hipóteses de agarrar tudo o que os inquéritos normais deixam escapar por definição? Penso ‑ ou pelo menos espero ‑ que este possa preencher uma dupla função, científica e política lembrando aos investigadores aquilo que a rotina dos inquéritos normais, sem falar dos exercícios metodológicos ou teóricos formais ou formalistas, deixam escapar, e aos tecnocratas que nos governam todo o que os procedimentos formalmente democráticos da vida política (e em particular os rituais da vida de partido, congresso, programas, moções, etc.) e as tranquilidades formalmente científicas da investigação económica lhes fazem ignorar ‑ isto é, os sofrimentos de uma nova espécie e as injustiças de uma nova forma."(...) p.174

 

A violência simbólica

Para falar o mais simplesmente possível, a violência simbólica é essa forma de violência que é exercida sobre um agente social com a sua cumplicidade. Dita assim, esta formulação é perigosa porque pode abrir a porta a discussões escolásticas sobre a questão de saber se o poder vem de baixo e se o dominado deseja a condição que lhe é imposta, etc. Em termos mais rigorosos, os agentes sociais são agentes conhecedores que, mesmo quando são submetidos a certos determinismos, contribuem para produzir a eficácia daquilo que os determina na medida em que eles estruturam o que os determina. E é quase sempre nos ajustes entre os determinantes e as categorias de percepção que os constituem como tais, que surge o efeito de dominação. (Isto mostra, curiosamente que, se tentarmos pensar o poder nos termos da alternativa escolar da liberdade e do determinismo, da escolha e da obrigação, não se consegue daí sair ‑ cf.1982a, p.36). Chamo desconhecimento ao facto de se reconhecer uma violência que se exerce precisamente na medida em que é desconhecida como violência; é o facto de aceitar esse conjunto de pressupostos fundamentais, pré-reflectidos, com que os agentes sociais se envolvem pelo simples facto de aceitarem o mundo por si só, isto é, como ele é, e de o achar natural porque lhe são aplicadas estruturas cognitivas extraídas das próprias estruturas desse mundo. Pelo facto de termos nascido num mundo social, aceitamos um certo número de postulados, de axiomas que não são pensados e que não requerem inculcação. É por isso que a análise doxica (n.t. "da doxa" ‑ do senso comum) do mundo, dado o acordo imediato das estruturas objectivas com as cognitivas, é o verdadeiro fundamento de uma teoria realista do poder e da política. De todas as formas de "persuasão clandestina", a mais implacável é aquela que é exercida simplesmente pela ordem das coisas.(n.t. "pelas coisas como elas são/estão"). (...)p.143

 

A violência simbólica e os intelectuais

"Observa-se aqui a função do conceito de arbitrário cultural (frequentemente posto em questão pelas minhas críticas) a de instrumento de ruptura com a doxa intelectualocentrica. Os intelectuais estão sem dúvida entre os mais mal situado para tomar consciência da violência simbólica (particularmente aquela exercida pelo sistema escolar) porque eles próprios por ela passaram com muito mais intensidade que a mediania das pessoas e porque continuam a contribuir para o seu exercício. (...)"p.145

 

As ortodoxias científicas

As ortodoxias científicas são o produto de uma simulação de ordem científica que se conforma não a uma lógica agonistica (n.t. "agon ‑ de jogo") da ciência mas à representação da ciência projectada por uma certa epistemologia positivista. (Um dos méritos de Kuhn foi o de fazer estilhaçar esse tipo de ortodoxia positivista que mimava a cientificidade em nome da cumulação, da codificação, etc. Essa simulação de um simulacro de ciência constituia, na realidade, um factor de regressão. Porque, na verdade, um campo científico autêntico é um lugar onde os investigadores negoceiam sobre os espaços de desacordo e sobre os instrumentos com os quais podem resolver esses desacordos, e nada mais.)"(...)p.152

Uma outra maneira de mimar a ciência é ocupando uma posição de poder universitário que permita controlar as outras posições, os programas de formação e as exigências do ensino, etc, sintetizando, os mecanismos de reprodução da Universidade (1984b), e impôr uma ortodoxia. Tais situações de monopólio nada têm a ver com um campo científico. Um campo científico é um universo autónomo onde, para se defrontarem uns aos outros, os investigadores devem abandonar todas as armas não científicas, a começar pelas armas da autoridade universitária. Num campo científico autêntico, podem-se levar a cabo discussões livres e contra-oposições violentas a qualquer oponente com as armas da ciência porque a posição que se ocupa não depende do campo ou do facto de se poder obter outra posição noutro lado. A história intelectual mostra que uma ciência que é controversa, lugar de discussões, cheia de conflitos autênticos, isto é, científicos, é mais avançada que uma ciência onde reina um consenso fundado sobre conceitos elásticos, programas vagos e volumes colectivos.(...)p.153  Os campos científicos mais avançados são lugares de uma alquimia através da qual a libido dominandi científica é necessariamente transmutada em libido sciendi (1990a,p.300). Este é o fundamento da minha resistência ao consenso mudo que, a meus olhos, é a pior das situações científicas possível à falta de outra coisa, tenhamos ao menos conflitos!(...)"p.154

 

O presente do quotidiano social e científico

"Estes conflitos aparentes, que mobilizam jornalistas e ensaistas que, dentro do campo científico querem assegurar um suplemento de notoriedade respondendo à procura de "suplément d'âme", dissimulam oposições reais que, raramente estão relacionadas, pelo menos directamente, com os conflitos "mundanos". O espaço no qual se situa o investigador não é o da "actualidade", seja ela a actualidade política ou a "intelectual", como se diz, entendendo-se por isso o que se discute nas "páginas livres" dos jornais e das revistas  é o espaço relativamente intemporal ‑ Marx e Weber, Durkheim e Mauss, Husserl e Wittgenstein, Bachelard e Cassirer fazem tão parte dele como Goffman, Elias ou Cicourel ‑ e de facto internacional, de todos os que contribuiram para produzir a problemática frente à qual o investigador se encontra e que nada tem a ver, frequentemente, com os problemas que se colocam ‑ e que lhe colocam ‑ aqueles que têm os olhos postos na actualidade imediata. (...) p. 156

 

Os males da pedagogia

"É bem sabido que não basta ver o que está metodologicamente certo para o realizar ou para o fazer aceitar; a epistemologia pura é frequentemente impotente quando não é acompanhada de uma crítica sociológica das condições de validade  da epistemologia. Daí que, com argumentos epistemológicos não se possa destruir um Streit (debate) no qual as pessoas têm interesses vitais. Penso ainda que, se se quizer retardar as ciências sociais, basta, como se lança um osso aos cães, lançar Streiten idiotas. Infelizmente, o campo francês é deste tipo; não há Streit em que não pegue.

Mas isto não é tudo. O que faz com que todos estes dualismos, todas estas oposições enraizadas nos antagonismos sociais sejam inabaláveis, é o facto de disporem de outro suporte social, a pedagogia. Chego a pensar, e a dizer, que o principal obstáculo ao conhecimento científico, pelo menos nas ciências sociais,  são os professores. Para ensinarem eles têm necessidade (eu sei, eu ensinei), de oposições simples. Então os dualismos são muito cómodos isto dá um plano com uma primeira parte X, uma segunda parte Y, e uma terceira parte eu próprio. Existe um certo número de falsos debates mortos e enterrados (interno/externo, qualitativo/quantitativo, etc.) que só existem porque os professores têm necessidade deles para sobreviver, porque lhes permite fazerem curricula e planos de cursos e dissertações. (...)" p.157

 

As interferências do senso comum

"As particularidades da sociologia têm muito a ver com a imagem social que dela constroem os profanos (e também muitos especialistas). Durkheim gostava de dizer que um dos maiores obstáculos à constituição de uma ciência da sociedade residia no facto de nestas matérias toda a gente se considerar detentora da ciência infusa (n.t."ciência natural nata") . Por exemplo, os jornalistas que nunca pensariam em discutir trabalhos de biologia ou de física ou mesmo em misturar-se num debate filosófico entre um físico e um matemático, não hesitam em dissertar sabiamente sobre o que chamam os "problemas da sociedade" e, a jfazer juízos sobre uma análise científica  do funcionamento da Universidade ou do mundo intelectual sem mesmo suspeitar das estratégias específicas dessa análise (por exemplo a questão das relações entre estruturas sociais e estruturas cognitivas) que, como em todas as ciências, são produto da história autónoma das discussões e da pesquisa científicas (penso por exemplo nesse jornalista que, quando apareceu a Noblesse d'Etat, me pedia, com toda a boa fé e, devo dizê-lo, com toda a gentileza, para falar, em três minutos, a favor das grandes escolas, frente ao presidente dos antigos do ENA, que falaria contra... e que não compreendia como é que eu poderia recusar isto)." (...)p.160

 

Expressões sinónimas ‑ dinheiro, financiamento, dinheiro, fundos, recursos, pesquisa, investigação, trabalho, trabalho de pesquisa, dinheiro.

"A existência de um corpo comum de instrumentos de reflexividade, dominados e utilizados por todos, seria um poderoso factor de autonomia ( a ausência de uma cultura epistemológica mínima explica porque é que os investigadores tão frequentemente constroem teorias da sua prática menos interessantes que a prática das suas teorias). Mas é preciso também evocar o problema do financiamento. Ao contrário de outras actividades intelectuais (particularmente a filosofia), a sociologia custa caro (e rende pouco...). É fácil deixar-se prender numa engrenagem do contrato que pede outro contrato (de que nunca se sabe exactamente se se destina a financiar as necessidades da pesquisa se as necessidades do investigador...). Era preciso elaborar uma política racional da gestão das relações com os patrões de fundos de investigação (sejam eles os governos, fundações ou patrões privados). Outro princípio é necessário incluir na concepção do programa de pesquisa as condições reais da sua realização. Um questionário muito lindo, um corpo de hipóteses magnífico, um programa de observação impecável que não incluem as condições práticas da sua realização são nulos e não conseguidos. Dito isto, esta forma de realismo científico não é ensinada, nem espontâneamente inscrita nos habitus da maior parte daqueles que enveredam pelas ciências sociais. Vejo centenas de projectos  de pesquisa impecáveis que conhecem uma morte súbita porque não integraram as condições sociais da possibilidade de um programa concebido in abstracto. Numa palavra, e de um modo geral, é preciso aprender a evitar ser joguete das forças sociais na prática da sociologia."(...) p. 159

 

Universais da Comunicação

"Não existem, mesmo que o afirme Habermas, universais transhistóricos da comunicação; mas existem, de certeza, formas de organização social da comunicação que são de natureza a favorecer a produção do universal. Não se pode contar apenas com a predicação moral para excluir da sociologia a comunicação "sistematicamente distorcida". Apenas uma Realpolitik da razão científica pode contribuir para transformar as estruturas da comunicação, contribuindo para mudar ao mesmo tempo os modos de funcionamento dos universos onde a ciência é produzida e as disposições dos agentes que rivalizam no seio destes universos, daí que a instituição que mais contribui para os configurar seja a Universidade."(...) p.162

 

As interferências dos Poderes na Ciência

"Uma ciência emancipada só é possível se forem reunidas as condições sociais e políticas que a podem realizar. Isso requer, por exemplo, que se faça tudo para acabar com os efeitos de poder (dominação) que distorcem a competição científica, como a eliminação de alguns daqueles que são dignos de entrar no jogo (através da recusa de pedidos legítimos de bolsas ou de subvenções para investigação, formas brutais de censura mas que se exercem no quotidiano); ou como a censura que exerce a bemposta academia obrigando os espíritos mais inovadores a dispensar uma boa parte do seu tempo a fornecer provas completas, conformes aos cânones positivistas do momento, de cada uma das suas propostas, impedindo-os assim de produzirem uma quantidade de novas propostas cuja validação poderia ser deixada a outros. Como mostrei em Homo academicus, é sobretudo através do controlo do tempo que se exerce o poder académico."(...) p.164

 

O lirismo dos adolescentes (que os intelectuais acicatam)

"Evidentemente não é muito agradável desencantar os adolescentes, especialmente porque há coisas muito sinceras e profundas na sua revolta, como a vontade de se voltar contra a ordem estabelecida, contra a resignação dos adultos submetidos e demissionários, contra a hipocrisia universitária e todo um conjunto de coisas que eles conhecem muito bem porque não estão desencantados, cínicos, e porque eles não passaram pelo volte-face por que a maior parte das pessoas da minha geração, pelo menos em França, passou. Pode ser que, para ser um bom sociólogo, seja preciso reunir disposições associadas à juventude, como uma certa força de rutura, de revolta, de "inocência" social,  e outras mais normalmente ligadas ao envelhecimento como o realismo, a capacidade de enfrentar as realidades rugosas e deprimentes do mundo social...

É verdade que a sociologia exerce um efeito desencantador, mas o realismo científico e político que ela implica e reforça evita que se lute onde não existe liberdade ‑ o que frequentemente é um alibi da má fé ‑ de modo a ocupar plenamente os lugares de verdadeira responsabilidade. Se é verdade que a sociologia, e talvez mais particularmente aquela que pratico, possa desencorajar o sociologismo como submissão às leis de ferro da sociedade (e isso mesmo que a sua intenção seja exactamente oposta) penso que a alternativa que Marx estabelecia entre o utopismo e o sociologismo é bastante enganosa existe lugar, entre a resignação sociologista e o voluntarismo utopista, para um utopismo racional, isto é, uma utilização politicamente consciente e racional dos limites de liberdade oferecidos pelo conhecimento das leis sociais e especificamente das suas condições históricas de validade. A tarefa política da ciência é a de se virar tanto contra o voluntarismo irresponsável como contra o cientismo fatalista, trabalhando para definir um utopismo racional utilizando o conhecimento do provável para fazer prever o possível."(...) p.169

 

O Campo Político

Ao longo da última década, o campo político fechou-se cada vez mais sobre si próprio, as suas rivalidades internas, os seus jogos e disputas particulares. Os responsáveis políticos são prisioneiros de um ambiente tranquilizador de tecnocratas diligentes que ignoram quase tudo acerca da existência normal dos seus concidadãos, e que ignoram sobretudo a extensão da sua própria ignorância. Eles governam fiando-se na magia das sondagens de opinião, essa tecnologia pseudo-científica de demagogia racional que só lhes pode oferecer respostas extorquidas às questões impostas que os próprios indivíduos inquiridos não se põem, pelo menos de certa maneira, até que estas lhes apareçam à frente. Foi reagindo contra isto que me propus levar a cabo uma pesquisa exploratória sobre o sofrimento, sobre a miséria, a doença ou o ressentimento social que suporta as diferentes formas não institucionalizadas de protesto que recentemente se manifestaram (as dos estudantes de liceu, dos enfermeiros, dos professores, etc.) e das tensões que inspiram a "política privada" das discriminações e das recriminações quotidianas."(...) p. 173

 

Histórias de vida e linearidade (diegética) discursiva

"Vi aí, muito claramente, até que ponto as histórias de vida lineares, com que muitas vezes se contentam os etnólogos e os sociólogos, são artificiais e as pesquisas aparentemente mais informais de Virgínia Woolf, de Faulkner, de Joyce ou de Claude Simon me parecem hoje bastante mais "realistas" (se a palavra faz sentido), mais verdadeiras antropologicamente, mais próximas da verdade da experiência temporal, que os discursos lineares a que fomos habituados pela leitura dos romances tradicionais."(...)p.179

 

Os usos da Sociologia

"Infelizmente, podem sempre dar-se duas aplicações diferentes às análises  sociológicas  do mundo social e, especialmente, do mundo intelectual as aplicações que podemos chamar clínicas, tais como a que há instantes evocava ao falar da socianálise, envolvendo a procura, nas descobertas científicas, dos instrumentos para uma compreensão de si sem condescendências; e as aplicações que se podem dizer cínicas, e que consistem na procura, dentro da análise dos mecanismos sociais, dos instrumentos para o "sucesso" no mundo social (que foi o que fizeram certos leitores de La Distinction, ao tratarem o livro como um manual de "savoir-vivre") ou para orientarem as suas estratégias no mundo intelectual. É natural que me esforçe constantemente para  encorajar as leituras clínicas. Mas é certo que a lógica das lutas intelectuais ou políticas puxa para a utilização cínica, e sobretudo para o uso polémico da sociologia, tratada como um instrumento particularmente poderoso de luta simbólica, mais do que para a utilização clínica que oferece um meio para conhecer e compreender os outros (e a si mesmo)."(...) p.183

 

O bom professor de Sociologia

"O sociólogo que procura transmitir um habitus científico parece-se mais com um treinador desportivo de alto nível que com um professor da Sorbonne. Fala pouco por princípios e por preceitos gerais ‑ é claro que pode enunciá-los, como o fiz em Le Métier de Sociologue, mas sabendo que não se pode ficar por aí (não há nada pior, num certo sentido, que a epistemologia, quando ela se torna um tema de dissertação e um substituto da investigação). O professor procede por indicações práticas,  muito parecido nisso com o treinador que mima um movimento ("no vosso lugar eu faria desta maneira..."), ou por "correcções" trazidas à prática durante a sua consecução, e concebidas dentro do próprio espírito da prática ("eu não colocaria essa questão, pelo menos dessa forma...")."p.194-5

 

Provas, dados e metodologias

"Mais precisamente, é apenas em função de um corpo de hipóteses derivado de um conjunto de pressuposições teóricas que qualquer dado empírico pode funcionar como prova ou, como dizem os Anglo-Saxões, como evidence. Ora, muitas vezes procede-se como se aquilo que pode ser reivindicado como evidence fosse evidente. Isto em função de uma rotina cultural muitas vezes imposta e inculcada pela educação (os famosos cursos de "metodologia" das universidades americanas). O fetichismo da evidência conduz à rejeição de trabalhos empíricos que não aceitam como evidente a mesma definição da evidência cada investigador concede o estatuto de "dados", data, apenas a uma pequena fracção dos dados, não como deveria ser, àquela que é chamada a existir cientificamente pela sua problematicidade (o que é normalíssimo), mas sim à que é validada e garantida pela tradição pedagógica na qual o investigador se situa, e apenas a essa."(...) p.197

"E toma-se como uma rutura escandalosa com o monoteísmo metodológico o facto de se combinar a análise do discurso com a análise etnográfica! Era preciso levar a cabo a mesma análise , isto é, analisar as técnicas de análise ‑ a análise multivariada, a análise de regressão, a path analysis, a network analysis, a factor analysis.  Também aqui o monoteísmo é rei. Isto, decerto, porque dá uma aparência de fundamento metodológico à arrogância da ignorância a sociologia mais elementar da sociologia ensina que, com bastante frequência, as condenações metodológicas são uma maneira de fazer da necessidade virtude, de afectar e ignorar (num sentido activo) aquilo que simplesmente se ignora."(...)p.198

"Em poucas palavras, a investigação é algo de demasiado sério e difícil que que nos possamos dar ao luxo de confundir a rigidez, que é o contrário da inteligência e da invenção, com o rigor, e privarmo-nos deste ou daquele recurso que pode oferecer o conjunto das tradições intelectuais da disciplina ‑ e das disciplinas vizinhas, a etnologia, a economia, a história. Teria vontade de dizer "é interdito interditar", ou, cuidado com os cães de guarda metodológicos. É claro que a liberdade extrema que prego, e que me parece de bom senso, tem por contrapartida uma extrema vigilância sobre as condições de utilização das técnicas, da sua adequação ao problema colocado e às condições da sua execução."(...) p. 199

 

Maneiras de trabalhar ‑ análise das relações

"Uma das dificuldades da análise relacional é que, a maior parte das vezes, só se podem conhecer os espaços sociais sob a forma de distribuições de propriedades entre os indivíduos. Porque a informação acessível está relacionada com os indivíduos. Assim, para conhecer o sub-campo do poder económico, e as condições económicas e sociais da sua reprodução, é preciso interrogar os duzentos patrões franceses mais importantes.  Mas é preciso a todo o custo evitar a regressão no sentido da "realidade" das unidades sociais pré-construidas. Para isso, sugiro-vos o recurso a esse instrumento muito simples e cómodo de construção do objecto que é a tabela dos traços pertinentes de um conjunto de agentes ou instituições ; tratando-se por exemplo de analisar diferentes desportos de combate (luta, judo, aikido, etc.) ou diferentes estabelecimentos de ensino superior, ou diferentes jornais parisienses, eu inscreveria cada uma das instituições em cada linha e abriria uma nova coluna cada vez que descobrisse uma propriedade necessária para caracterizar uma das instituições, o que me obrigaria a interrogar todas as outras sobre a presença ou ausência dessa propriedade. Isto na fase puramente indutiva da recolha. Depois é preciso fazer desaparecer os registos dobrados e juntar as colunas consagradas aos traços estruturalmente ou funcionalmente equivalentes, de modo a reter todos os traços ‑ e apenas esses ‑ que são capazes de discriminar com maior ou menor força as diferentes instituições e são por isso mais pertinentes. Este instrumento tão simples tem a virtude de obrigar a pensar em termos de relação, podendo ser as unidades sociais consideradas e as suas propriedades caracterizadas em termos de presença ou ausência (sim/não)."(...) p.202

"O raciocínio analógico, que se apoia na intuição racional das homologias (ela própria fundada sobre o conhecimento das leis invariantes dos campos), é um instrumento formidável de construção do objecto é ele que permite a imersão completa  na particularidade do caso estudado sem nele se afundar, como o faz a ideografia empirista, e realizar a intenção de generalização, que é a própria ciência, não pela aplicação de grandes construções formais e vazias, mas por via dessa maneira particular de pensar o caso particular que consiste em pensá-lo exactamente como tal. Este modo de pensar realiza-se logicamente com recurso aos método comparativo, que permite pensar em termos relacionais um caso particular constituido em caso particular do possível, com o apoio das homologias estruturais entre campos diferentes (o campo do poder universitário e o campo do poder religioso, através da homologia das relações professor/intelectual e padre/teólogo) ou entre estados diferentes do mesmo campo (o campo religioso na Idade Média e hoje)."(...) p.205

 

Pensar e construir o Objecto Científico

"Mas construir um objecto científico é, primeiro e antes de tudo, cortar com o senso comum, isto é, com as representações partilhadas por todos, sejam elas os lugares comuns da existência normal ou representações oficiais, frequentemente inscritas nas instituições, por isso tanto na objectividade das organizações sociais como nos cérebros. O pré-construido está por todo o lado. O sociólogo é literalmente assediado pelo pré-construido, como toda a gente. Ele tem que conhecer um objecto, o mundo social, do qual ele é um produto , de modo que os problemas que ele lhe põe, os conceitos ‑ e em particular as noções classificatórias  que ele emprega para o conhecer, noções comuns como os nomes das profissões, noções sábias como as que veicula a tradição da disciplina ‑ têm todas as hipóteses de ser o produto desse mesmo objecto. O que contribui para lhes conferir uma evidência ‑ a que resulta da coincidência entre as estruturas objectivas e as estruturas subjectivas ‑ que as põe ao abrigo da problematização."(...)p. 207

"Uma prática científica que se esquece de se colocar a si própria em questão não sabe, a bem dizer, aquilo que anda a fazer.(...)p.208

"Grande parte dos objectos reconhecidos pela ciência oficial, títulos de trabalhos, são apenas problemas sociais que entraram clandestinamente na sociologia, pobreza, delinquência, juventude, educação, lazer, desporto, etc, e que, como concluiria uma análise da evolução ao longo do tempo das grandes divisões realistas da sociologia, pelo modo como elas se exprimem  nas rúbricas nas grandes revistas ou nas nomeações de grupos de trabalho nos congressos mundiais da disciplina, variam consoante o nível das flutuações da consciência social do momento. Esta é uma das mediações através da qual o mundo social constrói a sua própria representação, servindo-se para tal da sociologia e do sociólogo. Deixa em estado irreflectido o seu próprio pensamento é, para um sociólogo mais que para qualquer outro pensador, sujeitar-se a ser apenas o instrumento daquilo que pretende pensar."(...) 209

"pode pensar-se nos problemas da família, do divórcio, da delinquência, da droga, do trabalho feminino, etc. Em todos os casos, descobre-se que o problema que o positivismo normal (que é o primeiro movimento de todo o investigador) aceita como natural, foi socialmente produzido, no seio e através de um trabalho colectivo de construção da realidade social;  que foi preciso que houvessem reuniões, comissões, associações, manifestações, petições, comités, ligas de defesa, movimentos, pedidos, deliberações, votos, programas, tomadas de posição, projectos, resoluções, etc, para o que era e poderia ter continuado a ser um problema privado, particular, singular, se torne um problema social, um problema público, do qual se pode falar publicamente ‑ pense-se no aborto ou na sexualidade ‑ ou mesmo um problema oficial, sendo objecto de tomadas de posição oficiais, seja de leis ou decretos.(...) A imposição da problemática a que se sujeita o investigador ‑ como todo o agente social ‑ e de que ele se faz amplificador sempre que aborda questões da actualidade sem as submeter a exame ‑ incluindo-as, por exemplo, nos seus questionários ‑ é  no entanto muito provável que os problemas que são taken for granted num universo social são aqueles que têm mais hipóteses de receber os grants (garantias, recursos), materiais ou simbólicos, de serem, como se diz, bem vistos, pelos administradores científicos e pelas administrações (é por exemplo o que faz com que as sondagens, essa ciência sem savant, sejam sempre aprovadas por aqueles que têm os meios para a encomendarem, e que por isso se mostram mais críticos da sociologia quando esta corta com as suas encomendas ou as suas ordens.)"(...)p. 211

"Sabe-se que nas ciências sociais as ruturas epistemológicas são frequentemente ruturas sociais, cortes com as crenças fundamentais de um grupo e, por vezes, com as crenças fundamentais de um corpo de profissionais, com um corpo de certezas partilhadas que funda a communis doctorum opinio. Praticar a dúvida radical em sociologia é um pouco manter-se fora da lei."(...) p.211

 

A Linguagem

A linguagem coloca um problema particularmente dramático ao sociólogo. Ela é de facto um imenso depósito de pré-construções naturalizadas, por isso ignoradas enquanto tal, que funcionam como instrumentos inconscientes de construção. Podia agarrar no exemplo da taxinomias profissionais...(...) p.212

 

Excessos de zelo

"Tomados como eles se dão, os dados ‑ os famosos dados dos sociólogos positivistas ‑ são-nos dados sem problemas. Tudo anda por si. Abrem-se as portas, e as bocas também. Que grupo recusaria o registo sacralizante do historiógrafo? O inquérito sobre os bispos ou sobre os patrões que aceita (tacitamente) a problemática episcopal ou patronal recebe  o apoio do secretariado do episcopado ou do CNPF (n.t. Confederação  do Patronato Francês) e os bispos e os patrões que se apressam a vir comentar os resultados não se esquecem de oferecer um brevet de objectividade ao sociólogo que soube dar uma realidade objectiva ‑ pública ‑ à sua representação subjectiva do seu próprio ser social. Em resumo, desde que fiquemos pela ordem da aparência socialmente constituida, temos pelo nosso lado e connosco, todas as aparências, e mesmo as aparências de cientificidade. Pelo contrário, logo que decidamos trabalhar sobre um verdadeiro objecto construido, tudo se torna difícil o progresso "teórico" engendra um excesso de dificuldades "metodológicas". Os "metodólogos" não terão qualquer problema em encontrar os erros nas operações que é preciso realizar para apreender o objecto construido. (A metodologia, é como a ortografia, de que se dizia "É a ciência dos burros." É um recenseamento de erros de que se pode dizer que é preciso ser estúpido para os cometer. Para ser sincero, devo dizer que, entre as falácias recenseadas, há algumas que não seria capaz de encontrar sozinho. Mas, na maior parte das vezes, são os erros triviais que fazem a felicidade dos professores. Os sacerdócios, como dizia Nietsche, vivem do pecado...)"(...) p.214

 

Para uma sociologia científica

"Entre os obstáculos ao desenvolvimento de uma sociologia científica, um dos piores é o facto das verdadeiras descobertas envolverem os maiores custos e os menores rendimentos, não apenas nos mercados normais da existência social mas também no mercado universitário, de onde seria de esperar uma maior autonomia. Como tentei mostrar, acerca dos custos e benefícios científicos e sociais das noções de profissão e campo, para fazer ciência é frequentemente preciso não ligar às aparências de cientificidade, contradizer as próprias normas habituais e desconfiar dos critérios normais do rigor científico (poder-se-ìa examinar, deste ponto de vista, os respectivos estatutos da sociologia e da economia). As aparências são sempre para a aparência. Frequentemente, na verdadeira ciência, as aparências iludem e, para fazer avançar a ciência, é preciso assumir o risco de não ter todos os sinais exteriores de cientificidade (de que se esquece serem muito fáceis de simular). Entre outras razões porque os erros, para os pouco-hábeis que se ficam pelos cânones aparentes da "metodologia" elementar, encontram-nos com a  tranquilidade positivista  que os leva a percebê-los como "erros", e como efeitos de ignorância as escolhas metodológicas fundadas na recusa das facilidades da "metodologia".(...)p.215

 

As pressões a que o sociólogo se sujeita

"Daí essa espécie de double bind(paradoxo comunicacional) a que todo o sociólogo digno desse nome está constantemente exposto sem os instrumentos do pensamento que ele vai buscar à sua tradição de eruditos, ele não é nada, apenas um amador, um autodidacta, um sociólogo espontâneo ‑ sem ser o mais bem colocado, tão evidentes são, frequentemente, os limites da sua experiência social; mas estes instrumentos fazem-no permanentemente correr um perigo de erro  e o risco de substituir a doxa naive do senso comum pela doxa do senso comum mais erudito, que oferece sob o nome de ciência uma simples transcrição do discurso do senso comum.(...) p.217

"O que eu aí digo do efeito de teoria que a teoria marxista das classes exerceu, e cuja "consciência de classe" medida empiricamente é por esse lado um produto, isso é apenas um caso particular de um fenómeno mais geral a existência de uma ciência social, e de práticas sociais que se reclamam dessa ciência, como as sondagens de opinião, os conselhos de comunicação, , a publicidade, etc, mas também a pedagogia e, cada vez mais, a acção dos homens políticos e dos altos funcionários, dos homens de negócios ou dos jornalistas, etc, faz com que existam cada vez mais agentes, no próprio seio do mundo social que envolvem saberes superiores, senão científicos,  na sua prática, e sobretudo no seu trabalho de produção de representações do mundo social. De modo que, cada vez mais, a ciência corre o risco de registar, sem o saber, produtos práticos que se reclamam da ciência.

Enfim, mais subtilmente, a submissão aos hábitos de pensar, mesmo aqueles que, noutras circunstâncias possam exercer um formidável efeito de rutura, podem também conduzir a formas inesperadas de ingenuidade.  E não hesitaria dizer que o marxismo, nos seus usos sociais mais comuns, constitui-se frequentemente como a forma por excelência do préconstruido erudito, precisamente por não levantar suspeitas.(...) p.220

"Tratando-se de pensar o mundo social, é sempre de ter em conta as dificuldades ou as ameaças. A força do préconstruido reside no facto de este se inscrever tanto nas coisas como nos cérebros, apresentando-se sob a objectivação da evidência, que passa despercebida porque vale por si só. A ruptura é de facto uma conversão do olhar e pode dizer-se  do ensino da pesquisa em sociologia que este deve primeiro "dar novos olhos", como por vezes dizem as filosofias iniciáticas. Trata-se de produzir senão um "homem novo", pelo menos um "novo olhar", um olho sociológico. E isso não é possível sem uma verdadeira conversão, uma metanoia, uma revolução mental, uma mudança de toda a visão do mundo social.(...)p.221

 

Uma objectivação participante

"(...)A objectivação participante, que é sem dúvida o cume da arte sociológica, só se realiza quando repousa sobre uma objectivação tão completa quanto possível do interesse em objectivar que está inscrito no acto da participação; e sobre uma suspensão desse interesse e das representações que induz." p.231