Réponses
Pour une Anthropologie
Reflexive
Pierre Bourdieu avec Loic
J.D. Wacquant
ed. SEUIL, Paris, 1992
Tradução de Eduardo Jorge
Esperança
p/
uso exclusivo na Un. Évora
Introdução (ao pensamento de Pierre
Bourdieu)
O trabalho produzido por
Pierre Bourdieu ao longo das últimas três décadas tem-se afirmado como um dos
corpus de teoria e de pesquisa sociológica mais imaginativos e férteis do
pós-guerra. Depois de uma longa fase de incubação, a sua influência cresceu rapidamente e espalhou-se continuamente pelas
disciplinas ‑ da antropologia e da sociologia da educação à História, à
linguística, ciências políticas, filosofia, estética e estudos literários ‑
países europeus do ocidente e do leste, Escandinávia, América Latina, Þsia e
Estados Unidos.
Devido ao seu profundo
desrespeito pelas fronteiras disciplinares, da variadíssima gama de
domínios especializados de pesquisa que
atravessa, (do estudo dos camponeses, da arte, desemprego, escola, direito, da
ciência e literatura à análise do parentesco, classes, religião, política,
desporto, linguagem, habitação, intelectuais e Estado), e pela sua diversidade
estilística ‑ da descrição etnográfica pormenorizada aos argumentos
teóricos e filosóficos mais abstractos passando pelos modelos estatísticos ‑
a obra de Bourdieu constitui um desafio às actuais divisões e modos de pensar
estabelecidos das ciências sociais.
Nota (inocente) do tradutor
É a força de síntese e o carácter altamente
didáctico destes textos o que me leva ao esforço de tradução e edição do mesmo.
Num espaço carente de ideias e conhecimento, tanto ao nível intelectual como
material, pela mais difusa panóplia de pressões e desinvestimento que hoje se
vive, espero que isto seja útil pelo menos para os alunos do curso de
sociologia da Universidade de Évora.
O que mais incomoda nesta
obra, é que ela se aplica com obstinação a transcender várias das antinomias
perénes que minam as ciências sociais por dentro por exemplo, o antagonismo
aparentemente inultrapassável entre os modos de conhecimento subjectivo e objectivo,
a separação da análise do simbólico e do material, enfim, o divórcio
persistente entre a teoria e a pesquisa empírica. Com isto, Pierre Bourdieu foi
levado a desfazer-se de outras duas dicotomias que têm recentemente aparecido à
frente da cena teórica, a da estrutura e do agente por um lado, e a da micro e
macro-análise por outro, elaborando um conjunto de conceitos e de abordagens
metodológicas capazes de dissolver
estas distinções. Surdo às sirenes da moda intelectual, P. Bourdieu não cessou
de afirmar a possibilidade de uma economia
unificada das práticas, e particularmente do poder simbólico, capaz de
soldar a abordagem fenomenológica e a estrutural num tipo de pesquisa
integrado, epistemologicamente coerente e de validade universal uma
antropologia no sentido kantiano do termo, mas que de distinto tem o facto de
englobar explicitamente as actividades de
análise de si própria.
No entanto,
paradoxalmente, este trabalho tão totalizante e sistemático ao mesmo tempo foi
frequentemente entendido, apreendido e assimilado aos bocados e às tiras. Se
alguns dos conceitos por ele forjados, como o de capital cultural, foram
grandemente utilizados e por vezes de modo bastante engenhoso, por
especialistas americanos, a economia e a lógica de conjunto da sua obra
continuam bastante incompreendidos. A espantosa diversidade de interpretações,
as críticas mutuamente exclusivas e as reacções contraditórias que esta obra
suscitou são testemunho disso, tal como a fragmentação e mutilação que
acompanhou a sua importação através do Atlântico. Em termos simples, a
assimilação do trabalho de Bourdieu na América tem-se organizado essencialmente
em volta de três centros principais, cada um marcado por um dos seus maiores
livros os especialistas da Educação concentram-se n'"A Reprodução
elementos para uma teoria do sistema de ensino"(ed. Vega, Lisboa 1979), os
antropólogos nas etnografias da Argélia e na exposição da teoria do Habitus e
do capital simbólico oferecidos em "Esquisse d'une theorie de la pratique,
enquanto que os sociólogos da Cultura, da estética e das classes sociais
trabalham "La Distinction. Critique sociale du jugement" que é o seu
ponto de referência. Cada grupo ignora os outros, e raros são os que
descobriram as ligações orgânicas, teóricas e empíricas que ligam as pesquisas de Bourdieu nestes e
noutros domínios. Acontece que apesar da vasta literatura secundária que
proliferou nos últimos anos em volta dos seus trabalhos, Bourdieu continua uma
espécie de enigma intelectual. O objectivo desta introdução é o de oferecer um
início de resposta, esboçando em grandes traços a estrutura da sua teoria do
conhecimento, das práticas e da sociedade.
_ guisa de prolegómeno ao
corpo principal do livro, proponho-me destacar de modo sumário os postulados
centrais que dão ao trabalho de Bourdieu a sua unidade e direcção de conjunto.
Na base de uma ontologia não cartesiana que se recusa a separar ou opôr objecto
e sujeito, intenção e causa, materialidade e representação simbólica, Bourdieu
esforça-se por transcender a redução mutilante da Sociologia seja a uma física
objectivista das estruturas materiais por um lado, seja a uma fenomenologia
construtivista das formas cognitivas por outro, por via de um estruturalismo
genético capaz de envolver uma na outra. Isto, propondo um método feito de modo
a colocar os problemas, e de um conjunto parcimonioso de utensílios e procedimentos
permitindo construir objectos e transferir o saber obtido num domínio de
investigação para outro.(...)
1. Para lá da antinomia entre
física social e fenomenologia social
Segundo Bourdieu, a
Sociologia tem por tarefa mostrar as estruturas mais profundamente enterradas
dos diversos mundos sociais que constituem o universo social, assim como os
mecanismos que tendem a assegurar a sua reprodução ou transformação. Este
universo tem por particularidade o facto das estruturas que o formam levarem,
se assim se pode dizer, uma vida dupla. Existem duas vezes, uma primeira na
"objectividade de primeira ordem" oferecida pela distribuição de
recursos materiais e dos meios de apropriação dos bens e dos valores
socialmente raros (dos tipos de capital na linguagem de Bourdieu) e uma segunda
vez na "objectividade de segunda ordem", sob a forma de esquemas
mentais e corporais que funcionam como matriz simbólica das actividades
práticas, condutas, pensamentos, sentimentos e juízos dos agentes sociais. Os
factos sociais são também objecto de conhecimentos na própria realidade, pois
os seres humanos dão sentido ao mundo que os faz. Uma ciência da sociedade deve
necessariamente por isso proceder a uma dupla leitura ou, para ser mais
preciso, deve ajustar uns óculos analíticos tridimensionais que acumulem as
virtudes epistémicas de cada uma das leituras evitando ainda assim os defeitos
das duas.
A primeira leitura trata a
sociedade como uma física social, enquanto estrutura objectiva, observada do
exterior, cujas articulações podem ser vistas materialmente, medidas,
cartografadas. A força deste ponto de vista objectivista ou estruturalista
(cujo paradigma é dado pelo Durkheim do "Suicídio" e que é
exemplificado, em França, quando Bourdieu apresenta o primeiro delineamento da
sua teoria, pela linguística saussuriana e pelo estruturalismo
levi-straussiano) está no facto de destruir a "ilusão de transparência do
mundo social". A ruptura com as percepções comuns permite expôr as
"relações definidas" no seio das quais homens e mulheres entram
necessariamente "de modo a produzirem a sua existência social"(Marx).
Com os utensílios da estatística, da descrição etnográfica ou da modelização
formal, o observador exterior pode reconstituir a "espécie de pauta não escrita segundo a qual se organizam
as acções dos agentes que crêem cada um improvisar a sua melodia"
(Bourdieu) e determinar as regularidades objectivas às quais obedecem.
O principal perigo do
ponto de vista objectivista é que , sem se encontrar um princípio de génese
destas regularidades, tende a deslizar do modelo para a realidade, a reificar
as estruturas que constrói, tratando-as como entidades autónomas dotadas da faculdade
de agir como agentes históricos. Incapaz de conceber as práticas a não ser pela
negativa, como simples execução do modelo construido pelo analista, o
objectivismo acaba por projectar no cérebro dos agentes uma visão (escolástica)
das suas práticas a que,
paradoxalmente, nunca poderia chegar a menos que tivesse à partida escamoteado
a experiência por que passaram os agentes. Assim, este ponto de
vista destrói uma parte da realidade a que pretende chegar, no próprio
movimento em que a tenta agarrar.
Levado ao seu limite, o objectivismo pode apenas produzir um ersatz do
sujeito e representar os indivíduos ou os grupos como suportes passivos de
forças que se articulam mecanicamente segundo uma lógica autónoma.
Para evitar cair nesta
armadilha reducionista, uma ciência da sociedade deve reconhecer que a visão e as interpretações dos agentes
são uma componente incontornável da realidade completa do mundo social. É certo
que a sociedade tem uma estrutura objectiva, mas não é menos verdade que ela
seja também feita, segundo as palavras de Schopenhauer, de "vontade e
representação". Os indivíduos têm um conhecimento prático do mundo e
investem esse conhecimento prático nas suas actividades quotidianas.
O ponto de vista
subjectivista ou "construtivista" (expresso sob uma forma paroxista
por Sartre em "L'µtre et le Néant" é defendido hoje pela
etnometodologia na sua variante culturalista e pela teoria da escolha racional
de tipo racionalista) liga-se a essa objectividade de segunda ordem. Ao
contrário do objectivismo estruturalista, o subjectivismo afirma que a
realidade social é uma "consecução contingente e continua" de actores
sociais competentes que constroem continuamente o seu mundo social através de
"práticas organizadas da vida quotidiana". (Garfinkel). Pelas lentes
dessa fenomenologia social, a sociedade aparece como produto das decisões, das
acções e actos de conhecimento de indivíduos conscientes aos quais o mundo é
dado como imediatamente familiar e significante. A sua vantagem reside no facto
de reconhecer aquilo que a contribuição
do saber quotidiano e a competência prática trazem à produção contínua da
sociedade; dá um lugar de honra ao
agente e ao "sistema socialmente aprovado de tipificações e de
pertinência" através do qual os indivíduos investem de sentido o seu
"mundo vivido", como diz Schutz.
Mas uma tal fenomenologia
da vida social sofre, segundo Bourdieu,
de pelo menos dois grandes males. Primeiro, concebendo as estruturas
sociais como simples agregação de estratégias e actos de classificação individuais,
este tipo de marginalismo social proíbe-se de dar razão à sua persistência tal
como à das configurações objectivas que estas estratégias perpetuam ou
desafiam. Para mais, não consegue explicar porquê e a partir de que princípio o
trabalho de produção da própria realidade é produzido.Se é bom lembrar, contra
certas perspectivas mecanicistas da acção, que os agentes sociais constroem a
realidade social, individualmente mas também colectivamente, é preciso não
esquecer, como alguns etnometodólogos e interaccionistas, que não foram os
agentes sociais que construiram as categorias que são aqui envolvidas neste
trabalho de construção (Bourdieu, 1989, p.47).
Uma ciência total da
sociedade deve libertar-se tanto do estruturalismo mecânico, que deixa os
agentes "de férias", como do individualismo teleológico, que não
oferece outro lugar aos indivíduos a não ser sob a forma truncada de um
"oversocialized cultural dope" ou sob a aparência de reencarnações
mais ou menos sofisticadas do homo ¤conomicus. Objectivismo e subjectivismo,
mecanismo e finalismo, necessidade estrutural e acção individual são todas
falsas antinomias; cada termo destes casais inimigos reforça os outros, e
contribuem todos para o obscurecimento da verdade antropológica e das práticas
humanas. Para ultrapassar estas dualidades, Bourdieu transforma as worlds
hypothesis destes dois paradigmas aparentemente antagónicos, em momentos de uma
forma de análise visando reconceber a realidade intrinsecamente dupla do mundo
social. A praxeologia social que daí
resulta envolve conjuntamente uma abordagem estruturalista e outra construtivista.
Num primeiro movimento, ela separa as representações do senso comum de modo a
construir as estruturas objectivas (espaço de posições), a distribuição dos recursos socialmente eficientes que
definem as pressões exteriores que têm peso nas interacções e nas
representações. Num segundo movimento, , esta praxeologia reintroduz a
experiência imediata dos agentes de modo a explicitar as categorias de
percepção e de apreciação (disposições)
que estruturam as suas acções a partir do interior e estruturam as suas
representações (tomadas de posição).
É preciso sublinhar que, se estes dois momentos da análise são ambos
necessários, nem por isso são equivalentes a prioridade epistemológica volta à
ruptura objectivista por relação à compreensão subjectivista. A aplicação do
primeiro princípio durkheimiano do "método sociológico", neste caso a
rejeição sistemática dos preconceitos, deve aparecer antes da análise da
apreensão prática do mundo do ponto de vista subjectivo. Isto porque o ponto de
vista dos agentes varia sistematicamente em função do ponto que eles ocupam no
espaço social objectivo (Bourdieu, 1984a, 1989e).
2. Luta de classificações e dialéctica das
estruturas mentais e das estruturas sociais
Uma verdadeira ciência da
prática humana não se pode contentar com a sobreposição de uma fenomenologia a
uma topologia social. Deve também revelar os esquemas perceptivos e avaliativos
em que se envolvem os agentes na sua vida quotidiana. De onde vêm estes
esquemas (definição da situação, tipificações, procedimentos interpretativos) e
qual a relação que eles mantêm com as estruturas externas à sociedade? É aqui
que encontramos a segunda hipótese fundadora na qual se escora a sociologia de
Bourdieu existe uma correspondência entre a estrutura social e as estruturas
mentais, entre as divisões objectivas do mundo social, particularmente entre
dominantes e dominados nos diferentes campos, e os princípios de visão e de
divisão que os agentes lhes aplicam. Aqui, reconhecer-se-à, uma reformulação e
uma generalização da ideia central, proposta em 1903 por Durkheim e Mauss
(1963) no seu estudo clássico sobre "Quelques formes primitives de
classification", segundo a qual os sistemas cognitivos em vigor nas
sociedades primitivas derivam dos seus sistemas sociais; as categorias do
entendimento que subjazem às representações colectivas organizam-se segundo a
estrutura social do grupo. Bourdieu leva esta tese durkheimiana do
"sociocentrismo" dos sistemas de pensamento por quatro direcções. Primeiramente,
argumenta que a correspondência entre estruturas cognitivas e estruturas
sociais que se observam nas comunidades pré-capitalistas existe também nas
sociedades avançadas onde a sua homologia é produzida particularmente pelo
funcionamento do sistema escolar. Em segundo lugar, onde a análise de Mauss e
Durkheim pecava por ausência de um mecanismo causal sólido na determinação
social das classificações, Bourdieu propõe que as divisões sociais e esquemas
mentais são estruturalmente homólogos porque estão geneticamente ligados,
resultando as segundas da incorporação das primeiras. A exposição repetida às
condições sociais definidas, imprime nos indivíduos um conjunto de disposições
duradoiras e transponíveis que são a interiorização da necessidade do seu
ambiente social, inscrevendo no interior do organismo a inércia estruturada e
as pressões da realidade externa. Se as estruturas da objectividade de segunda
ordem (o habitus) são a versão incorporada das estruturas de primeira ordem,
então a análise das estruturas objectivas encontra o seu prolongamento lógico
na análise das estruturas subjectivas, fazendo assim desaparecer a falsa
antinomia normalmente estabelecida entre a sociologia e a psicologia social
(Bourdieu e Saint Martin, 1982, p.47). Uma adequada ciência da sociedade deve,
por isso, agarrar tanto as regularidades objectivas e o processo de
interiorização da objectividade segundo o qual se constituem os princípios
transindividuais e inconscientes de divisão em que se envolvem os agentes nas
suas práticas.
Em terceiro lugar,
Bourdieu avança a ideia de que a correspondência entre estruturas sociais e
estruturas mentais preenche funções políticas. Os sistemas simbólicos não são
apenas instrumentos de conhecimento; são também instrumentos de domínio (das ideologias na terminologia de Marx e
das teodiceias na de Weber). Enquanto operadores de integração cognitiva, os
sistemas simbólicos promovem pela sua lógica a integração social de uma ordem
arbitrária "Observa-se a contribuição decisiva que trás à conservação da
ordem social (...) a orquestração das categorias de percepção do mundo social
que, estando ajustadas às divisões da ordem estabelecida (e, por isso, aos
interesses dos que dominam), e comuns a todos os espíritos estruturados
conformes a estas estruturas, se impõem
com todas as aparências da necessidade objectiva" (Bourdieu, 1979, p.549).
Os esquemas de classificação socialmente constituídos através dos quais
construimos activamente a sociedade, tendem a representar as estruturas de onde
saem como dados naturais e necessários, mais que como produtos historicamente
contingentes de uma dada relação de forças entre grupos (classes, etnias ou
sexos). Mas, se aceitarmos que os sistemas simbólicos são produtos sociais que
produzem o mundo, que não lhes chega reflectirem as relações sociais mas que
contribuem para a sua constituição, é então preciso admitir que se possa,
dentro de certos limites, transformar o mundo transformando a sua representação
(Bourdieu, 1980, 1981a).
Acontece ‑ é a
quarta ruptura que Bourdieu opera com a problemática durkheimiana ‑ que
os sistemas de classificação constituem
um contexto das lutas que opõem os indivíduos e os grupos nas
interacções rotineiras da vida quotidiana assim como nos combates individuais e
colectivos a que se expõem nos campos da política e da produção cultural
(Bourdieu e Boltanski, 1981, p.149). É assim que Bourdieu enriquece a análise
estrutural de Durkheim com uma sociologia genética e política da formação, da
selecção e imposição dos sistemas de classificação. As estruturas sociais e as
estruturas cognitivas estão recursiva e estruturalmente ligadas, e a
correspondência que entre elas existe oferece a mais sólida das garantias de
poder social. As classes e outros colectivos sociais antagonistas encontram-se
sempre envolvidos numa luta que visa impôr
a definição do mundo que é mais conforme aos seus interesses particulares.
A sociologia do conhecimento ou das formas culturais é eo ipso uma sociologia
política, isto é uma sociologia do poder simbólico. De facto, o conjunto da
obra de Bourdieu pode ser interpretado como uma antropologia materialista a partir da contribuição específica que as
diversas formas de violência simbólica trazem à reprodução e à transformação
das estruturas de poder.
3. Relacionismo metodológico
Contra todas as formas de
monismo metodológico que pretendem afirmar a prioridade ontológica da estrutura
ou do agente, do sistema ou do actor, do colectivo ou do individual, Bourdieu
proclama o primado das relações.
Para ele, tais alternativas dualistas reflectem uma percepção da realidade
social que é a do senso comum e da qual a sociologia se deve desligar. Essa
percepção está inscrita na própria linguagem que utilizamos e que é mais apta
para exprimir as coisas que as relações, os estados que os processos (Bourdieu,
1982a, p.35). Esta propensão da linguagem para favorecer a substância em
detrimento das relações encontra-se reforçada pela permanente concorrência que
os sociólogos encontram junto de outros especialistas da representação do mundo
social, e particularmente por parte dos políticos e das pessoas dos media que
estão intimamente ligados ao pensamento do senso comum. A oposição entre
individuo e sociedade, e a sua principal tradução na antinomia do
individualismo e do estruturalismo, é uma destas "proposições
endoxicas"(veneno interno) que afect a sociologia porque reactivam
constantemente as oposições políticas e sociais (Bourdieu, 1989f). As ciências
sociais não têm que escolher entre estes dois polos porque o que faz a realidade
social, tanto o habitus como a estrutura e a sua intersecção como história,
reside nas relações. Assim, Bourdieu coloca de costas voltadas o individualismo
metodológico e o holismo, tal como a sua falsa ultrapassagem no
"situacionismo metodológico". A perspectiva relacional que forma o
núcleo da sua visão sociológica não é uma novidade. É parte integrante de uma
longa tradição estruturalista polimorfa amadurecida nos anos do pós-guerra com
os trabalhos de Piaget, Jackobson, Lévi-Strauss e Braudel, e que com Merton se
poderia demostrar que vem desde Marx e Durkheim. Encontra-se a sua expressão
talvez mais sucinta e clara nos Grundrisse
de Karl Marx "A sociedade não é
composta por indivíduos, exprime sim a
soma das relações e ligações nas quais os indivíduos se inserem. " O
que é característico de Bourdieu é o rigor metodológico com o qual desenvolve
uma tal concepção, e que atesta particularmente o facto de que os seus dois
conceitos centrais, habitus e campo, designem os nós das relações. Um
campo é um conjunto de relações
objectivas históricas entre posições fundadas em certas formas de poder (ou de
capital), enquanto que o habitus
toma a forma de um conjunto de relações históricas "arquivadas"
dentro dos corpos individuais sob a forma de esquemas mentais e corporais de
percepção, de apreciação e de acção.
Tal como Philip Abrams,
Michael Mann e Charles Tilly, Bourdieu faz explodir a noção vaga de
"sociedade" que substitui pelas noções de campo e de espaço social.
Para ele, uma sociedade diferenciada não forma uma totalidade de uma só peça
integrada por funções sistémicas, uma cultura comum, com conflitos
intercruzados ou uma autoridade global, mas sim um conjunto de esferas de jogo
relativamente autónomas que não conseguiriam ser levadas a uma lógica societal
única, seja ela a do capitalismo, da modernidade ou da pós-modernidade. Como
nos Lebensordnungen de Weber, estas
"ordens de vida" económica, política, religiosa, estética e
intelectual nas quais se divisa a vida social, cada campo, no moderno
capitalismo, prescreve os seus valores particulares e possui os seus próprios
princípios de regulação. Estes princípios definem os limites de um espaço
socialmente estruturado no qual os agentes lutam em função da posição que
ocupam nesse espaço, seja para o mudar, seja para lhe conservar as fronteiras e
a configuração. Duas propriedades são essenciais a esta definição sucinta.
Primeiro, um campo é, tal como um campo magnético, um sistema estruturado de
forças objectivas, uma configuração relacional dotada de uma gravidade específica
que é capaz de impôr a todos os objectos e agentes que nela penetrem. Neste
prisma, todo o campo refracta as forças externas em função da sua estrutura
interna. E os efeitos engendrados dentro dos campos não são nem a pura soma das
acções anárquicas, nem o resultado integrado de um plano concertado é a
estrutura do jogo e não o simples efeito de agregação mecânica que está no
princípio da transcendência que revelam os casos de inversão das intenções. Um
campo é também um espaço de conflitos e de concorrência, analogia com o campo
de batalha sobre o qual os participantes rivalizam com o objectivo de
estabelecer um monopólio sobre a espécie específica de capital que aí é
eficiente a autoridade cultural no campo artístico , a autoridade científica no
campo científico, a autoridade sacerdotal no campo religioso, etc, e o poder de
decretar a hierarquia e as "taxas de conversão" entre as diversas
formas de autoridade no campo do poder.
Ao longo destas lutas, a
forma e as próprias divisões do campo tornam-se um elemento central na medida
em que a modificação da distribuição e do peso relativo das formas de capital
implicam a modificação da estrutura do campo.. O que confere a todo o campo um
dinamismo e uma maleabilidade históricas que escapam ao determinismo rígido do
estruturalismo clássico. Por exemplo, no seu estudo sobre a realização local da
política de habitação do Estado françês nos anos setenta, Bourdieu (1990b,p.89)
mostra que esse jogo não existe apenas no "jogo burocrático", isto é,
na lógica organizacional particularmente rígida das burocracias de Estado que
não permitem uma margem considerável de incerteza e de interacções
estratégicas. E insistir sobre o facto de todo o campo se apresentar como uma
estrutura de probabilidades, de recompensas, de ganhos, de lucros ou de sanções
‑ que implicam sempre um certo grau de indeterminação.
Como é possível que a vida
social seja tão regular e previsível? Se as estruturas externas não pressionam
mecanicamente a acção, o que é que lhe dá a forma (pattern)? Parte da resposta é-nos fornecida pelo
conceito de habitus. O habitus é um
mecanismo estruturante que opera no interior dos agentes, apesar de não ser
propriamente nem estritamente individual nem por si só completamente
determinante das condutas. O habitus é,
segundo Bourdieu, o princípio gerador das estratégias que permitem aos agentes
enfrentar situações muito diversas. Produto da interiorização das estruturas
externas, o habitus reage às solicitações do campo de um modo mais ou menos
coerente e sistemático. Enquanto colectivo individualizado pela distorção da
incorporação ou individuo biológico "colectivisado" pela
socialização, o habitus é um conceito próximo da "intenção de acção"
de Searle ou da "estrutura profunda" de Chomsky, apesar de neste
caso, longe de ser um invariante antropológico, esta estrutura profunda ser uma
matriz generativa historicamente constituída, institucionalmente enraizada e,
por isso, socialmente variavel (por exemplo Bourdieu 1987d). O habitus é um operador de racionalidade, mas
de uma racionalidade prática, imanente a um sistema histórico de relações
sociais e por isso transcendente ao individuo. As estratégias que
"gera" são sistemáticas e, no entanto ad hoc na medida em que elas
são "despoletadas" pelo encontro com um campo particular. O habitus é
criador, inventivo, mas dentro dos limites das suas estruturas.
Os dois conceitos de
habitus e de campo são igualmente relacionais no sentido em que não funcionam
completamente a não ser na sua relação de um com o outro. Um campo não é simplesmente uma estrutura
morta, um sistema de "lugares vazios" como no marxismo althusseriano,
mas um espaço de jogo que só existe enquanto tal na medida em que existem também jogadores que participam, que
acreditam nas recompensas que o jogo oferece e as procuram activamente.
Acontece que uma teoria adequada do campo implica por necessidade uma teoria
dos agentes sociais. Só existe acção e história, isto é, acções tendentes à
conservação ou à transformação das estruturas porque existem agentes, mas estes
só agem eficazmente desde que não sejam reduzidos àquilo que normalmente se
coloca na noção de individuo e, enquanto organismos socializados, dotados de um
conjunto de disposições que implicam tanto a propensão e a capacidade para
entrarem no jogo e jogarem (Bourdieu, 1989a, p.59). Inversamente, a teoria do
habitus continua incompleta se a estrutura não der lugar à improvisação
organizada dos agentes. Para compreender exactamente em que consiste essa arte
social da improvisação, convém observar a ontologia social de Bourdieu.
4. A lógica fluida do sentido
prático
A filosofia da acção de
Pierre Bourdieu é monista quando recusa estabelecer uma demarcação traçada
entre o interno e o externo, o consciente e o inconsciente, o corporal e o
discursivo. Ela procura agarrar a intencionalidade sem intenção, o domínio
pré-reflexivo e infraconsciente do seu mundo social que os agentes adquirem
pela sua imersão duradoura no seu interior (é por essa razão que o desporto tem
tanto interesse teórico para Bourdieu, 1988f)
e que define a prática social propriamente humana. Buscando
selectivamente nas fenomenologias de Husserl, Heidegger e Merleau-Ponty, tal
como na última filosofia de Wittgenstein, Bourdieu rejeita as dualidades ‑
entre corpo e espírito, compreensão e sensibilidade, sujeito e objecto, o em si
e por si ‑ da ontologia cartesiana.
Bourdieu apoia-se
particularmente na ideia, cara a Merleau-Ponty, da corporeidade intrínseca do contacto pré-objectivo entre sujeito e
objecto de modo a restituir o corpo como fonte de uma intensionalidade
prática, como princípio de uma significação intersubjectiva enraizada ao nível
pré-objectivo da experiência. Esta sociologia estrutural incorporando uma
fenomenologia da "unidade ante-predicativa do mundo e da nossa vida",
como diz Merleau-Ponty, trata o corpo socializado não como um objecto mas como
o depositário de uma capacidade geradora e criadora a compreender, como o
suporte activo de uma forma de "saber cinético" dotado de um poder
estruturante. A relação entre o agente social e o mundo não é a relação entre
um sujeito (ou uma consciência) e um objecto, mas uma relação de
"cumplicidade ontológica" ‑ ou de "possessão" mutua
(Bourdieu, 1989a p.10) ‑ entre o habitus, como princípio socialmente
constituido de percepção e de apreciação, e o mundo que o determina. O sentido prático exprime o sentido social
que nos orienta mesmo antes de colocarmos os
próprios objectos. Este sentido constitui o mundo como significante
antecipando espontâneamente as suas tendências imanentes, exactamente como o
jogador dotado de uma grande visão do jogo que, tomado no fogo da acção, tem a
intuição instantânea dos movimentos dos adversários e dos seus parceiros, age e
reage de modo "inspirado" sem o benefício do recuo reflexivo e da
razão calculadora. O sentido prático pré-conhece; lê no estado presente os
futuros estados possíveis de que o campo é portador. Dado que o passado o
presente e o futuro se sobrepõem e interpenetram mutuamente no habitus. Pode-se
compreender o habitus como uma "situação sedimentada" virtual,
alojada na profundidade do corpo, que espera ser reactivada.
Os conceitos de habitus e
de campo permitem a Bourdieu desenvencilhar-se do falso problema da
espontâneidade pessoal e da pressão social, da liberdade e da necessidade, da
escolha e da obrigação, e de separar num mesmo movimento as alternativas comuns
do individual e da estrutura, da micro (Blumer, Coleman) e da macro-análise
(Blau), que acartam com elas uma ontologia social polarizada e dualista.
"Não existe qualquer necessidade de escolher entre estrutura e agente,
entre campo, que constroi a significação e o valor das propriedades
objectivadas nas coisas ou incorporadas nas pessoas, e os agentes, que jogam as
suas propriedades no espaço de jogo assim definido"(Bourdieu, 1989a,
p.448).
Mesmo que se afaste do
debate entre a significação e o macrofuncionalismo, Bourdieu rejeita a
alternativa da submissão e da resistência que tradicionalmente tem definido a
questão das culturas dominadas e que, a seus olhos, nos impede de pensar
adequadamente as práticas e as situações que frequentemente se definem pela sua
natureza intrínseca dupla e tripla. Mas Bourdieu não se contenta em revelar a
colaboração que os dominados trazem à sua própria exclusão; ele propõe uma
análise do seu conluio que evita o psicologismo ingénuo ou o essencialismo da
"servidão voluntária" de La Boétie. Se é bom lembrar que os dominados
contribuem sempre para a sua dominação, é necessário também lembrar que as
disposições que os inclinam para essa cumplicidade são um efeito incorporado
dessa dominação/poder (Bourdieu, 1989a, p.12). A submissão dos trabalhadores,
das mulheres e das minorias raciais não é, na maioria dos casos, uma concessão
deliberada e consciente à força bruta dos dirigentes, dos homens ou dos
Brancos. Ela encontra a sua génese na correspondência inconsciente entre os
seus habitus e o campo no qual eles operam. Ela aloja-se no mais profundo do
corpo socializado; para finalizar, ela é a expressão da "somatisação das
relações sociais de dominação" (Bourdieu, 1990j).
Deveria assim parecer que
aqueles que lêem a economia das praticas de Bourdieu como uma teoria geral do
determinismo económico (por exemplo Jenkins, 1982; Honneth, 1986; Caillé, 1987;
Miller, 1989) ou pior ainda, como uma variante da teoria da escolha racional,
são vítimas de um duplo erro de interpretação. Primeiro erro eles injectam no
conceito de estratégia as ideias de intenção e de visualização consciente,
transformando assim uma acção congruente com certos interesses numa conduta
racionalmente organizada e deliberadamente dirigida para objectivos claramente
precisos. Segundo erro eles limitam a variabilidade histórica da noção de
interesse, elevando-a a uma propensão invariante que persegue o rendimento
económico ou material. Esta dupla redução, intencionalista e utilitarista,
obscurece o movimento analítico paradoxal que Bourdieu efectua por meio da
tríade conceptual habitus/capital/campo; que consiste justamente em ampliar a esfera do interesse, reduzindo a
da utilidade e a da consciência.
Bourdieu não para de fazer
lembrar que a sua economia das práticas não é nem intencionalista nem
utilitarista. Pelo que vimos, Bourdieu
opõe-se ferozmente ao finalismo das filosofias da consciência que situam a mola
da acção nas escolhas voluntaristas dos indivíduos. Com a noção de estratégia,
ele faz referência não à procura intencional e planificada do avanço com
objectivos calculados, mas à disposição activa de linhas objectivamente
orientadas que obedecem a regularidades e formam configurações coerentes e
socialmente inteligíveis apesar de não seguirem qualquer regra consciente ou
visem objectivos premeditados como tal colocados por um estratega. A utilização
que faz do conceito de interesse ‑ noção que substitui cada vez mais pela
de illusio e, mais recentemente pela
de libido ‑ responde a dois
objectivos. Primeiro, acabar com a visão encantada da acção social que se
agarra à fronteira artificial entre acção instrumental e acção expressiva ou
normativa, e que por isso recusa conhecer as
diversas formas de rendimentos não materiais que orientam os agentes que
"parecem ser" desinteressados. Segundo, sugerir a ideia de que as
pessoas são arrancadas de um estado de indiferença pelos estimulos enviados por
certos campos ‑ e não por outros. Uma vez que cada campo preenche o
espaço vazio do interesse com uma motivação diferente. As pessoas não estão
"pré-ocupadas" por certos resultados futuros inscritos no presente
que encontram a menos que os seus habitus os disponham a percebê-los e
procurá-los. E os futuros em função dos quais eles se orientam podem ser
totalmente desinteressados no sentido comum do termo, tal como se observa no
campo da produção cultural, este "mundo económico às avessas"
(Bourdieu, 1983,1985d) no qual as acções que visam o lucro material são
sistematicamente desvalorizadas e negativamente sancionadas.
5. Contra o teoricismo e o
metodologismo uma ciência social total
Desta concepção racional e
anticartesiana do seu objecto, Bourdieu retira uma sociologia que deve ser uma
ciência total. Esta deve construir "factos sociais totais" (Mauss),
capazes de restituir a unidade fundamental da prática humana através das
fronteiras mutilantes das disciplinas, dos domínios empíricos e das técnicas de
observação e de análise. É a razão pela qual Bourdieu se opõe à especialização
científica prematura e ao "trabalho em migalhas" que isso implica o
habitus dota a prática de uma sistematicidade e de interrelações internas que
não aguentam estas divisões;as estruturas sociais que lhe correspondem
perpetuam-se ou transformam-se em indivisão, em todas as suas dimensões
simultaneamente. Isto é particularmente visível quando se estudam as
estratégias de reprodução ou de conversão que os grupos desenvolvem de modo a
manter ou melhorar a sua posição numa estrutura social em mudança (Bourdieu e
Boltanski, 1977; Bourdieu, 1974a,1978b... pp99-168). Estas estratégias formam
um sistema sui generis que não pode
ser concebido enquanto tal se nos esquecermos de colocar metodicamente em
relação os domínios da vida social que são normalmente tratados por ciências
separadas e segundo metodologias diferentes. No caso da classe dominante cujo
estudo é detalhado na La Noblesse d'État (Bourdieu,
1989a,pp373-420), estas estratégias dizem respeito à fecundidade, educação,
investimento económico e transmissão patrimonial, a gestão do capital social
(cujas estratégias matrimoniais são elemento central) e, enfim, as estratégias
da sociodiceia que visam legitimar o poder e a forma de capital sobre a qual se
apoia.
Compreende-se assim porque
é que Bourdieu desconfia das duas formas de envolvimento opostas, e ainda assim
complementares, que ameaçam hoje as ciências sociais o metodologismo e o
teoricismo. O metodologismo pode ser definido como a tendência a separar a reflexão
sobre o método da sua utilização efectiva no trabalho científico, e a cultivar
o método por si só. Bourdieu vê na "metodologia" concebida como uma
especialidade separada uma forma de academismo que, dissociando o método do
objecto, reduz o problema da construção teórica deste à manipulação técnica de
índices e de observações empíricas.
Esquecendo que a "metodologia não é a preceptora ou a tutora do
sábio mas sempre sua aluna", um
tal fetichismo metodológico condena-se a vestir os objectos pré-construidos nos
adereços da ciência e arrisca-se a induzir uma miopia científica (Bourdieu et
al., 1973, p.88). Com efeito, isto pode transformar-se numa arte pela arte ou,
pior, num imperialismo metodológico conduzindo à definição forçada dos objectos
pelas técnicas de análise existentes e os corpus de dados disponíveis. Não é a
sofisticação técnica dos instrumentos metodológicos que Bourdieu critica, mas o
seu apuramento irreflectido destinado a tapar o vazio criado pela ausência de
uma visão teórica. Ele afirma abertamente a sua rejeição absoluta da rejeição
sectária deste ou daquele método de pesquisa (Bourdieu, 1989a, p.10) que conduz
alguns investigadores a um monismo e absolutismo metodológico. Convencido de
que a organização ou a realização prática da colecta ‑ ou para ser mais
preciso, da produção ‑ dos dados está tão intimamente imbrincada na
construção teórica do objecto que estas não podem ser reduzidas a tarefas
técnicas deixadas aos empregados de serviço para a ocasião. Bourdieu recusa a
hierarquia convencional das tarefas pelo modo como constitui toda uma série de
oposições homologas que se reforçam mutuamente de alto a baixo, trabalho
intelectual e trabalho manual, erudito criador e técnico encarregado da
aplicação dos procedimentos rotineiros.
O politeísmo metodológico
que Bourdieu prega e pratica não se
limita ao "anything goes" do anarquismo (ou do dadaismo)
epistemológico de um Feyerabend. Implica mais que a palette dos métodos
utilizados seja adequada ao problema tratado e seja objecto de reflexão no
próprio movimento onde é colocada para resolver uma questão particular. Não se poderia dissociar a construção do
objecto dos instrumentos de construção do objecto e da sua crítica. Assim como
reabilita a dimensão prática das práticas enquanto objecto de saber, Bourdieu
ambiciona revalorizar o lado prático da teoria enquanto actividade produtora de
saber. Os seus trabalhos testemunham amplamente o facto de ele se não opôr ao
trabalho teórico. Aquilo a que ele se opõe é ao trabalho teórico feito por si
próprio, ou à instituição da teoria enquanto domínio discursivo separado,
fechado e auto-referente, aquilo a que Keneth Burke chama a
"logologia", isto é, "palavras acerca de palavras".
Bourdieu nada pode fazer
com essa "teoria ostentatória" isolada de qualquer ligação às
realidades ou problemas práticos do trabalho empírico. A sua própria relação
com os conceitos é uma relação pragmática
trata-os como "caixas de ferramenta" (Wittgenstein) concebidas
para ajudar a resolver problemas. Mas este pragmatismo não abre caminho a um
ecletismo conceptual sem protecção, uma vez que está enquadrado e disciplinado
pelos postulados teóricos e problemas empíricos aqui expostos.
Se Pierre Bourdieu se
mostra excessivamente severo na sua crítica àquilo que chama a "teoria
teoricista", isso é sem dúvida a reacção a um ambiente intelectual que
recompensa tradicionalmente as capacidades filosóficas e teóricas ao mesmo
tempo que alimenta uma forte resistência ao empirismo (mesmo que a oposição
entre uma Europa teoricista e uma América empirista deva mais, nos nossos dias,
à combinação de eruditos estereótipos e ao cultural
lag empirista que a uma comparação racional). Nos Estados Unidos onde o "positivismo instrumental"
reina virtualmente sem concorrência depois dos anos quarenta, e onde as
permutas entre a sociologia e a filosofia foram muito fracas, para não dizer
inexistentes, os teóricos podem preencher uma função mais positiva. Contudo,
nestes últimos anos, o renascimento e desenvolvimento autónomo da teoria
(Ritzer, 1990) fez aumentar o fosso entre os pensadores puros e aqueles a que
frequentemente se chama, por gozo, "os contabilistas" (number
crunchers).
Do ponto de vista de
Bourdieu, os dissabores das teorias sociais contemporâneas não encontram a sua
origem no que Jeffrey Alexander diagnostica como uma "incapacidade"
de chegar à "generalidade préssuposicional" e a
"multidimensionalidade", mas
sim numa divisão social do trabalho
científico que separa, reifica e
compartimentaliza os momentos de um mesmo processo de construção do objecto
sociológico em especialidades distintas, favorecendo por isso a "audácia
sem rigor" da filosofia social e o "rigor sem imaginação" do positivismo
hiper-empiricista. De facto, para lá dos seus antagonismos, a inibição
metodológica e o fetichismo conceptual juntam-se no abdicar organizado do
esforço de explicação da sociedade e da história tais como elas existem.
Bourdieu defende que todo o acto de pesquisa é simultaneamente empírico (pelo
modo como enfrenta o mundo dos fenómenos observáveis) e teórico (pelo modo como
envolve necessariamente hipóteses relativas à estrutura sub-jacente das
relações que a observação tenta agarrar). Até a mais pequena operação empírica ‑
a escolha de uma escala de medida, uma decisão sobre codificação, a construção
de um índice ou inclusão de um item num questionário ‑ implica escolhas
teóricas conscientes ou inconscientes; enquanto a mais abstracta das
dificuldades conceptuais não possa ser completamente elucidada por uma
confrontação sistemática com a realidade empírica.
6. Para uma reflexividade epistémica
Se há uma característica
que distingue Bourdieu na paisagem das teorias sociais contemporâneas, é o seu
cuidado de reflexão constante. Após as
suas primeiras pesquisas sobre as práticas matrimoniais numa aldeia isolada nos
Pirinéus de onde evoluiu (Bourdieu,
1962b, 1962c) até à observação do Homo academicus gallicus (Bourdieu, 1988) Bourdieu nunca parou de
interrogar os instrumentos da ciência, mesmo quando o fazia de um modo que não
era imediatamente perceptível para
alguns dos seus leitores. A sua análise dos intelectuais e do olhar
objectivante da sociologia, em particular, tal como a sua dissecação da
linguagem enquanto instrumento e dispositivo de poder social, implicam e supõem
uma auto-análise do sociólogo como produtor cultural e uma reflexão sobre as
condições socio-históricas da possibilidade de uma ciência da sociedade
(Wacquant, 1990a).
Bourdieu sugere três tipos
de distorção capazes de obscurecer o
olhar sociológico. O primeiro que também foi lembrado por outros, tem a ver com
a origem e coordenadas pessoais (de classe, sexo ou etnia) do investigador. É a
distorção mais evidente e, à partida, directamente a mais controlável através
da auto-crítica e da crítica mútua. A segunda, muito menos notada e discutida,
está ligada à posição que o analista ocupa, não na estrutura social no seu mais
amplo sentido, mas no microcosmos do campo académico, isto é, no espaço
objectivo das posições intelectuais que se lhe oferecem num momento dado e,
para lá disso, no campo do poder.
A distorção intelectualista, que nos leva a conceber o mundo como um espectáculo, mais como um conjunto de significações que pedem para ser
interpretadas do que como problemas concretos exigindo soluções práticas, é uma
distorção muito mais profunda e mais perigosa nos seus efeitos que as que se
inscrevem na origem social e na posição do analista dentro do campo
universitário essa distorção leva de facto a ignorar completamente o que
provoca a differencia specifica da
lógica das práticas (Bourdieu, 1990a). Cada vez que fazemos escapar à submissão
da crítica os "pressupostos inscritos no facto de pensar o mundo, de se
retirar do mundo e da acção no mundo de modo a poder pensá-los" (Bourdieu,
1990f p.382), nós arriscamo-nos a reduzir a lógica prática à lógica teórica.
Dado que estes pressupostos estão inscritos nos conceitos, nos instrumentos de
análise (genealogia, questionário, análise estatística, etc.) e nas operações práticas da pesquisa (tais
como rotinas de codificação, procedimentos de clarificação de dados ou
"truques" do trabalho de campo), a reflexividade requer menos uma
introspecção intelectual que uma análise e um controlo sociológicos permanentes
das práticas (ver Champagne et al., 1989).
Por isto, para Bourdieu a
reflexividade não pressupõe uma reflexão do
sujeito sobre o sujeito, no sentido
da Selbstbewustzsein hegeliana (Lash,
1990, p.259) ou da "perspectiva egológica" (Sharrock & Anderson)
defendida pela etnometodologia e pela sociologia fenomenológica, ou por Alvin
Gouldner. A reflexividade requer mais uma exploração sistemática das "categorias
dos pensamentos impensados que delimitam o pensável e prédeterminam o
pensamento" (Bourdieu, 1982, p.10), orientando ao mesmo tempo a realização
prática da pesquisa social. O "retorno" que ela exige passa para lá
da experiência vivida do sujeito para englobar a estrutura organizacional e
cognitiva da disciplina. O que deve
constantemente ser submetido a exame e neutralizado no próprio acto de
construção do objecto, é o inconsciente científico colectivo inscrito nas
teorias, os problemas, as categorias (em particular as nacionais) do
entendimento sapiente (Bourdieu, 1990k). Acontece portanto que o sujeito da
reflexividade deve, em última análise, ser o próprio campo das ciências
sociais.
Graças à dialógica do
debate público e da crítica mútua, o trabalho de objectivação do sujeito
objectivante é efectuado, não apenas pelo seu autor, mas pelos ocupantes de
todas as posições antagonistas e complementares que constituem o campo
científico. Para ser capaz de produzir e favorecer os habitus reflexivos
científicos, este campo deve com efeito institucionalizar a reflexividade nos
mecanismos de formação, de diálogo e de avaliação crítica. É por isso a
organização social das ciências sociais, enquanto instituição inscrita nos
mecanismos tanto objectivos como mentais, que deve tornar-se o alvo de uma
prática transformadora.
É claro que Bourdieu não
participa do "humor de cepticismo imperativo" (Wolgar, 1988, p.14)
que alimenta a "reflexividade textual" defendida pelos antropólogos
que, nestes últimos anos se entitularam encarregues do "processo hermenêutico
da interpretação cultural" no trabalho de campo e da formação da realidade
através do registo etnográfico. Bourdieu é um crítico sem piedade daquilo que
Geertz alegremente chamou a "patologia do diário intimo" (diary disease), porque a verdadeira
reflexividade não é o abandonar-se post-festum a "reflexões sobre o trabalho de
campo" ao estilo de Rabinow, uma vez que ela não requer o uso da primeira
pessoa para valorizar a empatia, a diferença ou o trabalho de elaboração de
textos que caracterizam a intervenção do observador individual no acto de
observação. Trata-se mais de "submeter a posição do observador à mesma
análise crítica à qual se submeteu o objecto construido" (Barnard, 1990,
p.75). O etnógrafo não é separado do indígena por uma "trama de
sentidos" weberianos como pretende Rabinow (1977, p.162), mas pela sua
condição social, isto é, pela sua distância relativamente à necessidade
específica do universo considerado (Bourdieu, 1990a, p.14).
A insistência quase
obcessional de Bourdieu acerca da necessidade do retorno reflexivo não portanto
uma expressão de uma espécie de senso de honra epistemológica, mas um princípio
que leva a construir de um modo diferente os objectos científicos. Essa
necessidade ajuda a produzir os objectos nos quais a relação do analista com o
objecto não é inconscientemente projectada, não sofrendo a alteração
introduzida pelo que, com John Austin, Bourdieu chamou a Scholastic fallacy (o paralogismo ou
falácia escolástica), numa discussão da passagem da regra à estratégia onde se
afasta do estruturalismo lévi-straussiano. Vale a pena quedarmo-nos neste
ponto, porque é esta inversão de perspectiva ligada à inclusão, ao centro de
uma teoria das práticas, de uma teoria das práticas teóricas, que permitiu a
Bourdieu descobrir a lógica das práticas, do mesmo modo que foi levado a
reflectir sobre a especificidade da lógica teórica pelas anomalias empíricas que esta última fazia obstinadamente emergir
nos seus matérias de trabalho de campo.
Foi trabalhando na análise empírica, até ao menor detalhe, da rede de
todas as correspondências e oposições que constituem a estrutura da cosmologia
Kabyle, que Bourdieu foi conduzido a
teorizar a diferença entre a lógica abstracta e a lógica prática.
Reciprocamente, foi apenas por não parar de se debruçar teoricamente sobre a
sua própria prática enquanto antropólogo que lhe foi possível reconhecer e
agarrar tudo o que a separa da prática dos agentes comuns, isto é, da sua
própria prática, logo que deixe de se comportar como analista.
Se a reflexividade é fonte
de uma diferença cognitiva tão significante na condução da pesquisa, porque é
que não é mais frequentemente praticada? Bourdieu sugere que as verdadeiras
razões da resistência à reflexividade são menos epistemológicas que sociais.
Com efeito a reflexividade põe em questão
o sentido sagrado da individualidade e a representação carismática que
os intelectuais têm de si próprios, levados sempre a pensar como livres de toda
a determinação social. Para Bourdieu, a reflexividade é precisamente o que nos
permite libertarmo-nos de tais ilusões, levando-nos a descobrir o social no centro
do individual, o impessoal escondido sob a intimidade, , o universal encaixado
no mais profundo do particular. Assim, quando declina o convite a entrar no
jogo da confissão intimista, lembrando pelo contrário o carácter genérico das
suas experiências sociais mais formativas (Bourdieu, 1988a), ele mais não faz
que aplicar a si próprio o princípio da
sua sociologia (Bourdieu, 1989a, p.449)"Naquilo que têm de mais
pessoal, as pessoas são,
essencialmente, a personificação das exigências real ou potencialmente
inscritas na estrutura do campo ou, mais precisamente, na posição ocupada no
interior desse campo."
7. Razão, Ética e Política
A reflexividade epistémica
traz um outro benefício abre uma via de ultrapassagem à oposição entre o
relativismo nihilista e a "desconstrução" pos-moderna de que Derrida
se fez defensor, e o absolutismo do racionalismo "modernista" defendido por Habermas. Isto porque a
reflexividade permite historicizar a razão sem a dissolver, fundar um racionalismo historicista que reconcilia
a desconstrução e a universalidade, razão e relatividade, escorando as suas
operações nas estruturas objectivas ‑ apesar de historicamente factuais ‑
do campo científico. Por um lado, como Habermas, Bourdieu crê na possibilidade
e necessidade de uma verdade científica. Mas mantém, contra o teórico da Escola
de Francoforte, que o projecto de fundar a razão nas estruturas transhistóricas
da consciência ou da linguagem, é parte de uma ilusão transcendentalista de que
a filosofia e as ciências históricas devem largar. Por outro lado, Bourdieu
está de acordo com Derrida e Foucault sobre a ideia de que o saber deve ser
desconstruido, que as categorias são derivações sociais contingentes e
instrumentos de poder (simbólico) que possuem uma eficácia constitutiva, e que
as estruturas do discurso sobre o mundo social são frequentemente
pré-construções sociais de grande carga política. A ciência é, como Gramsci o
observou, uma actividade eminentemente política. Mas nem por isso se reduz a
uma política, por isso incapaz de produzir verdades universalmente válidas.
Confundir a política da ciência (o saber) com a da sociedade (o poder), é não
fazer caso da autonomia historicamente instituída do campo científico. Bourdieu
separa-se aqui do pós-estruturalismo se a desconstrução se desconstruisse a ele
própria, descobriria as suas condições históricas de possibilidade e deveria
por isso admitir que pressupõe, também, critérios de verdade e de diálogo
racional enraizados na estrutura social do universo intelectual.
Segundo Bourdieu, a razão
é, por isso, um produto histórico, mas um produto histórico altamente paradoxal
no que pode, dentro de certos limites e sob certas condições,
"escapar" à história, isto é, à particularidade. São estas condições
que devem ser continuamente reproduzidas num e por um trabalho visando proteger concretamente as bases
institucionais do pensamento racional. Longe de lançar um desafio à
ciência, a sua análise da génese do funcionamento dos campos de produção
cultural tem por objectivo escorar a racionalidade científica na história ,
isto é, nas relações produtoras de conhecimentos objectivados numa rede de
posições e "subjectividades" em disposições que, no seu conjunto,
constituem o campo científico enquanto invenção social historicamente única
(Bourdieu, 1990a).
A noção de reflexividade,
tal como Bourdieu a entende,
inscreve-se não contra a "cientificidade modernista", como o
diz Lash (1990), mas contra as concepções positivistas das ciências sociais e
contra a separação estanque que elas estabelecem entre factos e valores (Giddens,
1997). Para o autor de La Distinction,
o saber empírico não é tão compatível com a descoberta e a procura de
objectivos morais como o queriam fazer crer certos partidários desta ou daquela
corrente positivista. Na linha directa do projecto durkheimiano (Filloux,1970),
Bourdieu está extremamente preocupado com o sentido moral e político da
sociologia. Apesar de não poder ser redutível a isto, o seu trabalho veicula
uma mensagem moral a dois níveis. Primeiro, do ponto de vista do indivíduo, ele
forja instrumentos para distinguir as zonas de necessidade e as de liberdade e,
à partida, para identificar os espaços abertos à acção moral. Bourdieu (1989a p.41) argumenta que,
enquanto os agentes agirem com base numa subjectividade que é a interiorização
da objectividade, não podem tornar-se outra coisa senão "os aparentes
sujeitos de acções que têm por tema a estrutura". Contrariamente, quanto
mais tomam consciência do social no interior de si próprios assegurando-se de
um domínio reflexivo das suas categorias de pensamento e de acção, menos hipóteses têm de "ser
agidos" pela exterioridade que os habita. A socioanálise pode, trazendo à
luz do dia o inconsciente social inscrito nas instituições tal como em nós, oferecer-nos
um meio de nos libertar desse inconsciente que conduz ou constrange as nossas
práticas. Se o trabalho de Bourdieu partilha com todos os pós-estruturalismos
uma rejeição do cogito cartesiano
(Schmidt, 1985), ele separa-se deles pelo facto de tentar tornar possível a
emergência histórica de algo como um sujeito racional através da aplicação
reflexiva do saber das ciências sociais.
A dimensão moral da
sociologia reflexiva é inerente àquilo que se poderia chamar a sua função espinozista. Aos olhos de Bourdieu, a tarefa do sociólogo
é a de desnaturalizar e de desfatalizar o mundo social, isto é, destruir os
mitos que vestem o exercício do poder e perpetuam o seu domínio. Mas uma tal
desmistificação não se destina a pôr os outros em causa e a suscitar-lhes um
sentimento de culpabilidade. Pelo contrário, a missão do sociólogo é a de
"fazer necessárias" ("nécessiter") as condutas, arrancá-las
ao arbitrário sem no entanto as justificar, reconstituindo o universo das
pressões que as determinam (Bourdieu, 1989a, p.143n). Tornando visíveis as
ligações que ele percebe entre uma sociologia científica e a construção de
morais quotidianas de pequena escala, Bourdieu remete para primeiro plano a
dimensão ética das ciências sociais, juntando-se assim a Alan Wolfe e Richard
Maxwell Brown. Contudo, ao contrário de Wolfe, ele não acredita que a
sociologia possa fornecer uma filosofia moral às sociedades avançadas. Isso
faria com que o sociólogo tivesse de representar o papel do "teólogo"
saint-simoniano, profeta da "religião civil" da modernidade. Segundo
Bourdieu, a sociologia pode dizer-nos sob que condições a acção moral é
possível, e como é que ela pode ser posta em prática institucionalmente, mas
não qual deverá ser o seu destino. Para Bourdieu, a sociologia é uma ciência
eminentemente política pelo facto de estar profundamente preocupada com as
estratégias e os mecanismos de domínio simbólico nas quais ela própria se
encontra enredada. Pela própria natureza do seu objecto e a situação dos que a
praticam, as ciências sociais não poderão ser neutras, desligadas, apolíticas.
Nunca conseguirão chegar ao estatuto indiscutível das ciências naturais. A
prova é que as ciências sociais se encontram constantemente à espreita de
formas de resistência e de vigilância (tanto internas como externas) que
ameaçam comprometer a sua autonomia sem cessar, e que são desconhecidas nos sectores mais avançados da biologia
ou da física. O paradoxo das ciências
sociais é que o progresso para uma maior autonomia não implica um progresso no
sentido da neutralidade política. Quanto mais a sociologia se torna científica,
mais ela se torna politicamente pertinente e eficiente, quanto mais não seja a
título de instrumento de crítica, de sistema de defesa contra as formas de
domínio simbólico que nos impedem de nos tornarmos verdadeiros agentes políticos.
Como se observa na secção
final do seminário de Chicago, Bourdieu não partilha a visão fatalista do mundo
que lhe atribuem os que lêem na sua obra um hiper-funcionalismo politicamente
estéril. A sua perspectiva não é a da visão nitzsheana de "um universo de
funcionalidade absoluta" (Rancière, 1984, p.34) no qual "o menor
detalhe da acção social (participa) de um vasto plano de opressão"
(Elster). Bourdieu não acredita, como Mosca e Pareto, os teóricos de elite da
escola italiana, que o universo social está, por si só, necessariamente e para
sempre, dividido em blocos monolíticos
de dominantes e dominados (rulers and ruled), de dirigentes e dirigidos.
Primeiro porque as sociedades avançadas não formam um cosmos unificado mas são
entidades diferenciadas, parcialmente totalizadas, compostas por um conjunto de
campos que, uma vez afastados uns dos outros, não se tornam por isso mais
autoregulados, cada um com os seus dominantes e dominados. Por outro lado, em cada
campo a hierarquia é continuamente contestada e os próprios princípios que
suportam a estrutura do campo podem ser desafiados e postos em causa. E a
omnipresença do poder também não exclui a possibilidade de uma relativa
democratização. à medida que o campo do poder se torna mais diferenciado, que a
divisão do trabalho de exercício do poder se torna mais complexa (Bourdieu,
1989a, pp.533-559), enredando um número
cada vez maior de agentes, cada um com os seus interesses específicos, à medida
que o universal é invocado nos sub-campos cada vez mais numerosos que
constituem o espaço de jogo da classe dominante (na política, na religião, nas
ciências e mesmo na economia como se pode observar com o peso crescente dos
raciocínios jurídicos na gestão quotidiana e nas decisões estratégicas das grandes empresas), aumentam as hipóteses
de fazer progredir a razão.
Em segundo lugar, Bourdieu
não quer de modo nenhum que o mundo social obedeça a leis inamovíveis. Ele não
partilha em nada a "tese da fatalidade", essa figura de retórica
conservadora (e por vezes progressista) segundo a qual toda a acção colectiva é
em vão uma vez que se revela incapaz de corrigir as desigualdades presentes.
Apesar de Bourdieu extrair do mundo
social uma imagem bastante estruturada, ele não aceita a ideia de que este
mundo evolua "segundo as leis imanentes que as acções humanas não podem
modificar"(Hirshman). Para ele, as leis sociais são regularidades
limitadas no tempo e no espaço que existem durante tanto tempo quanto for permitido
durar às condições institucionais que as suportam . Estas não exprimem aquilo a
que Durkheim chama as "necessidades fatais", mas sim as relações
históricas que podem frequentemente ser politicamente desfeitas pelo pouco que
adquirimos do necessário conhecimento das suas origens sociais. A missão política do sociólogo, segundo
Bourdieu (1980b, p.18) é ao mesmo tempo modesta e essencial. A sociologia é
também uma política no sentido que ele dá a este termo uma tentativa para
transformar o olhar através do qual nós construimos o mundo social e a partir
do qual podemos formar racional e humanamente a sociologia e a sociedade. E,
por último, formarmo-nos a nós
próprios.
L.J.D.W.
4
A Violência Simbólica
Em Ce
que parler veut dire (1982a), você
faz uma crítica à linguística estrutural ou àquilo que se poderia chamar a
análise pura da linguagem. Você propõe um modelo alternativo que, para
simplificar, trata a linguagem como um instrumento ou um suporte de relações de
poder ‑ mais que como um simples meio de comunicação que deve ser
estudado nos contextos interactivos e estruturais da sua produção e da sua
circulação.
O que caracteriza a
linguística "pura", é a primazia em que coloca a perspectiva
sincrónica e estrutural ou interna relativamente às determinações históricas,
sociais, económicas ou externas à
linguagem. Especialmente em Le Sens
Pratique e em Ce que parler veut dire (1980f,
pp.51-70, e 1982a, pp.13-95 respectivamente) tentei chamar a atenção para a
relação com o objecto e a teoria das práticas que estão implicadas nessa
perspectiva. O ponto de vista saussuriano é o do "espectador
imparcial" que procura a compreensão pela compreensão e que assim é
conduzido a emprestar essa "intenção hermenêutica" aos agentes
sociais, e a fazer dela o princípio das suas práticas. É a postura do gramático
(grammairien) cujo projecto é estudar e
codificar a linguagem por oposição à do orador que procura agir no mundo e
sobre o mundo graças à eficácia performativa da palavra. Aqueles que tratam a linguagem como objecto
de análise, em vez de a utilizarem para pensar ou falar, são levados a
constitui-la como um logos por
oposição a uma praxis, como letra
morta sem fins práticos ou sem outra intenção que a de ser interpretada,
exactamente como a obra de arte.
Esta visão tipicamente
escolástica é um produto do ponto de vista e da situação escolásticas onde ela
se gerou a colocação, escolar, entre
parênteses neutraliza as funções que estão implicadas na utilização normal da
língua. Tanto em Saussure como na tradição hermenêutica, a linguagem é tratada
como letra morta (escrita e estranha, como diz Bakhtine), como sistema
autosuficiente completamente isolado do seu uso real e despojado das suas
funções práticas e políticas (como na semântica pura de Fodor e Katz). A ilusão
da autonomia de ordem puramente linguística que é assegurada pelo privilégio
assim oferecido à lógica interna da linguagem, à custa das condições sociais e
dos correlatos do seu uso social, abre uma via a todas as teorias que fazem
como se o domínio teórico do código fosse suficiente para oferecer o domínio
prático dos usos socialmente apropriados.
Quer com isto dizer, contra as pretensões da linguística
estrutural, que o sentido das expressões linguísticas não poderia ser derivado
ou deduzido da análise da sua estrutura formal?
A gramaticalidade não é
condição necessária nem suficiente para a produção de sentido, e a linguagem
não é feita para a análise linguística mas para ser falada e para ser falada a
propósito. (Os sofistas tinham o hábito de dizer que o que é importante na
aprendizagem da linguagem, é a aprendizagem do momento apropriado, kairos, para dizer algo
apropriado.) Todas as pressuposições do
estruturalismo e todas as dificuldades que daí resultam ‑ e isso
tanto na antropologia como na
sociologia ‑ são derivadas da filosofia intelectualista da acção humana
que o suportam; essas pressuposições estão contidas na operação inicial que
reduz a linguagem a um acto de pura execução. É essa distinção primordial entre
a língua e a sua realização na fala, isto é, na prática e na história, que está
na origem da incapacidade do estruturalismo para pensar a relação entre estas
duas entidades de outro modo que não seja como uma relação entre o modelo e a
sua execução, a essência e a existência.
Pondo em questão esta
postura, tentei também ultrapassar as insuficiências de uma análise ou
puramente económica ou puramente linguística da linguagem, destruir a oposição
normal entre o materialismo e o culturalismo. Com efeito, para resumir uma
longa e difícil demonstração numa frase, pode dizer-se que estas duas posições
têm em comum o facto de se esquecerem que as relações linguísticas são sempre
relações de força simbólica através das quais as relações de força entre os
locutores e os seus grupos respectivos
que se actualizam sob forma transfigurada. Assim, é impossível interpretar um
acto de comunicação dentro dos limites de uma análise puramente linguística.
Até a permuta linguística mais simples coloca em jogo uma complexa e ramificada
rede de relações de força históricas entre o locutor, dotado de uma autoridade
social específica, e o seu interlocutor ou seu público, que reconhece a sua
autoridade a diferentes níveis, tal como entre os respectivos grupos a que
pertencem. O que tento demonstrar é que uma parte muito importante do que se
produz na comunicação verbal, até ao próprio conteúdo da mensagem, é
ininteligível durante tanto tempo que não nos damos conta da totalidade da
estrutura de relações de força que aí está presente, na permuta, mesmo num estado invisível.
Pode dar um exemplo?
Se quiser posso utilizar o
exemplo da comunicação entre colonos e indígenas num contexto colonial ou
pós-colonial, que esteve na origem destas reflexões. A primeira questão que se
põe é a de saber que linguagem é que eles vão utilizar. Será que o dominante vai adoptar a linguagem
do dominado como indício de uma intenção de igualdade? Se o fizer há uma boa
hipótese que isso tome a forma daquilo a que chamo uma estratégia de
condescendência (1979a. p.551) abdicando temporária e ostentatoriamente da sua
posição dominante de modo a colocar-se ao nível do seu interlocutor, o
dominante, negando-a, aproveita ainda a
sua relação de domínio, que continua a existir. A negação simbólica (no sentido
freudiano de Verneinung) isto é a colocação
simulada entre parenteses da relação de poder, explora essa relação de
poder de modo a produzir o reconhecimento da relação de poder a que a abdicação
de poder apela.. Mas voltemos à situação, de longe mais frequente, onde é o
dominado que é obrigado a adoptar a linguagem do dominante ‑ e aqui
podermos também pensar na relação entre o inglês standard branco e o americano
vernáculo negro. Neste caso, o dominado fala uma langage brisé, como diz William Labov (1973), e o seu capital
linguístico é mais ou menos completamente desvalorizado, seja na escola, no
trabalho ou nos encontros quotidianos com o dominante. O que a análise
conversacional facilmente deixa de lado neste caso, é o facto de que toda a
interacção linguística entre brancos e negros é marcada pela relação estrutural
entre a duma respectiva apropriação do inglês e pelo desequilíbrio na relação
de forças que dá à imposição arbitrária do inglês branco e burguês o seu ar de
natural.
Para levar estas análises
um pouco mais longe, seria preciso introduzir todo o tipo de coordenadas
posicionais (de localização), como sexo, nível de formação, origem social,
residência, etc. Todas estas variáveis intervêm permanentemente na determinação
da estrutura objectiva da "acção comunicativa" e a forma que assume a
interacção linguística irá depender substancialmente desta estrutura, que
continua inconsciente e funciona quase sempre "por detrás" dos
locutores. Resumindo, se um francês fala com um argelino, ou um americano negro
com um branco bem sucedido, isto não são duas pessoas a falar uma com a outra
mas sim, por elas, toda uma história colonial ou toda a história da subjugação
económica, política e cultural dos negros (ou das mulheres, dos trabalhadores,
das minorias, etc.) nos Estados Unidos. Isto mostra que a "fixação (das
etnometodologias) sobre a configuração imediatamente visível" (Sharrock e
Anderson, 1986, p.113) e o cuidado de manter a análise tão próxima quanto
possível da "realidade concreta", que inspira a análise conversacional
(por exemplo Sacks e Schegloff, 1979) e que alimenta a vontade
microsociológica, pode conduzir à omissão de uma realidade que escapa à
intuição imediata porque está alojada nas estruturas que são transcendentes à
interacção que as informa.
Você defende que toda a expressão linguística é um acto de
poder, mesmo que dissimulado. Não existirão no entanto situações (tais como a
conversa fiada, o diálogo íntimo ou outras "maneiras de falar"
quotidianas tais como as analisadas por Goffman (1981) que possam ser ortogonais,
ou não ser pertinentes relativamente às estruturas de desigualdade, e onde o
comportamento verbal não está inscrito nas relações de poder?
Toda a permuta linguística
contém a virtualidade de um acto de
poder e isso tanto quanto mais envolver agentes ocupando posições assimétricas
dentro da distribuição do capital pertinente. Esta potencialidade pode ser
colocada entre parenteses, como acontece frequentemente na família e nas
relações de philia, no sentido
aristotélico do termo, onde a violência é suspensa numa espécie de pacto
simbólico de não agressão. Contudo, mesmo nesses casos, a recusa de exercício do poder pode ser a
dimensão de uma estratégia de condescendência ou uma maneira de levar a
violência a um nível mais elevado de negação e dissimulação, um meio de
reforçar o efeito de fingimento e por isso de violência simbólica.
Você denuncia também "a ilusão do comunismo
linguístico", segundo a qual a competência social para falar é igualmente
oferecida a todos.
Todo o acto de fala ou
todo o discurso é uma conjuntura, o produto do encontro entre um habitus linguístico e um mercado linguístico, isto é, entre, por
um lado, um sistema de disposições socialmente constituido, que implica uma propensão a falar de uma
certa maneira e a formular certas coisas (um interesse expressivo) com uma competência para falar
inseparavelmente definida como uma aptidão linguística para engendrar uma
infinidade de discursos que são gramaticalmente conformes, e enquanto capacidade social para utilizar
adequadamente essa competência numa dada situação e, do outro lado, um sistema
de relações de força simbólica que se impõe através de um sistema de sanções e
de censuras específicas e que por isso contribui para configurar a produção
linguística, determinando o "preço" dos produtos linguísticos. A antecipação prática do preço que o meu
discurso irá obter contribui para determinar a forma e o conteúdo do meu
discurso, que será mais ou menos duro, mais ou menos censurado, por vezes até
ao silêncio da intimidação. Quanto mais o mercado for oficial ou
"duro", mais próximo se encontra das normas da linguagem dominante (
pode pensar-se por exemplo nas cerimónias da política oficial inaugurações,
discursos, debates públicos), maior é a censura e mais o mercado é dominado
pelos dominantes, os detentores da competência linguística legítima. (Devo aqui
fazer um parenteses para corrigir uma das fórmulas que empreguei ou pelo menos
o que por isso se pode entender. Dizer que a antecipação do preço provável do
discurso contribui para determinar a forma e o conteúdo deste discurso não é
voltar a um modelo economicista da linguagem essa antecipação não tem nada de
cálculo consciente; ela é um facto do habitus linguístico que é produto de uma
relação prolongada com um certo mercado
e que tende a funcionar como um senso de aceitabilidade e do valor provável dos
seus produtos linguísticos ‑ (1982a.)
A competência linguística
não é uma simples capacidade técnica mas também uma capacidade estatutária.
Isso significa que todas as formulações linguísticas não são igualmente
aceitáveis e que os locutores não são iguais. Empregando uma metáfora utilizada
antes dele por Auguste Comte, Saussure diz que a linguagem é um
"tesouro" e ele descreve a
relação dos indivíduos com a linguagem como uma espécie de participação mística
num tesouro comum universal e uniformemente acessível a todos os "sujeitos
que pertencem à mesma comunidade". A ilusão de um comunismo linguístico,
que persegue a linguística, é a ilusão de que todos participam na linguagem do
mesmo modo que gozam o sol, o ar ou a água ‑ numa palavra, a linguagem
não é um bem raro. De facto, o acesso à linguagem legítima é claramente
desigual e a competência teoricamente universal, se é livremente distribuida a
todos pelos linguístas, na realidade ela é monopolizada apenas por alguns.
As desigualdades de
competência linguística revelam-se constantemente no mercado das interacções
quotidianas, isto é, na conversa ocasional entre duas pessoas, numa reunião
pública, num seminário, numa entrevista de recrutamento, na rádio e na
televisão. A competência funciona diferencialmente e existem monopólios dos
bens linguísticos tal como no mercado
de bens económicos. Onde isso melhor se vê é na política onde os porta-vozes,
pelo facto de deterem o monopólio da expressão política legítima da vontade de
um colectivo, falam não apenas a favor daqueles que representam mas também,
frequentemente, em vez deles.
Essa aptidão que têm os porta-vozes de configurar a realidade
projectando uma representação definida (esquemas classificativos, conceitos,
definições, etc.) da realidade, levanta a questão do poder das palavras de onde
provem a eficácia social das palavras?
Aqui, você vira-se outra vez contra o modelo comunicacional puro
representado por Austin, e sobretudo por Habermas, segundo o qual a substância
linguística do discurso dá conta dos seus efeitos.
É preciso estar muito
reconhecido aos filósofos da linguagem e em particular a Austin pelo facto de
terem perguntado como é que é possível nós podermos "fazer coisas com as
palavras", como diz o título inglês
Doing Things With Words, como é que é
possível ás palavras produzirem efeitos. Como é que é possível , se eu disser a
alguém "abra a janela", dentro de certas condições, essa pessoa abre
a janela? (E, se eu for um velho lorde inglês a ler o jornal do fim de semana,
enterrado num sofá, me baste dizer "John, não achas que há aqui uma
corrente de ar?" e o John fecha a janela.) Se nos dermos ao trabalho de
pensar nisso, esta atitude de fazer coisas com as palavras, o poder das
palavras de dar ordens e ordenar as coisas, aparece como parecendo magia.
Mas tentar compreender
linguisticamente o poder das expressões linguísticas, tentar encontrar dentro
da linguagem o princípio da eficácia da linguagem é esquecer que a autoridade
chega à linguagem vinda do exterior, como Benveniste o lembra na sua análise do
skeptron que se dava ao orador,
segundo Homero, no momento em que ía tomar a palavra. A eficácia da
linguagem não está nas "expressões
ilocutórias" ou no próprio discurso como sugere Austin, pois tal não é
outra coisa que o poder delegado pela instituição. (Para ser justo, o próprio
Austin dava um lugar central às instituições na análise da linguagem, mas os
seus comentadores têm geralmente abordado a sua teoria do performativo no
sentido de um estudo das suas propriedades intrínsecas). O poder simbólico,
poder de constituir o facto ao enunciá-lo, de agir sobre o mundo agindo sobre a
representação do mundo, não está nos "sistemas simbólicos" sob a forma
de uma "força ilocutória". Esse poder realiza-se dentro e através de
uma relação definida que gera a crença na legitimidade das palavras e das
pessoas que as enunciam, e não funciona a menos que os que a ele se submetem
reconheçam os que o exercem. O que quer dizer que, para dar conta dessa
situação à distância, dessa real transformação operada sem contacto físico, nós
devemos, como acontece com a magia segundo Marcel Mauss, reconstruir a
totalidade do espaço social no qual são engendrados e exercidas as disposições
e as crenças que tornam possível a eficácia da magia da linguagem.
A sua análise da linguagem não é contudo uma incursão
passageira nos domínios da linguística, mas representa mais uma extensão a um
novo domínio empírico do método de análise que você aplicou a outros produtos culturais.
Eu não parei de lutar
contra as fronteiras arbitrárias, que são um puro produto da reprodução escolar
e não têm qualquer fundamento epistemológico, entre a sociologia e a etnologia,
a sociologia e a história, a sociologia e a linguística, a sociologia da arte e
a sociologia da educação, a sociologia do desporto e a sociologia política,
etc. Penso que não se pode compreender por completo a linguagem sem recolocar
as práticas linguísticas dentro do universo completo das práticas possíveis as
maneiras de comer e de beber, os consumos culturais, os gostos em matéria de
arte, o desporto, o vestuário, os móveis, a política, etc. Porque é a
totalidade do habitus de classe, isto é, a posição ocupada sincrónica e diacronicamente dentro da estrutura social que se exprime
através do habitus linguístico, e que é
apenas uma das suas dimensões. A
linguagem é uma técnica do corpo e da competência linguística, e especialmente
fonética, é uma dimensão da hexis
corporal na qual se exprime toda a relação com o mundo social. Tudo indica, por
exemplo, que o esquema corporal característico de uma classe social determina o
sistema de traços fonéticos que caracterizam uma pronúncia de classe por entre
aquilo a que Pierre Guiraud chama o "estilo articulatório". Este
estilo articulatório é parte integrante de um estilo de vida "tornado
corpo", e está em relação directa com os usos do corpo e do tempo que
definem claramente este estilo de vida. (Não é por acaso que a distinção
burguesa investe a sua relação com a linguagem do mesmo modo de distanciação
com que trata a sua relação com o corpo.)
Uma análise sociológica,
tanto estrutural como genética, da linguagem deve fundar teoricamente e
restaurar empiricamente a unidade das práticas humanas, entre as quais as práticas linguísticas são
apenas uma parte, de modo a tomar por objecto a relação que une os sistemas
estruturados de diferenças linguísticas sociologicamente pertinentes aos
sistemas de diferenças sociais estruturados de modo idêntico.
Então, a seu ver, o sentido e a eficácia social das mensagens
não se determinam completamente a não ser no interior de um determinado campo
(por exemplo o jornalismo ou a filosofia), este também dentro de uma rede de
relações hierárquicas com outros campos.
Sem um entendimento da estrutura completa das relações objectivas que
definem as posições neste campo, as formas específicas de censura que cada uma
implica, sem um conhecimento das trajectórias e das disposições linguísticas
daqueles que ocupam essas posições, sem isto é impossível explicar
completamente os processos de comunicação porque é que algo é dito ou omitido,
por quem, o que é significado e o que é entendido e, o mais importante, com que
efeitos sociais.
Foi o que tentei
demonstrar no meu estudo sobre a Ontologia
política de Martin Heidegger (1975a,1988d), trabalho ao qual fui conduzido
pela lógica da minha investigação sobre a linguagem e sobre a noção de
campo. A obra de Heidegger (que
frequentei muito cedo, numa época da minha juventude em que preparava um livro
sobre a fenomenologia da vida afectiva e da experiência temporal) apareceu-me com,o um terreno particularmente
favorável para verificar as minhas hipóteses sobre o efeito de censura exercido
pelos campos de produção cultural.
Heidegger é um mestre ‑ tenho vontade de dizer o mestre ‑ da
linguagem dupla ou, se se preferir, do discurso polifónico. Ele domina a arte
de falar simultaneamente em dois modos, o da linguagem filosófica e o da
linguagem normal. Isso é particularmente visível no caso do conceito
aparentemente "puro" de Fursorge
(cuidado, preocupação), que tem um papel central na teoria heideggeriana do
tempo e que, na expressão soziale
Fursorge, "assistência social", diz respeito ao contexto político
e à condenação do Estado-providência, das licenças pagas, da segurança social,
dos seguros de doença, etc. Mas
Heidegger interessou-me também enquanto incarnação exemplar do "filósofo
puro" e eu quis mostrar, neste caso aparentemente desfavorável para a
sociologia das obras culturais tal como a concebo, que o método de análise que
proponho poderia não apenas dar conta das condições políticas de produção da
obra, mas também conduzir a um melhor entendimento da própria obra, isto é,
neste caso particular, pela intenção central da filosofia heideggeriana, a
"ontologização" do historicismo.
O interesse de Heidegger
como paradigma do filósofo "puro", anhistórico, que interdita e
recusa explicitamente ligar o pensamento ao pensador, à sua bibliografia, e
muito menos às condições económicas e sociais do seu tempo (e que sempre foi
lido de um modo profundamente deshistoricizado), leva-nos a repensar as
ligações entre a filosofia e a política. É isto que quer sugerir o título que
dei ao meu trabalho a ontologia é política e a política torna-se ontologia.
Mas, neste caso mais que em qualquer outro, a relação inteligível que existe
entre o "Fuhrer filosófico" e a política e a sociedade alemãs, longe de ser directa, estabelece-se apenas
através da estrutura do microcosmos filosófico. Uma análise adequada do
discurso de Heidegger implica por isso uma dupla recusa deve rejeitar tanto as
pretensões do texto filosófico relativamente a uma autonomia absoluta e a sua
rejeição de uma referência externa; e deve rejeitar a redução directa do texto
ao contexto mais geral da sua produção e da sua circulação.
Esta dupla recusa é também o princípio director da sua
sociologia da literatura, da pintura, da religião e do direito (ver
respectivamente, 1983c, 1986c, 1987g, 1988b, 1991b). Em cada um destes casos,
você coloca as obras culturais em ligação com o campo da sua produção e coloca
de costas voltadas a leitura interna e a redução aos factores externos.
Tendo em conta o campo da
produção específica e a sua autonomia, que é o produto da história específica
do campo, ela própria irredutível à história "geral", evitam-se dois
erros complementares, que se utilizam mutuamente como cavilha e alibi, o que
consiste em tratar as obras como realidades auto-suficientes e o que as reduz
directamente às condições económicas e sociais mais gerais. Assim, por exemplo, os que se opõem a
propósito do nazismo de Heidegger concedem ao seu discurso filosófico ou
demasiada ou pouquíssima autonomia é facto indiscutível que Heidegger tenha
sido membro do partido nazi, mas nem o Heidegger jovem nem o Heidegger de idade
madura foram ideólogos nazis como o reitor de Krieck. A interpretação externa,
iconoclasta, e a interpretação interna, laudatória, têm em comum a sua ignorância
do efeito de configuração filosófica elas ignoram a possibilidade que a
filosofia de Heidegger possa ter sido apenas a sublimação filosófica, imposta
pela censura específica do campo de produção filosófica, dos próprios
princípios políticos e étnicos que determinaram a sua adesão ao nazismo. Para
ver isto, é necessário repudiar a oposição entre a leitura política e a leitura
filosófica e submeter-se a uma dupla leitura, inseparavelmente filosófica e política, dos escritos que são
fundamentalmente definidos pela sua ambiguidade, isto é, pela sua dupla
referência constante a dois espaços sociais aos quais correspondem dois espaços
mentais.
Para perceber o pensamento
de Heidegger, é preciso compreender não apenas todas as "idées
reçues" do seu tempo (tal como se exprimiam nos editoriais dos jornais,
nos discursos universitários, nos prefácios a livros filosóficos e nas
conversas entre professores, etc.) mas também a lógica específica do campo
filosófico dentro do qual se encontravam os grandes especialistas, isto é, os
neokantianos, os fenomenólogos, os neotomistas, etc. Para realizar a "revolução conservadora" que ele levou
a cabo na filosofia, Heidegger devia apoiar-se numa extraordinária capacidade
de invenção técnica, isto é, sobre um capital filosófico excepcional (basta ver
o virtuosismo que ele manifesta no seu Kant
e o problema da Metafísica) e uma
aptidão também excepcional para dar às suas tomadas de posição uma forma
filosoficamente aceitável que ela própria pressupunha um domínio prático da
totalidade das posições do campo, um formidável sentido do jogo filosófico. Por
oposição a simples panfletários ou ensaistas políticos tais como Spengler,
Junger ou Niekisch, Heidegger integra
verdadeiras tomadas de posição filosóficas até aí entendidas como
incompatíveis, numa nova posição filosófica. Esse domínio do espaço dos
possíveis aparece mais claramente ainda no segundo Heidegger, que se define
constantemente de modo relacional, recusando antecipadamente e por negação as
representações das suas tomadas de posição passadas e presentes que se poderiam
produzir a partir de outras posições dentro do campo filosófico.
Você retira as ideias políticas de Heidegger menos do estudo
do seu contexto que da leitura do próprio texto e do elucidar dos quadros
semanticos múltiplos nos quais ele funciona.
É a leitura da própria
obra, dos seus duplos sentidos, dos seus acordos duplos, que me revelou algumas
das implicações políticas mais imprevisíveis da filosofia de Heidegger a
rejeição do Estado-providência escondido no centro da teoria da temporalidade,
o anti-semitismo sublimado na condenação da "errância", a recusa em
denunciar a sua anterior defesa dos nazis inscrita nas alusões tortuosas do seu
diálogo com Junger, etc. Tudo isso poderia ser encontrado nos próprios textos,
como o demonstrei em 1975, mas continuava inacessível aos polícias da ortodoxia
da leitura filosófica que, como os aristocratas em declínio, respondiam como o
próprio Heidegger, no qual se projectavam, à ameaça que o progresso das
ciências sociais fazia emergir pela sua diferença, pela sua distinção,
agarrando-se à sagrada diferença entre a ontologia e a antropologia. A análise
puramente lógica e a análise puramente política são ambas inaptas, tanto uma
como a outra para dar conta do duplo discurso cuja verdade reside na relação
entre o sistema declarado e o sistema escondido.
Contrariamente ao que se
pensa muitas vezes, a compreensão adequada de uma filosofia não exige esse tipo
de deshistoricização pela eternalidade que cumpre a leitura intemporal dos
textos canónicos concebidos como philosophia
perennis, ou pior, esse tipo de "rebaixamento" incessante,
destinado a ajustá-las aos debates contemporâneos, por vezes a custo de
contorsões e distorsões incríveis (quando penso que "Heidegger nos ajuda a
pensar o holocausto", tenho dificuldade a acreditar que não estou a sonhar
‑ mas talvez eu não seja suficientemente pós-moderno"!). Essa compreensão nasce principalmente de uma
verdadeira historicização que permite descobrir o princípio subjacente à obra
ao reconstruir a problemática, o espaço dos possíveis em relação aos quais ela
se construiu e o efeito de campo específico que lhe deu a forma e que a
revestiu.(...) p.129
Esteticização do pensamento
(...)Deste ponto de vista,
o meu trabalho ‑ penso particularmente em L'Amour de l'art ou em La
Distinction ‑ situa-se nos antípodas da postura ou da pose filosófica
que, depois de Sartre, tem permanentemente implicado uma dimensão estética. A
crítica, não da cultura mas dos usos sociais da cultura como capital e
instrumento de poder simbólico, é incompatível com a diversão estéta ‑
frequentemente escondida atrás de uma fachada "científica", como em
Barthes ou no Tel Quel (para não
falar de Baudrillard) ‑ cara a estes filósofos franceses que levaram a
estetização da filosofia a um grau jamais igualado. (...)" p.129
Aparências de cientificidade
"Bom número dos
traços específicos da filosofia francesa, depois dos anos 60, pode explicar-se
pelo facto de, como mostrei em Homo
Academicus, a Universidade e o campo intelectual terem sido dominados, pela
primeira vez, por especialistas das ciências humanas (tais como Lévi-Strauss,
Dumézil, Braudel, etc.). O lugar central de todas as discussões da época
deslizou para a linguística que se constituiu como modelo de todas as ciências
humanas e mesmo de projectos filosóficos tais como o de Foucault. Tal é a
origem daquilo a que chamo o efeito "-logia" designando os esforços
das filosofias para agarrar os métodos e as aparências de cientificidade das
ciências sociais sem abandonar o estatuto privilegiado do "filósofo"
penso na semiologia literária de Barthes, na arqueologia de Foucault, na
gramatologia de Derrida, ou na tentativa dos althusserianos para apresentarem
uma leitura "científica" do texto de Marx instituido em ciência e em
medida de todas as ciências como uma ciência autosuficiente e autónoma.
(1975b).(...)
Epistemologia
"Tem-se muito
frequentemente uma ideia da reflexão epistemológica que conduz a conceber a
teoria ou a epistemologia como uma espécie de discurso vago e vazio sobre uma
prática científica ausente. Para mim, a reflexão teórica manifesta-se apenas
dissimulando-se na prática científica que ela enforma. E poderia aqui evocar o
personagem de Hípias o Sofista. No Hípias Menor, Hípias aparece como uma
espécie de idiota incapaz de se elevar acima do caso particular. Interrogado
sobre a essência do Belo, ele responde enumerando obstinadamente exemplos
particulares uma bela marmita, uma jovem bela, etc. De facto, como mostrou Dupréel,
ele obedece à intenção explícita de recusar a generalização e a reificação na
abstracção que ela favorece. Não partilho a filosofia de Hípias (apesar de eu
passar timidamente por baixo de toda a reificação das abstracções que é tão
frequente nas ciências sociais), mas penso que não se pode pensar correctamente
a não ser através de casos empíricos teoricamente construidos."(...)p.135
Teoria
"A teoria não é uma
espécie de discurso profético ou programático, nascido da dissecação ou de uma
amálgama de teorias (cujo melhor exemplo continua a ser o esquema AGIL de
Parsons que hoje se anda a tentar ressuscitar). Tal como a concebo, a teoria
científica apresenta-se como um programa de percepção e de acção. um habitus
científico, se preferirem, que se mostra apenas no trabalho empírico em que se
realiza. Em consequência, ganhamos mais confrontando-nos com novos objectos que
envolvendo-nos em polémicas teóricas que mais não fazem que alimentar um
meta-discurso auto-engendrado e frequentemente vazio a propósito de conceitos
tratados como totems intelectuais.
Tratar uma teoria como um modus operandi que guia e estrutura
praticamente a prática científica implica, evidentemente, que abandonemos a
complacência um pouco fétichista com que os teóricos teoricistas a tratam. É
por isso que nunca tive necessidade de rever a genealogia dos conceitos que forjei
ou reactivei, tais como os de habitus, campo ou capital simbólico. Não tendo
sido extraídos de uma partenogénese teórica (n.t. "reprodução sem
fecundação"), estes conceitos não ganham muito em ser relocalizados em
relação aos seus usos anteriores. É na prática da pesquisa que estes conceitos
nascidos das dificuldades práticas do projecto de pesquisa devem ser avaliados.
A função dos conceitos que emprego é primeiro e acima de tudo a de designar, de
modo estenográfico, uma tomada de posição teórica, um princípio de escolha
metodológica, tanto negativo como positivo. A sistematização vem
necessariamente ex post, à medida que
as analogias fecundas vão emergindo, à medida que as propriedades úteis do
conceito são enunciadas e postas à prova.
Eu poderia, parafraseando
Kant, dizer que a pesquisa sem teoria é cega e que a teoria sem pesquisa é
vazia. O modelo socialmente dominante da sociologia repousa, infelizmente ainda
hoje, sobre uma distinção cavada e um divórcio prático entre a pesquisa empírica
sem teoria (penso aqui em particular nas ciências sem cientistas cujas
sondagens de opinião pública representam o paradigma, e a esse disparate
científico a que chamam "metodologia") e a teoria sem objecto dos
teóricos puros, actualmente exemplificada pelas discussões que dão brado em
volta da famosa relação micro-macro (por exemplo Alexander et al. 1987). A
oposição entre a pura teoria do lector
destinada ao culto hermenêutico das obras dos pais fundadores (quando não é dos
seus próprios trabalhos) por um lado, e a pesquisa empírica e a metodologia por
outro, é essencialmente de ordem social. Ela está inscrita nas ordens mentais e
institucionais da profissão, enraizada na distribuição de recursos, de postos
de trabalho e competências, e há escolas (n.t. correntes) inteiras (por exemplo
a análise conversacional ou a status attainment research) que podem ser
fundadas completamente sobre um método particular.(...)p.137
O Sociólogo ‑ le
métier de sociologue
"No tempo em que eu
estudava, aqueles que se distinguiam por um "cursus brillant" não
podiam, sob pena de indignação, envolverem-se em tarefas práticas tão
vulgarmente banais como as que fazem parte do trabalho do sociólogo. As
ciências sociais são difíceis por razões sociais o sociólogo é alguém que vai
para a rua e interroga o primeiro transeunte que aparece, escuta-o e tenta com
ele aprender. Aquilo que Sócrates costumava fazer. Mas aqueles que hoje
celebram Sócrates são os últimos a compreender e a aceitar essa espécie de
abdicação do filósofo-rei frente ao "vulgar" que procura a
sociologia."(...) p.176
"Flaubert dizia mais
ou menos "Eu gostaria de viver todas as vidas." É algo que compreendo
muito bem ter todas as experiências
humanas possíveis. Descubro que uma das mais extraordinárias satisfações que
encontra o trabalho sociológico é essa possibilidade de entrar na vida dos
outros. Pessoas que podem parecer chatas até mais não, nos clubes de luxo, por
exemplo, onde as conveniências interditam que se fale de coisas sérias, o mesmo é dizer de si próprio, do seu
trabalho, etc., estas pessoas podem tornar-se interessantíssimas quando falam
daquilo que fazem, do seu trabalho, por exemplo. Vá lá que na
vida-de-todos-os-dias eu não estou permanentemente a fazer sociologia. Mas,
mesmo sem me dar conta, "tiro fotografias" que "revelo" a
seguir. Penso que uma parte daquilo a que se chama intuição, que está no
princípio de bom número de hipóteses e análises, tem origem nestas
"fotos", por vezes bastante antigas. É por isso que o trabalho do
sociólogo se parece com o trabalho do escritor (penso por exemplo em Proust)
como ele, temos que fazer chegar à
explicação as experiências que, normalmente, passam despercebidas ou continuam
desconfiguradas."(...) p. 178
As Intuições e os positivismos tecnocratas
"Neste ponto, seria
bom reflectir sobre a noção de
intuição. Quando se diz que um sociólogo tem intuição, isso não é um elogio...
Posso dizer que levei quase vinte anos a descobrir porque raio fui logo escolher
este espaçozito... penso até que ‑ isto são coisas que nunca diria ainda
não há dez anos ‑ que a emoção da simpatia ‑ no seu sentido mais
forte ‑ por que passei, o patético que se observava na cena que vi, etc,
estiveram no ponto de partida do interesse que tive por esse objecto." (...)
p.139
"(...)Que dizer deste
trabalho, senão que transgride quase todos os preceitos da rotina metodológica,
e que é por isso que tem algumas hipóteses de agarrar tudo o que os inquéritos
normais deixam escapar por definição? Penso ‑ ou pelo menos espero ‑
que este possa preencher uma dupla função, científica e política lembrando aos
investigadores aquilo que a rotina dos inquéritos normais, sem falar dos
exercícios metodológicos ou teóricos formais ou formalistas, deixam escapar, e
aos tecnocratas que nos governam todo o que os procedimentos formalmente
democráticos da vida política (e em particular os rituais da vida de partido,
congresso, programas, moções, etc.) e as tranquilidades formalmente científicas
da investigação económica lhes fazem ignorar ‑ isto é, os sofrimentos de
uma nova espécie e as injustiças de uma nova forma."(...) p.174
A violência simbólica
Para falar o mais
simplesmente possível, a violência simbólica é essa forma de violência que é
exercida sobre um agente social com a sua cumplicidade. Dita assim, esta
formulação é perigosa porque pode abrir a porta a discussões escolásticas sobre
a questão de saber se o poder vem de baixo e se o dominado deseja a condição
que lhe é imposta, etc. Em termos mais rigorosos, os agentes sociais são
agentes conhecedores que, mesmo quando são submetidos a certos determinismos,
contribuem para produzir a eficácia daquilo que os determina na medida em que
eles estruturam o que os determina. E é quase sempre nos ajustes entre os
determinantes e as categorias de percepção que os constituem como tais, que
surge o efeito de dominação. (Isto mostra, curiosamente que, se tentarmos
pensar o poder nos termos da alternativa escolar da liberdade e do
determinismo, da escolha e da obrigação, não se consegue daí sair ‑
cf.1982a, p.36). Chamo desconhecimento ao facto de se reconhecer uma violência
que se exerce precisamente na medida em que é desconhecida como violência; é o
facto de aceitar esse conjunto de pressupostos fundamentais, pré-reflectidos,
com que os agentes sociais se envolvem pelo simples facto de aceitarem o mundo
por si só, isto é, como ele é, e de o achar natural porque lhe são aplicadas
estruturas cognitivas extraídas das próprias estruturas desse mundo. Pelo facto
de termos nascido num mundo social, aceitamos um certo número de postulados, de
axiomas que não são pensados e que não requerem inculcação. É por isso que a
análise doxica (n.t. "da doxa" ‑ do senso comum) do mundo, dado
o acordo imediato das estruturas objectivas com as cognitivas, é o verdadeiro
fundamento de uma teoria realista do poder e da política. De todas as formas de
"persuasão clandestina", a mais implacável é aquela que é exercida
simplesmente pela ordem das coisas.(n.t. "pelas coisas como elas
são/estão"). (...)p.143
A violência simbólica e os intelectuais
"Observa-se aqui a
função do conceito de arbitrário cultural (frequentemente posto em questão
pelas minhas críticas) a de instrumento de ruptura com a doxa
intelectualocentrica. Os intelectuais estão sem dúvida entre os mais mal
situado para tomar consciência da violência simbólica (particularmente aquela
exercida pelo sistema escolar) porque eles próprios por ela passaram com muito
mais intensidade que a mediania das pessoas e porque continuam a contribuir
para o seu exercício. (...)"p.145
As ortodoxias científicas
As ortodoxias científicas
são o produto de uma simulação de ordem científica que se conforma não a uma
lógica agonistica (n.t. "agon ‑ de jogo") da ciência mas à
representação da ciência projectada por uma certa epistemologia positivista.
(Um dos méritos de Kuhn foi o de fazer estilhaçar esse tipo de ortodoxia
positivista que mimava a cientificidade em nome da cumulação, da codificação,
etc. Essa simulação de um simulacro de ciência constituia, na realidade, um
factor de regressão. Porque, na verdade, um campo científico autêntico é um
lugar onde os investigadores negoceiam sobre os espaços de desacordo e sobre os
instrumentos com os quais podem resolver esses desacordos, e nada
mais.)"(...)p.152
Uma outra maneira de mimar
a ciência é ocupando uma posição de poder universitário que permita controlar
as outras posições, os programas de formação e as exigências do ensino, etc,
sintetizando, os mecanismos de reprodução da Universidade (1984b), e impôr uma
ortodoxia. Tais situações de monopólio nada têm a ver com um campo científico.
Um campo científico é um universo autónomo onde, para se defrontarem uns aos
outros, os investigadores devem abandonar todas as armas não científicas, a
começar pelas armas da autoridade universitária. Num campo científico
autêntico, podem-se levar a cabo discussões livres e contra-oposições violentas
a qualquer oponente com as armas da ciência porque a posição que se ocupa não
depende do campo ou do facto de se poder obter outra posição noutro lado. A
história intelectual mostra que uma ciência que é controversa, lugar de
discussões, cheia de conflitos autênticos, isto é, científicos, é mais avançada
que uma ciência onde reina um consenso fundado sobre conceitos elásticos,
programas vagos e volumes colectivos.(...)p.153 Os campos científicos mais avançados são lugares de uma alquimia
através da qual a libido dominandi
científica é necessariamente transmutada em libido
sciendi (1990a,p.300). Este é o fundamento da minha resistência ao consenso
mudo que, a meus olhos, é a pior das situações científicas possível à falta de
outra coisa, tenhamos ao menos conflitos!(...)"p.154
O presente do quotidiano social e científico
"Estes conflitos
aparentes, que mobilizam jornalistas e ensaistas que, dentro do campo
científico querem assegurar um suplemento de notoriedade respondendo à procura
de "suplément d'âme", dissimulam oposições reais que, raramente estão
relacionadas, pelo menos directamente, com os conflitos "mundanos". O
espaço no qual se situa o investigador não é o da "actualidade", seja
ela a actualidade política ou a "intelectual", como se diz,
entendendo-se por isso o que se discute nas "páginas livres" dos
jornais e das revistas é o espaço
relativamente intemporal ‑ Marx e Weber, Durkheim e Mauss, Husserl e
Wittgenstein, Bachelard e Cassirer fazem tão parte dele como Goffman, Elias ou
Cicourel ‑ e de facto internacional, de todos os que contribuiram para
produzir a problemática frente à qual o investigador se encontra e que nada tem
a ver, frequentemente, com os problemas que se colocam ‑ e que lhe
colocam ‑ aqueles que têm os olhos postos na actualidade imediata. (...)
p. 156
Os males da pedagogia
"É bem sabido que não
basta ver o que está metodologicamente certo para o realizar ou para o fazer
aceitar; a epistemologia pura é frequentemente impotente quando não é
acompanhada de uma crítica sociológica das condições de validade da epistemologia. Daí que, com argumentos
epistemológicos não se possa destruir um Streit
(debate) no qual as pessoas têm interesses vitais. Penso ainda que, se se
quizer retardar as ciências sociais, basta, como se lança um osso aos cães,
lançar Streiten idiotas.
Infelizmente, o campo francês é deste tipo; não há Streit em que não pegue.
Mas isto não é tudo. O que
faz com que todos estes dualismos, todas estas oposições enraizadas nos
antagonismos sociais sejam inabaláveis, é o facto de disporem de outro suporte
social, a pedagogia. Chego a pensar, e a dizer, que o principal obstáculo ao
conhecimento científico, pelo menos nas ciências sociais, são os professores. Para ensinarem eles têm
necessidade (eu sei, eu ensinei), de oposições simples. Então os dualismos são
muito cómodos isto dá um plano com uma primeira parte X, uma segunda parte Y, e
uma terceira parte eu próprio. Existe um certo número de falsos debates mortos
e enterrados (interno/externo, qualitativo/quantitativo, etc.) que só existem
porque os professores têm necessidade deles para sobreviver, porque lhes
permite fazerem curricula e planos de cursos e dissertações. (...)" p.157
As interferências do senso comum
"As particularidades
da sociologia têm muito a ver com a imagem social que dela constroem os
profanos (e também muitos especialistas). Durkheim gostava de dizer que um dos
maiores obstáculos à constituição de uma ciência da sociedade residia no facto
de nestas matérias toda a gente se considerar detentora da ciência infusa
(n.t."ciência natural nata") . Por exemplo, os jornalistas que nunca
pensariam em discutir trabalhos de biologia ou de física ou mesmo em
misturar-se num debate filosófico entre um físico e um matemático, não hesitam
em dissertar sabiamente sobre o que chamam os "problemas da
sociedade" e, a jfazer juízos sobre uma análise científica do funcionamento da Universidade ou do mundo
intelectual sem mesmo suspeitar das estratégias específicas dessa análise (por
exemplo a questão das relações entre estruturas sociais e estruturas
cognitivas) que, como em todas as ciências, são produto da história autónoma
das discussões e da pesquisa científicas (penso por exemplo nesse jornalista
que, quando apareceu a Noblesse d'Etat, me pedia, com toda a boa fé e, devo
dizê-lo, com toda a gentileza, para falar, em três minutos, a favor das grandes
escolas, frente ao presidente dos antigos do ENA, que falaria contra... e que
não compreendia como é que eu poderia recusar isto)." (...)p.160
Expressões sinónimas ‑ dinheiro, financiamento,
dinheiro, fundos, recursos, pesquisa, investigação, trabalho, trabalho de
pesquisa, dinheiro.
"A existência de um
corpo comum de instrumentos de reflexividade, dominados e utilizados por todos,
seria um poderoso factor de autonomia ( a ausência de uma cultura
epistemológica mínima explica porque é que os investigadores tão frequentemente
constroem teorias da sua prática menos interessantes que a prática das suas
teorias). Mas é preciso também evocar o problema do financiamento. Ao contrário
de outras actividades intelectuais (particularmente a filosofia), a sociologia
custa caro (e rende pouco...). É fácil deixar-se prender numa engrenagem do
contrato que pede outro contrato (de que nunca se sabe exactamente se se
destina a financiar as necessidades da pesquisa se as necessidades do
investigador...). Era preciso elaborar uma política racional da gestão das relações
com os patrões de fundos de investigação (sejam eles os governos, fundações ou
patrões privados). Outro princípio é necessário incluir na concepção do
programa de pesquisa as condições reais da sua realização. Um questionário
muito lindo, um corpo de hipóteses magnífico, um programa de observação
impecável que não incluem as condições práticas da sua realização são nulos e
não conseguidos. Dito isto, esta forma de realismo científico não é ensinada,
nem espontâneamente inscrita nos habitus da maior parte daqueles que enveredam
pelas ciências sociais. Vejo centenas de projectos de pesquisa impecáveis que conhecem uma morte súbita porque não
integraram as condições sociais da possibilidade de um programa concebido in abstracto. Numa palavra, e de um modo
geral, é preciso aprender a evitar ser joguete das forças sociais na prática da
sociologia."(...) p. 159
Universais da Comunicação
"Não existem, mesmo
que o afirme Habermas, universais transhistóricos da comunicação; mas existem,
de certeza, formas de organização social da comunicação que são de natureza a
favorecer a produção do universal. Não se pode contar apenas com a predicação
moral para excluir da sociologia a comunicação "sistematicamente
distorcida". Apenas uma Realpolitik
da razão científica pode contribuir para transformar as estruturas da
comunicação, contribuindo para mudar ao mesmo tempo os modos de funcionamento
dos universos onde a ciência é produzida e as disposições dos agentes que
rivalizam no seio destes universos, daí que a instituição que mais contribui
para os configurar seja a Universidade."(...) p.162
As interferências dos Poderes na Ciência
"Uma ciência
emancipada só é possível se forem reunidas as condições sociais e políticas que
a podem realizar. Isso requer, por exemplo, que se faça tudo para acabar com os
efeitos de poder (dominação) que distorcem a competição científica, como a eliminação
de alguns daqueles que são dignos de entrar no jogo (através da recusa de
pedidos legítimos de bolsas ou de subvenções para investigação, formas brutais
de censura mas que se exercem no quotidiano); ou como a censura que exerce a
bemposta academia obrigando os espíritos mais inovadores a dispensar uma boa
parte do seu tempo a fornecer provas completas, conformes aos cânones
positivistas do momento, de cada uma das suas propostas, impedindo-os assim de
produzirem uma quantidade de novas propostas cuja validação poderia ser deixada
a outros. Como mostrei em Homo academicus,
é sobretudo através do controlo do tempo que se exerce o poder académico."(...)
p.164
O lirismo dos adolescentes (que os intelectuais acicatam)
"Evidentemente não é
muito agradável desencantar os adolescentes, especialmente porque há coisas
muito sinceras e profundas na sua revolta, como a vontade de se voltar contra a
ordem estabelecida, contra a resignação dos adultos submetidos e demissionários,
contra a hipocrisia universitária e todo um conjunto de coisas que eles
conhecem muito bem porque não estão desencantados, cínicos, e porque eles não
passaram pelo volte-face por que a maior parte das pessoas da minha geração,
pelo menos em França, passou. Pode ser que, para ser um bom sociólogo, seja
preciso reunir disposições associadas à juventude, como uma certa força de
rutura, de revolta, de "inocência" social, e outras mais normalmente ligadas ao envelhecimento como o
realismo, a capacidade de enfrentar as realidades rugosas e deprimentes do
mundo social...
É verdade que a sociologia
exerce um efeito desencantador, mas o realismo científico e político que ela
implica e reforça evita que se lute onde não existe liberdade ‑ o que
frequentemente é um alibi da má fé ‑ de modo a ocupar plenamente os
lugares de verdadeira responsabilidade. Se é verdade que a sociologia, e talvez
mais particularmente aquela que pratico, possa desencorajar o sociologismo como
submissão às leis de ferro da sociedade (e isso mesmo que a sua intenção seja
exactamente oposta) penso que a alternativa que Marx estabelecia entre o
utopismo e o sociologismo é bastante enganosa existe lugar, entre a resignação
sociologista e o voluntarismo utopista, para um utopismo racional, isto é, uma
utilização politicamente consciente e racional dos limites de liberdade
oferecidos pelo conhecimento das leis sociais e especificamente das suas
condições históricas de validade. A tarefa política da ciência é a de se virar
tanto contra o voluntarismo irresponsável como contra o cientismo fatalista,
trabalhando para definir um utopismo racional utilizando o conhecimento do
provável para fazer prever o possível."(...) p.169
O Campo Político
Ao longo da última década,
o campo político fechou-se cada vez mais sobre si próprio, as suas rivalidades
internas, os seus jogos e disputas particulares. Os responsáveis políticos são
prisioneiros de um ambiente tranquilizador de tecnocratas diligentes que
ignoram quase tudo acerca da existência normal dos seus concidadãos, e que
ignoram sobretudo a extensão da sua própria ignorância. Eles governam fiando-se
na magia das sondagens de opinião, essa tecnologia pseudo-científica de demagogia
racional que só lhes pode oferecer respostas extorquidas às questões impostas
que os próprios indivíduos inquiridos não se põem, pelo menos de certa maneira,
até que estas lhes apareçam à frente. Foi reagindo contra isto que me propus
levar a cabo uma pesquisa exploratória sobre o sofrimento, sobre a miséria, a
doença ou o ressentimento social que suporta as diferentes formas não
institucionalizadas de protesto que recentemente se manifestaram (as dos
estudantes de liceu, dos enfermeiros, dos professores, etc.) e das tensões que
inspiram a "política privada" das discriminações e das recriminações
quotidianas."(...) p. 173
Histórias de vida e linearidade (diegética) discursiva
"Vi aí, muito
claramente, até que ponto as histórias de vida lineares, com que muitas vezes
se contentam os etnólogos e os sociólogos, são artificiais e as pesquisas
aparentemente mais informais de Virgínia Woolf, de Faulkner, de Joyce ou de
Claude Simon me parecem hoje bastante mais "realistas" (se a palavra
faz sentido), mais verdadeiras antropologicamente, mais próximas da verdade da
experiência temporal, que os discursos lineares a que fomos habituados pela
leitura dos romances tradicionais."(...)p.179
Os usos da Sociologia
"Infelizmente, podem
sempre dar-se duas aplicações diferentes às análises sociológicas do mundo
social e, especialmente, do mundo intelectual as aplicações que podemos chamar clínicas, tais como a que há instantes
evocava ao falar da socianálise, envolvendo a procura, nas descobertas
científicas, dos instrumentos para uma compreensão de si sem condescendências;
e as aplicações que se podem dizer cínicas,
e que consistem na procura, dentro da análise dos mecanismos sociais, dos
instrumentos para o "sucesso" no mundo social (que foi o que fizeram
certos leitores de La Distinction, ao
tratarem o livro como um manual de "savoir-vivre") ou para orientarem
as suas estratégias no mundo intelectual. É natural que me esforçe
constantemente para encorajar as
leituras clínicas. Mas é certo que a lógica das lutas intelectuais ou políticas
puxa para a utilização cínica, e sobretudo para o uso polémico da sociologia,
tratada como um instrumento particularmente poderoso de luta simbólica, mais do
que para a utilização clínica que oferece um meio para conhecer e compreender
os outros (e a si mesmo)."(...) p.183
O bom professor de Sociologia
"O sociólogo que
procura transmitir um habitus científico parece-se mais com um treinador
desportivo de alto nível que com um professor da Sorbonne. Fala pouco por
princípios e por preceitos gerais ‑ é claro que pode enunciá-los, como o
fiz em Le Métier de Sociologue, mas
sabendo que não se pode ficar por aí (não há nada pior, num certo sentido, que
a epistemologia, quando ela se torna um tema de dissertação e um substituto da investigação). O professor
procede por indicações práticas, muito
parecido nisso com o treinador que mima um movimento ("no vosso lugar eu
faria desta maneira..."), ou por "correcções" trazidas à prática
durante a sua consecução, e concebidas dentro do próprio espírito da prática
("eu não colocaria essa questão, pelo menos dessa
forma...")."p.194-5
Provas, dados e metodologias
"Mais precisamente, é
apenas em função de um corpo de hipóteses derivado de um conjunto de
pressuposições teóricas que qualquer dado empírico pode funcionar como prova
ou, como dizem os Anglo-Saxões, como evidence.
Ora, muitas vezes procede-se como se aquilo que pode ser reivindicado como evidence fosse evidente. Isto em função
de uma rotina cultural muitas vezes
imposta e inculcada pela educação (os famosos cursos de "metodologia"
das universidades americanas). O fetichismo da evidência conduz à rejeição de
trabalhos empíricos que não aceitam como evidente a mesma definição da
evidência cada investigador concede o estatuto de "dados", data, apenas a uma pequena fracção dos
dados, não como deveria ser, àquela que é chamada a existir cientificamente
pela sua problematicidade (o que é normalíssimo), mas sim à que é validada e
garantida pela tradição pedagógica na qual o investigador se situa, e apenas a
essa."(...) p.197
"E toma-se como uma
rutura escandalosa com o monoteísmo metodológico o facto de se combinar a
análise do discurso com a análise etnográfica! Era preciso levar a cabo a mesma
análise , isto é, analisar as técnicas de análise ‑ a análise
multivariada, a análise de regressão, a path
analysis, a network analysis, a factor analysis. Também aqui o monoteísmo é rei. Isto,
decerto, porque dá uma aparência de fundamento metodológico à arrogância da
ignorância a sociologia mais elementar da sociologia ensina que, com bastante
frequência, as condenações metodológicas são uma maneira de fazer da
necessidade virtude, de afectar e ignorar (num sentido activo) aquilo que
simplesmente se ignora."(...)p.198
"Em poucas palavras,
a investigação é algo de demasiado sério e difícil que que nos possamos dar ao
luxo de confundir a rigidez, que é o
contrário da inteligência e da invenção, com o rigor, e privarmo-nos deste ou daquele recurso que pode oferecer o
conjunto das tradições intelectuais da disciplina ‑ e das disciplinas
vizinhas, a etnologia, a economia, a história. Teria vontade de dizer "é
interdito interditar", ou, cuidado com os cães de guarda metodológicos. É
claro que a liberdade extrema que prego, e que me parece de bom senso, tem por
contrapartida uma extrema vigilância sobre as condições de utilização das
técnicas, da sua adequação ao problema colocado e às condições da sua
execução."(...) p. 199
Maneiras de trabalhar ‑ análise das relações
"Uma das dificuldades
da análise relacional é que, a maior parte das vezes, só se podem conhecer os
espaços sociais sob a forma de distribuições de propriedades entre os
indivíduos. Porque a informação acessível está relacionada com os indivíduos.
Assim, para conhecer o sub-campo do poder económico, e as condições económicas
e sociais da sua reprodução, é preciso interrogar os duzentos patrões franceses
mais importantes. Mas é preciso a todo
o custo evitar a regressão no sentido da "realidade" das unidades
sociais pré-construidas. Para isso, sugiro-vos o recurso a esse instrumento
muito simples e cómodo de construção do objecto que é a tabela dos traços pertinentes de um conjunto de agentes ou instituições
; tratando-se por exemplo de analisar diferentes desportos de combate (luta,
judo, aikido, etc.) ou diferentes estabelecimentos de ensino superior, ou
diferentes jornais parisienses, eu inscreveria cada uma das instituições em
cada linha e abriria uma nova coluna cada vez que descobrisse uma propriedade
necessária para caracterizar uma das instituições, o que me obrigaria a
interrogar todas as outras sobre a presença ou ausência dessa propriedade. Isto
na fase puramente indutiva da recolha. Depois é preciso fazer desaparecer os
registos dobrados e juntar as colunas consagradas aos traços estruturalmente ou
funcionalmente equivalentes, de modo a reter todos os traços ‑ e apenas
esses ‑ que são capazes de discriminar com maior ou menor força as
diferentes instituições e são por isso mais pertinentes. Este instrumento tão
simples tem a virtude de obrigar a pensar em termos de relação, podendo ser as
unidades sociais consideradas e as suas propriedades caracterizadas em termos
de presença ou ausência (sim/não)."(...) p.202
"O raciocínio
analógico, que se apoia na intuição racional das homologias (ela própria
fundada sobre o conhecimento das leis invariantes dos campos), é um instrumento
formidável de construção do objecto é ele que permite a imersão completa na particularidade do caso estudado sem nele
se afundar, como o faz a ideografia empirista, e realizar a intenção de
generalização, que é a própria ciência, não pela aplicação de grandes
construções formais e vazias, mas por via dessa maneira particular de pensar o
caso particular que consiste em pensá-lo exactamente como tal. Este modo de
pensar realiza-se logicamente com recurso aos método comparativo, que permite
pensar em termos relacionais um caso particular constituido em caso particular
do possível, com o apoio das homologias estruturais entre campos diferentes (o
campo do poder universitário e o campo do poder religioso, através da homologia
das relações professor/intelectual e padre/teólogo) ou entre estados diferentes
do mesmo campo (o campo religioso na Idade Média e hoje)."(...) p.205
Pensar e construir o Objecto Científico
"Mas construir um
objecto científico é, primeiro e antes de tudo, cortar com o senso comum, isto
é, com as representações partilhadas por todos, sejam elas os lugares comuns da
existência normal ou representações oficiais, frequentemente inscritas nas instituições,
por isso tanto na objectividade das organizações sociais como nos cérebros. O
pré-construido está por todo o lado. O sociólogo é literalmente assediado pelo
pré-construido, como toda a gente. Ele tem que conhecer um objecto, o mundo
social, do qual ele é um produto , de modo que os problemas que ele lhe põe, os
conceitos ‑ e em particular as noções classificatórias que ele emprega para o conhecer, noções
comuns como os nomes das profissões, noções sábias como as que veicula a
tradição da disciplina ‑ têm todas as hipóteses de ser o produto desse
mesmo objecto. O que contribui para lhes conferir uma evidência ‑ a que
resulta da coincidência entre as estruturas objectivas e as estruturas
subjectivas ‑ que as põe ao abrigo da problematização."(...)p. 207
"Uma prática
científica que se esquece de se colocar a si própria em questão não sabe, a bem
dizer, aquilo que anda a fazer.(...)p.208
"Grande parte dos
objectos reconhecidos pela ciência oficial, títulos de trabalhos, são apenas
problemas sociais que entraram clandestinamente na sociologia, pobreza,
delinquência, juventude, educação, lazer, desporto, etc, e que, como concluiria
uma análise da evolução ao longo do tempo das grandes divisões realistas da
sociologia, pelo modo como elas se exprimem
nas rúbricas nas grandes revistas ou nas nomeações de grupos de trabalho
nos congressos mundiais da disciplina, variam consoante o nível das flutuações
da consciência social do momento. Esta é uma das mediações através da qual o
mundo social constrói a sua própria representação, servindo-se para tal da
sociologia e do sociólogo. Deixa em estado irreflectido o seu próprio
pensamento é, para um sociólogo mais que para qualquer outro pensador,
sujeitar-se a ser apenas o instrumento daquilo que pretende pensar."(...)
209
"pode pensar-se nos
problemas da família, do divórcio, da delinquência, da droga, do trabalho
feminino, etc. Em todos os casos, descobre-se que o problema que o positivismo
normal (que é o primeiro movimento de todo o investigador) aceita como natural,
foi socialmente produzido, no seio e
através de um trabalho colectivo de
construção da realidade social; que
foi preciso que houvessem reuniões, comissões, associações, manifestações,
petições, comités, ligas de defesa, movimentos, pedidos, deliberações, votos,
programas, tomadas de posição, projectos, resoluções, etc, para o que era e
poderia ter continuado a ser um problema privado, particular, singular, se
torne um problema social, um problema
público, do qual se pode falar publicamente
‑ pense-se no aborto ou na sexualidade ‑ ou mesmo um problema
oficial, sendo objecto de tomadas de posição oficiais, seja de leis ou
decretos.(...) A imposição da problemática a que se sujeita o investigador ‑
como todo o agente social ‑ e de que ele se faz amplificador sempre que
aborda questões da actualidade sem as submeter a exame ‑ incluindo-as,
por exemplo, nos seus questionários ‑ é
no entanto muito provável que os problemas que são taken for granted num universo social são aqueles que têm mais
hipóteses de receber os grants
(garantias, recursos), materiais ou simbólicos, de serem, como se diz, bem
vistos, pelos administradores científicos e pelas administrações (é por exemplo
o que faz com que as sondagens, essa ciência sem savant, sejam sempre aprovadas por aqueles que têm os meios para a
encomendarem, e que por isso se mostram mais críticos da sociologia quando esta
corta com as suas encomendas ou as suas ordens.)"(...)p. 211
"Sabe-se que nas
ciências sociais as ruturas epistemológicas são frequentemente ruturas sociais,
cortes com as crenças fundamentais de um grupo e, por vezes, com as crenças
fundamentais de um corpo de profissionais, com um corpo de certezas partilhadas
que funda a communis doctorum opinio. Praticar a dúvida radical em sociologia é
um pouco manter-se fora da lei."(...) p.211
A Linguagem
A linguagem coloca um
problema particularmente dramático ao sociólogo. Ela é de facto um imenso
depósito de pré-construções naturalizadas, por isso ignoradas enquanto tal, que
funcionam como instrumentos inconscientes de construção. Podia agarrar no
exemplo da taxinomias profissionais...(...) p.212
Excessos de zelo
"Tomados como eles se
dão, os dados ‑ os famosos dados
dos sociólogos positivistas ‑ são-nos dados sem problemas. Tudo anda por
si. Abrem-se as portas, e as bocas também. Que grupo recusaria o registo
sacralizante do historiógrafo? O inquérito sobre os bispos ou sobre os patrões
que aceita (tacitamente) a problemática episcopal ou patronal recebe o apoio do secretariado do episcopado ou do
CNPF (n.t. Confederação do Patronato
Francês) e os bispos e os patrões que se apressam a vir comentar os resultados
não se esquecem de oferecer um brevet de objectividade ao sociólogo que soube
dar uma realidade objectiva ‑ pública ‑ à sua representação
subjectiva do seu próprio ser social. Em resumo, desde que fiquemos pela ordem
da aparência socialmente constituida, temos pelo nosso lado e connosco, todas
as aparências, e mesmo as aparências de cientificidade. Pelo contrário, logo
que decidamos trabalhar sobre um verdadeiro objecto construido, tudo se torna
difícil o progresso "teórico" engendra um excesso de dificuldades
"metodológicas". Os "metodólogos" não terão qualquer
problema em encontrar os erros nas operações que é preciso realizar para
apreender o objecto construido. (A metodologia, é como a ortografia, de que se
dizia "É a ciência dos burros." É um recenseamento de erros de que se
pode dizer que é preciso ser estúpido para os cometer. Para ser sincero, devo
dizer que, entre as falácias recenseadas, há algumas que não seria capaz de
encontrar sozinho. Mas, na maior parte das vezes, são os erros triviais que
fazem a felicidade dos professores. Os sacerdócios, como dizia Nietsche, vivem
do pecado...)"(...) p.214
Para uma sociologia científica
"Entre os obstáculos
ao desenvolvimento de uma sociologia científica, um dos piores é o facto das
verdadeiras descobertas envolverem os maiores custos e os menores rendimentos,
não apenas nos mercados normais da existência social mas também no mercado universitário,
de onde seria de esperar uma maior autonomia. Como tentei mostrar, acerca dos
custos e benefícios científicos e sociais das noções de profissão e campo, para
fazer ciência é frequentemente preciso não ligar às aparências de
cientificidade, contradizer as próprias normas habituais e desconfiar dos
critérios normais do rigor científico (poder-se-ìa examinar, deste ponto de
vista, os respectivos estatutos da sociologia e da economia). As aparências são
sempre para a aparência. Frequentemente, na verdadeira ciência, as aparências
iludem e, para fazer avançar a ciência, é preciso assumir o risco de não ter
todos os sinais exteriores de cientificidade (de que se esquece serem muito
fáceis de simular). Entre outras razões porque os erros, para os pouco-hábeis que se ficam pelos cânones
aparentes da "metodologia" elementar, encontram-nos com a tranquilidade positivista que os leva a percebê-los como
"erros", e como efeitos de ignorância as escolhas metodológicas
fundadas na recusa das facilidades da "metodologia".(...)p.215
As pressões a que o sociólogo se sujeita
"Daí essa espécie de double bind(paradoxo comunicacional) a
que todo o sociólogo digno desse nome está constantemente exposto sem os
instrumentos do pensamento que ele vai buscar à sua tradição de eruditos, ele
não é nada, apenas um amador, um autodidacta, um sociólogo espontâneo ‑
sem ser o mais bem colocado, tão evidentes são, frequentemente, os limites da
sua experiência social; mas estes instrumentos fazem-no permanentemente correr
um perigo de erro e o risco de
substituir a doxa naive do senso comum pela doxa do senso comum mais erudito,
que oferece sob o nome de ciência uma simples transcrição do discurso do senso
comum.(...) p.217
"O que eu aí digo do
efeito de teoria que a teoria marxista das classes exerceu, e cuja
"consciência de classe" medida empiricamente é por esse lado um
produto, isso é apenas um caso particular de um fenómeno mais geral a
existência de uma ciência social, e de práticas sociais que se reclamam dessa
ciência, como as sondagens de opinião, os conselhos de comunicação, , a
publicidade, etc, mas também a pedagogia e, cada vez mais, a acção dos homens
políticos e dos altos funcionários, dos homens de negócios ou dos jornalistas,
etc, faz com que existam cada vez mais agentes, no próprio seio do mundo social
que envolvem saberes superiores, senão científicos, na sua prática, e sobretudo no seu trabalho de produção de
representações do mundo social. De modo que, cada vez mais, a ciência corre o
risco de registar, sem o saber, produtos práticos que se reclamam da ciência.
Enfim, mais subtilmente, a
submissão aos hábitos de pensar, mesmo aqueles que, noutras circunstâncias
possam exercer um formidável efeito de rutura, podem também conduzir a formas
inesperadas de ingenuidade. E não hesitaria
dizer que o marxismo, nos seus usos sociais mais comuns, constitui-se
frequentemente como a forma por excelência do préconstruido erudito,
precisamente por não levantar suspeitas.(...) p.220
"Tratando-se de
pensar o mundo social, é sempre de ter em conta as dificuldades ou as ameaças.
A força do préconstruido reside no facto de este se inscrever tanto nas coisas
como nos cérebros, apresentando-se sob a objectivação da evidência, que passa
despercebida porque vale por si só. A ruptura é de facto uma conversão do olhar e pode dizer-se do ensino da pesquisa em sociologia que este
deve primeiro "dar novos olhos", como por vezes dizem as filosofias
iniciáticas. Trata-se de produzir senão um "homem novo", pelo menos
um "novo olhar", um olho
sociológico. E isso não é possível sem uma verdadeira conversão, uma metanoia, uma revolução mental, uma
mudança de toda a visão do mundo social.(...)p.221
Uma objectivação participante
"(...)A objectivação
participante, que é sem dúvida o cume da arte sociológica, só se realiza quando
repousa sobre uma objectivação tão completa quanto possível do interesse em
objectivar que está inscrito no acto da participação; e sobre uma suspensão
desse interesse e das representações que induz." p.231