Sobre a arte de compor

Como todas as formas de espectáculo, a música prende a atenção, induz uma espécie de paragem no tempo para o espectador. A melhor música é aquela que melhor consegue fazer isso, e tal depende de muitos factores. O fluir das ideias musicais deve para tal manter o espírito alerta, seja pela permanente novidade, seja pela manutenção de uma espectativa. A arte de compor é a que diz respeito a estes requisitos. A arte da execução é a que diz respeito à transmissão da intencionalidade do compositor. Nem numa nem noutra há receitas, apenas se podem apontar erros mais ou menos óbvios ou subtis, e por isso nada é definitivo em arte. No entanto, nada do que acima vem dito joga com a própria natureza das ideias, isto é, se uma ideia é bela ou não, isso pouco importa se não for aproveitada com a beleza que lhe corresponde. Uma melodia não encerra essencialmente nada de estético. É, no entanto, o que mais de pessoal existe num compositor. Os compositores só têm um carisma se tiverem uma linguagem, como que um conjunto de "tiques" na melodia; por exemplo, ao ouvir-se o Opus 1 de Schumann (variações ABEGG) antevê-se já todo o Schumann que em obras posteriores ganhou dimensões extraordinárias. «Inspiração» passa pela linguagem pessoal, que a meu ver é totalmente instintiva e só pode ser encontrada através da descoberta de si próprio pelo jogo, e também passa pelo trabalho, duro, de adquirir meios técnicos para tirar partido dos próprios recursos. A originalidade do compositor "sente-se" das duas maneiras, pois os recursos técnicos, por muito completos que sejam, são escolhidos instintivamente como as notas de uma melodia o são. Schubert, diz-se, era fraco em contraponto, e por isso recorria a modulações, inusitadas para a época, para poder desenvolver as suas ideias. Acho isto demasiado simplista. Schubert talvez não gostasse tanto de desenvolver as suas ideias pelos caminhos que outros preferiam. Ele não inventou modulações, preferiu-as. Para ele, como para um Bach, interessava construir composições que se prolongassem no tempo sem permitir a perda de interesse pelo ouvinte. E fê-lo de acordo com o tipo de melodia que sabia encontrar, por isso moduladores muito mais arrojados nunca repetiram os seus resultados. Nem o contraponto de Bach é comparável ao de Josquin, se bem que ambos realizassem peças monumentais e igualmente capazes de maravilhar.

O punk-rock foi uma reacção oportuna ao aparente esgotamento de soluções na linguagem pop. Um dos piores vícios, o de medir as canções pelo tempo que duravam, foi dos mais eficazmente debelados. A possibilidade de estender no tempo um discurso, musical ou de qualquer tipo, depende da capacidade de reter a atenção daqueles a quem o mesmo é dirigido. Conseguir que uma canção mantenha o interesse constante muito para além dos universais três minutos é um feito, mas está longe de constituir um fim em si mesmo. Grandes canções, como o "Yesterday" dos Beatles, duram até apenas dois. Se se forem a ver as que duram cinco, seis, dez, vinte, e que mesmo assim são bem-sucedidas, há padrões das suas estruturas que falam por si: muitas das mais compridas não passam de suites, ou seja, trechos absolutamente diversos que numa sucessão específica formam uma peça de conjunto, tão bem quanto possam renovar a audição e valorizar-se mutuamente. Outras, têm a estrutura simples das canções (por exemplo AABAB) mas cada parcela é particularmente longa. Ainda existe a possibilidade de acrescentar estrofes ou repetir refrões, ou a de repetir sob a forma de variações. Algumas destas formas podem combinar-se. Só a natureza das ideias musicais, a sua coesão interna, serve de indicador para essas opções. O compositor é o primeiro e único responsável pelo aproveitamento que tira delas, e a sua inspiração mede-se imenso através disso. Deverá importar-lhe, acima de tudo, a audição e os seus limites. Saber quando deve aplicar concisão ou expansão.