Dois poemas de António Gedeão

POEMA DO AUTOCARRO

Quantos biliões de homens! Quantos gritos
de pânico terror!
Quantos ventres aflitos!
Quantos milhões de litros
do movediço amor!
Quantos!
Quantas revoluções na cósmica viagem!
Quantos deuses erguidos! Quantos ídolos de barro!
Quantos!
até eu estar aqui nesta paragem
à espera do autocarro.
E aqui estou, realmente.
Aqui estou encharcado em sangue de inocente,
no sangue dos homens que matei,
no sangue dos impérios que fiz e que desfiz,
no sangue do que sei e que não sei,
no sangue do que quis e que não quis.
Sangue.
Sangue.
Sangue.
Sangue.

Amanhã, talvez nesta paragem de autocarro,
numa hora qualquer, H ou F ou G,
uns homens hão-de vir cheios de medo e sede
e me hão-de fuzilar aqui contra a parede,
e eu nem sequer perguntarei porquê.

Mas...

Não há mas.
Todos temos culpa, e a nossa culpa é mortal.

Mas eu só faço o bem, eu só desejo o bem,
o bem universal,
sem distinguir ninguém.

Todos temos culpa, e a nossa culpa é mortal.
Eles virão e eu morrerei sem lhes pedir socorro
e sem lhes perguntar porque maltratam.
Eu sei porque é que morro.
Eles é que não sabem porque matam.
Eles são pedras roladas no caos,
são ecos longínquos num búzio de sons.
Os homens nascem maus.
Nós é que havemos de fazê-los bons.

Procuro um rosto neste pequeno mundo do autocarro,
um rosto onde possa descansar os olhos olhando,
um rosto como um gesto suspenso
que me estivesse esperando.

Mas o rosto não existe. Existem caras,
caras triunfantes de vícios,
soberbamente ignaras
com desvergonhas dissimuladas nos interstícios.
O rosto não existe.

Procura-o.

Não existe.

Procura-o.
Procura-o como a garganta do emparedado
procura o ar;
como os dedos do afogado
buscam a tábua para se agarrar.

Não existe.

Vês aquele par sentado além ao fundo?

Vês?

Alheio a tudo quanto vai pelo mundo,
simboliza o amor.
Podia o céu ruir e a terra abrir-se,
uma chuva de lodo e sangue arrasar tudo
que eles continuariam a sorrir-se.

Não crês no amor?

?

Não ouves?

?

Não crês no amor?

Cala-te, estupor.
Tenho vergonha de existir.
Vergonha de aqui estar simplesmente pensando,
colaborando
sem resistir.

Disso, e do resto.
Vergonha de sorrir para quem detesto,
de responder pois é
quando não é.
Vergonha de me ofenderem,
vergonha de me explorarem,
vergonha de me enganarem,
de me comprarem,
de me venderem.

Homens que nunca vi anseiam por resolver o meu problema concreto.
Oferecem-me automóveis, frigoríficos, aparelhos de televisão.
É só estender a mão
e aceitar o prospecto.

A vida é bela. Eu é que devia ser banido,
expulso da sociedade para que a não prejudique.

Hã?

Ah! Desculpe. Estava distraído.
Um de quinze tostões. Campo de Ourique.

Máquina de fogo, 1961


TROVAS PARA SEREM VENDIDAS NA TRAVESSA DE S. DOMINGOS

O repórter fotográfico
foi ver a fuzilaria.
Ganhou o prémio do ano
da melhor fotografia.

Notícias não confirmadas
informam, de origens várias,
que as tropas revolucionárias
recentemente cercadas
acabam de ser esmagadas
com perdas extraordinárias.

Na redacção do jornal
corre tudo em sobressalto.
A hora é sensacional.
Toda a gente dormiu mal,
gesticula e fala alto.

Passageiros recém-chegados
do lugar da revolução
viram dúzias de soldados
prontos a ser fuzilados
e muitos já arrumados
e amontoados no chão.

Agora que se anuncia
já estar regulado o tráfico,
inda mal rompera o dia
foi ver a fuzilaria
o repórter fotográfico.

Vá lá, vá lá, felizmente,
felizmente que ao chegar
inda havia muita gente
que estava por fuzilar.

Numa ridente campina
de papoilas salpicada,
um sol de lâmina fina
cortava a densa neblina
da metralha disparada.

Berrando como vitelos
a malta dos condenados
avançava aos atropelos
e arrepanhava os cabelos
com gestos alucinados.

O repórter já suava,
não tinha mãos a medir;
ora a máquina carregava,
apontava e disparava,
ora no chão se agachava,
pulava e gesticulava
com afanosa presteza.

Há empregos, com franqueza,
nem haviam de existir.
A um tipo de mãos nojentas
que aos berros sobressaía
gritando frases violentas,
focou-o mesmo nas ventas
no momento em que caía.

Mas o melhor não foi isso.
O melhor foi uma velhota
que pôs tudo em rebuliço.
Rápida como um rastilho,
em convulsivos soluços,
foi estatelar-se de bruços
sobre o corpo do seu filho.

«Meu menino, meu menino!
Valha-me a Virgem Maria!
Que vai ser o meu destino
sem a tua companhia?!

Mataram-me o meu menino!
Filho do meu coração!
Que vai ser o meu destino
sem a tua protecção?!»

Nunca uma cena de horror,
Uma tragédia tão viva,
tão grande e expressiva dor,
alguém teve ao seu dispor
defronte duma objectiva.

Era uma face crispada,
um olhar perdido e louco,
uma boca de xarroco
em lágrimas ensopada.

Foi uma sorte, realmente.
Um desses casos notáveis,
bestiais e formidáveis
que acontecem raramente.

Aquelas faces crispadas
correram pelo mundo inteiro
nas revistas ilustradas,
em tiragens esgotadas
que deram muito dinheiro.

Com aquele sentido humano
da justiça e da harmonia,
o repórter todo ufano,
ganhou o prémio do ano
da melhor fotografia.

Máquina de fogo, 1961