INTRODUÇÃO

Harmonias No cerne de toda a manifestação artística está o culto do belo. Culto da perfeição não-absoluta, já que sujeita à percepção de quem admira. A beleza da obra artística, exprimindo uma forma particular da perfeição, eleva o espírito de quem cria, e de quem sente, para uma esfera de harmonia. Harmonia a que outras vias dão acesso, como o desporto ou o amor, e que é indispensável viver, mesmo que brevemente, para haver uma existência equilibrada.

É muito importante não esquecer a dimensão espiritual, mais do que lúdica ou hedonista, da arte. A contemplação da Natureza, perfeita nas suas combinações de elementos de ordem e caos, forneceu sempre ao Homem o padrão fundamental da beleza. Para o artista, criar ou reproduzir a beleza através de situações em palco ou de objectos é um meio propiciador à busca de harmonia espiritual, e a projectá-la sobre os outros, que à sua maneira a compartilham com ele. O artista e o seu público são os dois pilares indissociáveis que sustentam o processo criativo, não podendo conceber-se a produção artística sem os compreeender em conjunto.

Existe em música um tipo particular de harmonia, definido pelas leis da Física Acústica, que não se confunde com a harmonia espiritual. Por outras palavras, ouvir não quer dizer sentir. Em qualquer manifestação musical, a harmonia que se estabelece, a que interessa do ponto de vsta artístico, é aquela que une espiritualmente o auditório aos executantes. Em todos tem de afirmar-se uma viva disponibilidade ao culto do belo em comum.

Quando temos a actuação de um grupo, seja orquestra, coro, ou grupo de câmara, a unidade espiritual entre os seus elementos é uma chave fundamental para o resultado dessa actuação. Se um coro de 80 vozes surge aos olhos do seu público como um corpo único, toma as proporções do colosso que realmente é. Outra coisa, aliás, não se admite que aconteça. Mas numa pose militarizada, com encenações de uma disciplina que não tem nada que ver com o sentido artístico, porque é superficial, na melhor das hipóteses esse coro parece um paquiderme, na pior transforma-se num exército de soldadinhos de chumbo.

Um dos processos mais importantes para gerar a indispensável unidade dentro do grupo é aquilo que eu chamo de "fenómeno coral": com a harmonia das vozes, em uníssono ou em acorde, sincronizam-se espontaneamente pensamentos, emoções, até a respiração; o som que preenche o ar é o espelho em que o grupo se reflecte durante a execução de um trecho, e o prolongar desta sensação de unidade com o fluir do tempo dá uma satisfação extraordinária. Em suma, o coro sente-se como um só com a música.

O fenómeno coral não é, em todo o caso, apanágio dos coros. Estabelece-se em qualquer ocasião em que se toca em conjunto, até entre o solista... consigo mesmo. Mas a utilização da voz, pela sua componente psíquica assaz importante - e, ao que julgo, pouco estudada cientificamente - torna-o peculiarmente imediato e intenso. Contudo, trata-se apenas de uma espécie de mecanismo, não é intrinsecamente artístico, e por isso tanto pode ser útil como enganador. Útil, pela importância que assume na aprendizagem intuitiva da música, mesmo dos aspectos artísticos da execução; mas exige muita capacidade de modelagem e de muito domínio da parte de quem rege, e não pode ser de maneira nenhuma, em momento nenhum, ignorado. Enganador, sobretudo porque satisfaz os executantes com demasiada facilidade, dando uma noção de qualidade frequentemente ilusória: a satisfação conseguida pode não ser compartilhada por quem ouve.

Músicas Em Portugal, a formação musical está longe de ser satisfatória. As aulas de Educação Musical no Ensino Secundário, para aqueles que o fazem, pouco contribuem para despertar vocações. Os instrumentos não abundam, enfim, os estímulos para uma dedicação artística outro tanto. Caracteristicamente, são as bandas filarmónicas, os coros amadores, e as orquestras e grupos instrumentais "típicos" quem assegura, bem ou mal, a parte mais importante da ocupação lúdica dos Portugueses através da Música. Note-se que, em todos eles, os esforços concentram-se na realização musical mais ou menos imediata e não no estudo. Tenho o mais profundo respeito por este "movimento" cultural, mas não pode passar-se em claro que quase todas as suas realizações são extremamente falhas da elevação espiritual que se desejaria. Quase, porque em todos estes três campos existem excelentes exemplos que confirmam a possibilidade de fazer muito melhor do que em geral se faz. Não será tão difícil de alcançar-se um bom resultado porque os músicos amadores, tanto como os profissionais, aspiram a realizar a perfeição contida numa verdadeira obra de arte. Mas é-o na prática, devido à falta de uma "escola" em que se filiem as actividades dos grupos amadores, e não só. Muito se deverá à falta de consciência, generalizada, dessa tal aspiração. Muito, também, à distorção das relações com a obra artística, reduzindo a imagem da sua perfeição a elementos meramente técnicos (erro comum até em muitos profissionais).

Em minha opinião, o reduzido apreço do público pelos coros amadores em Portugal é plenamente merecido. Não têm postura digna, isto independentemente das questões muito parciais de "cantarem afinado" (ou não), ou de terem um repertório interessante (ou não); são grupos sem espiritualidade, que em palco transmitem inevitavelmente uma grande falta de convicção. Menos mal para a maior parte, que se mostram grupos de "rapazes e raparigas" dispostos principalmente a divertirem-se juntos - sobretudo fora do palco - pois não se pode dizer que não sejam honestos; mas há-os que se pretendem ridiculamente de "música séria", levando em certos casos essa falta de bom-senso ao ponto de tentarem cantar peças para as quais não estão tecnicamente preparados. Aqui já estamos no domínio do desrespeito e da falta de vergonha, não há nada em comum com a arte.

E se a verdadeira arte musical está ao virar da esquina! Com muita perseverança na elevação do trabalho, nem é preciso muito tempo. Porque a preparação de um coro faz-se de coisas muito simples. Ora, precisamente o que se vê por quase todo o lado é uma falta de meditação sobre a melhor maneira de atingir os objectivos - se é que os há - transferindo toda a complexidade da boa prática musical para o lado do coro, que pouco mais pode fazer do que arranjar paciência para aguentar repetições fastidiosas. O papel centralizador do director artístico ("maestro") sugere, pelo contrário, que concentre em si todos os meios processuais necessários a que o coro atinja as metas com facilidade. Este guia propõe-se passar em revista o maior número possível de aspectos dessa complexidade. Posso desde já adiantar que o meu maior desafio como director artístico, aos 31 anos, foi trabalhar com um coro litúrgico, já com certa carreira, constituído principalmente por pessoas entre os 40 e os 70 anos de idade. Tive de lutar imenso contra vícios enraizados em práticas incorrectas, às vezes de décadas; tive de achar soluções que nunca tinha imaginado, e não insistir em projectos irrealizáveis nas condições de momento. E se a luta parecia contra os coralistas, até contra mim próprio, era-o só na aparência: a adesão que tive, extraordinariamente expressiva e constante, traduzi-a do seguinte modo: não há quem, gostando de cantar, não goste de o fazer dignamente. Até quando se acha incapaz disso, desde que lhe dêem esperança disso. No pouco tempo disponível, com a pressão da rotina de missas quinzenais, conseguiu-se uma boa sonoridade, um belo repertório, enfim, um serviço digno. Mas quanto tempo, quantos directores artísticos, é necessário para atingir estes mínimos um pouco por toda a parte?

É extremamente complexo ensinar uma peça de modo a que seja simples aprendê-la. Trabalha-se por naipe, exige-se que todas as vozes cantem francamente, para tirar proveito devido do fenómeno coral em uníssono; e ensina-se cantando, com toda a expressividade do conjunto texto-música, e sem erros. Os cantores que lêem música têm o mau hábito de "estudar" uma peça que não conhecem em pleno ensaio, mal a sussurrando enquanto não se acham erfeitamente seguros dela - então que a estudem em casa! No ensaio de naipe, nos ensaios de conjunto, nos concertos, é imperioso cantar-se com os outros.

As consequências da generalização de uma prática coral correcta merecem uma certa atenção. O resultado último, e culminante, terá de ser a vulgarização dos bons espectáculos de música coral, o suficiente para a dificílima tarefa de mudar a má imagem existente. Não é por falta de divulgação que, frequentemente, o público dos concertos de música coral seja constituído por família & amigos, coros participantes, Lda.: é por desinteresse do público em geral, desinteresse justificável como discutido mais atrás.

Pelo caminho conquistam-se outros terrenos: antes do mais, uma "conversão" dos elementos dos coros amadores à boa prática musical, no que são elementos indispensáveis o hábito de entoar em conjunto com perfeição e o hábito de só cantar o melhor repertório, sendo ainda desejável a abertura a todo o tipo de repertório (e a habilitação numérica e técnica para tal) e a diversos tipos de participação (a enunciar na terceira parte). Tudo isto se supõe desenvolvido pela prática, e com efeito é testemunhável aqui e ali (inclusive no recrutamento ocasional de futuros talentos para o canto); falta-lhe, não me cansarei de dizê-lo, uma dimensão significativa para a nossa vida cultural. Contribuir para a desejável expansão é a razão de ser deste guia.

Expansão que acarretará um estímulo à edição de música coral, onde a de autores portugueses pode facilmente, e claro que deve, ocupar um lugar importante. Basta destacar a chamada "escola de Évora" e afins (sécs. XVI-XVII), em grande parte editada pela Fundação Gulbenkian (colecção portugaliæ musica) e os 24 cadernos de música tradicional portuguesa publicados por Lopes-Graça (edição a cargo da Academia dos Amadores de Música de Lisboa), como exemplos insignes da qualidade da nossa música - e ambas as colecções estão parcialmente esgotadas presentemente!

Coros amadores mais activos e atentos deverão implicar um maior dinamismo da vida musical, e da cultura em geral, especialmente fora das cidades; até, quem sabe, contribuirão para o florescer de talentos musicais no domínio da composição e na produção de uma imagem de marca internacional. Tudo é uma questão de tempo bem aproveitado (tradição rara entre nós, é verdade).

Instituições como os conservatórios, e escolas de música em geral, só têm a beneficiar de uma tal expansão. Como sugeri já nesta introdução, grupos como os coros amadores têm uma posição na vida cultural que é complementar à das escolas de música. Julgo que a melhoria da qualidade da música coral é uma via privilegiada de atrair mais pessoas para a música clássica, de encorajar algumas dessas pessoas para o estudo da música nas instituições próprias para o efeito, de tornar cada vez mais público atento e sensível às programações musicais.

Devoções O destinatário deste guia é todo o leitor que se sinta disponível para meditar sobre alguns dos assuntos nele focados. Aqui olhar-se-á para a música muito de perto, vai-se tratá-la por tu, com familiaridade mas com respeito. O sentido musical não é estritamente auditivo, é uma forma de perceber o Mundo, e pode interessar a qualquer um.

A quem se reveja na situação bem específica de director artístico de coros, incito-o, em nome do intransigível espírito de elevação de todas as manifestações artísticas, a ter sempre presente a responsabilidade que lhe cinge a sua posição no coro, de modo a nunca ceder perante toda e qualquer circunstância, interior ou exterior, que o leve a "facilitar". Sugiro, nomeadamente, que medite sobre nove princípios que a seguir proponho e lhes dê na prática um convicto acordo, sem atenuantes nem compromissos:

1. A orientação que eu der aos meus coros deve estar aberta a todos os conselhos que a possam aperfeiçoar.

2. O meu papel, como director artístico, é servir o coro, e não o inverso.

3. A vida do coro forja-se no ensaio.

4. O massa do público tem razão: ouvi-la é conhecer o coro.

5. Cada espectáculo tem de fazer um percurso único.

6. Os gostos discutem-se - porque há o mau-gosto.

7. Cada voz é uma alma.

8. A partitura não tem música, só o espaço faz existir a música.

9. A arte é infinita, por isso ninguém pode ter a última palavra.

Todas as oportunidades para reiterar estes princípios serão aqui aproveitadas. Por agora, são apenas barro atirado à parede; mas convido os leitores a relê-las sempre que abrirem este guia, tê-las em mente durante o trabalho com um coro, e estou certo que deste modo hão-de ficar plenamente convictos da sua justeza. Aviso desde já que eles implicam assumir uma posição que em muitas ocasiões contraria aquilo a que a maioria está habituada. Em situações de incompreensão, só se evitará degenerarem em isolamento (insuportável!) ou em desistência (injustificável!) tendo a necessária convicção. A evolução do trabalho recompensará, a cada passo, a firmeza do que é pura e simplesmente a verdade sobre a música coral.

É também preciso saber ousar a realização das próprias ideias, sempre no sentido da música como celebração, profundamente bela, profundamente humana. Ter, enfim, coragem. Coragem que, como a voz, vem do coração, daí constituindo a grande nota do valor de cada um.

Coragem necessária a que o espírito deste livro, e de outras obras que lhe sucedam, se realize e transforme a nossa herança.

Nápoles, em Setembro de 1992