P A S S A G E M D A S H O R A S
(excerto)
Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.
Só humanitariamente é que se pode viver.
Só amando os homens, as acções, a banalidade dos
trabalhos,
Só assim -- ai de mim! --, só assim se pode viver.
Só assim, ó noite, e eu nunca poderei ser assim!
Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,
Mas tudo ou sobrou ou foi pouco -- não sei qual -- e eu sofri.
Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os
gestos,
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e
não conseguisse,
Amei e odiei como toda a gente,
Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,
E para mim foi sempre a excepção, o choque, a válvula,
o espasmo.
Vem, ó noite, e apaga-me, vem e afoga-me em
ti.
Ó carinhosa do Além, senhora do luto
infinito,
Mágoa externa da Terra, choro silencioso do
Mundo.
Mãe suave e antiga das emoções
sem gesto,
Irmã mais velha, virgem e triste, das ideias
sem nexo,
Noiva esperando sempre os nossos propósitos
incompletos,
A direcção constantemente abandonada
do nosso destino,
A nossa incerteza pagã sem alegria,
A nossa fraqueza cristã sem fé,
O nosso budismo inerte, sem amor pelas coisas nem êxtases,
A nossa febre, a nossa palidez, a nossa impaciência
de fracos,
A nossa vida, ó mãe, a nossa perdida
vida...
Álvaro de Campos
1916