A tonalidade de uma peça vocal é escolhida pelo compositor em função do compromisso entre duas condicionantes: a "cor" global da peça, e os limites praticáveis da voz humana. Apesar de ser um desrespeito pelas intenções do compositor, há duas classes de motivos para realizar transposições, e por "excelentes" motivos em ambas:
A reconstituição das peças antigas com a sonoridade tanto quanto possível de acordo com o que se assume correntemente ser a interpretação coeva excluiria, por princípio, a transposição dessas peças. Mas essa ordem de argumentos aplica-se até, em sentido mais lato, sem que se façam transposições: a reconstituição histórica é trabalho para profissionais e sujeita à actualização das concepções de autenticidade assim como à resolução dos conflitos entre "escolas" de interpretação. É claro que não é campo para os coros amadores, porém na minha opinião isso não implica condenar que também cantem esse repertório antigo, desde que consigam fazê-lo decentemente e optando por outra autenticidade, a qual é o assunto deste guia: a da audição contemporânea. Aí têm um papel inestimável de divulgação e retribuem a arte dos compositores de séculos atrás fazendo-a viver de novo, e com outros públicos. É esse privilégio do século XX: o reconhecimento cada vez mais aprofundado da intemporalidade do espírito humano. E não há purismo que destrua o valor deste trabalho que os profissionais dificilmente conseguirão preencher com a mesma eficiência.
Por isso uma transposição judiciosamente escolhida no sentido de tirar o máximo partido das vozes do coro pode trazer vantagens. A peça Mi libertad en sosiego é um bom exemplo: na tonalidade de Lá é uma peça para uma formação algures entre CCTB e CTBB (esta mais exigente); transposta para Dó, é fácil passar a usar a formação SCTB ou (como fiz com o Coro de Psicologia) SSCT, e o resultado sonoro é francamente defensável.
Mas quero aqui fazer uma ressalva: uma vez, no decurso do trabalho vocal em conjunto, experimentei com as mesmas pessoas cantar-se na tonalidade de Lá; apesar das dificuldades evidentes de todas as sopranos, o colorido era de tal modo diferente (e agradável) que até custou ao ouvido voltar a cantá-la, imediatamente a seguir, em Dó. Fiquei com alguma pena de ter de apresentá-la em palco, com aquele coro, numa tonalidade transposta. O problema de transpor as peças é, do ponto de vista artístico, muito delicado. Cada uma foi criada numa determinada tonalidade (e num determinado diapasão, convém nunca esquecer) e devemos na medida do possível (mesmo que à custa de menos repertório para as sopranos...) evitar fugir-lhe.
Gostaria de prevenir que muitas edições modernas (talvez não as mais recentes) "tomam a liberdade" de apresentar as transcrições em notação actual já transpostas, desvirtuando à partida a escolha do compositor e coarctando as opções do coro, que assim é levado involuntariamente a perpetuar esse desvirtuamento. Algumas ainda apresentam a primeira nota (e respectiva clave, que é muito importante) de cada voz logo no início, dando assim a possibilidade de optar-se. É necessário fazer um trabalho de detective: as formações antigas tendiam a implicar uma maior proximidade das vozes entre si, com frequentes cruzamentos entre vozes intermédias; as vozes mais graves, dentro do registo do baixo, iam frequentemente a Sol ou Fá, não só porque havia sempre vozes para dá-las como muitas vezes eram dobradas por instrumentos como o fagote ou órgãos; em consequência disso, uma partitura de baixo que não explora os graves (abaixo do si bemol, por exemplo) é sinal de que se deve desconfiar de uma transposição feita pelo editor, não indicada na cópia disponível (tantas vezes uma fotocópia fora de contexto, todos sabemos...). A minha recomendação é, na medida do possível, ter acesso à tonalidade original, seja pelo recurso a edições de qualidade, seja pela consulta de edições facsimiladas dos originais. Espero que uma sensibilidade para o prolema das transposições dê aos maestros o alento para este trabalho adicional. Importa acima de tudo saberem qual era a escolha do compositor para depois terem absoluta responsabilidade pela sua própria escolha.
Há coros que têm por "receita secreta" para certas peças subir ou descer a tonalidade de meio ou mesmo um tom, porque isso acentua este ou aquele aspecto da sonoridade, ou meramente porque facilita a resolução de certos problemas de extensão vocal ou manutenção do tom. Para mim isto não passa de maquilhagens que não têm nada a ver com arte e têm de ser repudiadas.
Talvez ainda pior seja o caso de inúmeros coros de vozes iguais (de crianças, femininos ou masculinos) que cantam peças para vozes mistas transpostas em geral uma quarta ou quinta acima ou abaixo, consoante os casos. Trata-se de uma das inúmeras manifestações de inércia e despudor que infelizmente estamos condenados a aturar. A minha reacção a isto é: procurem repertório que lhes sirva, porque existe, ou componham música para esses coros! Se acham que não conseguem, tentem ao menos, não se deixem tentar pelas soluções fáceis... e se conseguirem alguma coisa, estou certo que se sentirão valorizados por isso.
O inverso também se passa, e o exemplo da "transcrição" do Es nascido por Francisco Faria é um dos exemplos mais cruéis de transpor-se uma peça originalmente SSCC para SCTB: o diálogo entre os dois naipes de sopranos, sugerido das mais diversas maneiras pela maneira como a partitura está composta, perde-se pela diferença de timbres entre sopranos e contraltos; os sopranos cantam abaixo da sua tessitura, os contraltos e os baixos acima, e os tenores (o calcanhar de Aquiles de tantos coros amadores) têm uma das mais difíceis tarefas que eu já vi, que só não dá sofrimento a quem esteja já muito à vontade com as notas agudas; além do que a música fica uma pastelada sem sentido, que em nada sugere o carácter funcional deste vilancico, à semelhança das Christmas Carols dos ingleses, esta transposição subsitui uma peça vocalmente acessível para um coro feminino num monstro de dificuldades para coro misto. Outro exemplo, exactamente deste teor, é uma edição inglesa de Quem tem farelos.
[entre aqui a informação técnica sobre extensões, claves e diapasões]