V O Z   D E   V I V O
(poema incompleto de autor do fim do século XX, encontrado algumas décadas mais tarde)
Naquele tempo guardámos as palavras certas
palavras como boca mar amor e vida
E porque o fizemos um dia depois da morte
tapámos os olhos dos mais novos
para não deixar neles a recordação do inferno

Levámos também à pressa as nossas riquezas
As coisas a que nos apegámos firmemente
há séculos e que eram cadeiras de veludo
ou verdades construídas pouco a pouco
no protesto das ruas ou no saber dos livros

Fugimos, nós, que éramos poucos p'ra bem longe do sufoco
das terras murchas dos requiens e dos servos
Olhando p'ra trás cada vez menos
e aquecemo-nos nas fogueiras quentes
dos sítios por onde passávamos

Ouvimo-nos a falar de nós já sem mágoa agora
E a entretecer lendas das lembranças
Viraram contos de bruxas as bombas que deitámos
e os filhos que então tivemos coragem de ter
Testavam em jogos as histórias dos avós

Levantámos mais do que uma vez o acampamento...
 

Márcio Candoso, 1987