A toxicodependência é um dos problemas sociais mais graves do nosso tempo. Ninguém pode alhear-se desta realidade. Se aceitarmos que a toxicodependência é um problema social, então temos que aceitar também que o problema é de todos, ou seja, é de cada um - uma responsabilidade de todos e de cada um. Esta ligação entre o social e o individual, responsabilizando ao mesmo tempo (todas) as pessoas e as organizações construídas pelas pessoas, é a marca comum de todos os grandes problemas do nosso tempo: toxicodependência, SIDA e outros problemas de saúde, guerras, fome, justiça social, participação e cidadania, exclusão, racismo, sustentação do meio ambiente, segurança nas cidades, consumismo, etc... São problemas que resultam da forma como a sociedade está organizada (e somos nós que a organizamos).
Responsabilidade. O que significa sermos todos responsáveis? Significa que todos temos "culpa"?... Pensar em "culpas" e "culpados" é olhar para o passado. A ideia de responsabilidade aponta para o futuro, para a gestão do problema. É aí que todos temos um papel a desempenhar. Todos temos que assumir que a nossa colaboração é fundamental. E a colaboração de cada um começa na condução da sua própria vida e passa por um envolvimento responsável na vida da comunidade que o envolve. Ser responsável é respeitar a vida plena, é cultivar uma atitude ética face à nossa vida e face à vida dos outros.
Situado o problema da toxicodependência neste ponto de vista, justifica-se a relação entre toxicodependência e trabalho. A sociedade onde vivemos somos nós, indivíduos, mais as organizações que construímos. E as organizações relacionadas com o trabalho são muito importantes na sociedade em que vivemos. Essas organizações também têm responsabilidades. Compreender e gerir estes problemas passa obrigatoriamente por estas organizações e pela forma como as pessoas participam e se relacionam nelas e com elas (e vice-versa).
Mas vamos devagar. Afinal do que estamos a falar? Drogas? Toxicodependência?...
Todos temos uma ideia do que se trata. Mas o assunto continua a ser polémico.
Há muitas ideias controversas em cima da mesa e o assunto é
de paixões (está na moda!). Para nos entendermos, seguem-se
algumas perguntas e respostas de algibeira. Não esperamos que concordem
com o que escrevemos. Esperamos que pensem no que escrevemos.
Designam-se genericamente por "droga" todas as substâncias que podem modificar uma ou mais funções de um organismo vivo em que são introduzidos. As drogas que estão relacionadas com a toxicodependência são apenas uma parte do conjunto das drogas: São as drogas psicoactivas, que se caracterizam pelo poder de modificar as funções do Sistemas Nervoso Central (SNC).
O SNC é muito importante. Tem uma grande influência na
forma como entendemos o mundo que nos rodeia e na maneira como lidamos
com esse mundo. A consciência, a orientação, as diferentes
formas de percepção, o pensamento e a compreensão,
a memória, a atenção, o tempo de reacção
e a qualidade das decisões... podem ser afectadas por estas substâncias.
O que somos, a forma como nos vemos e de como estamos com os outros também.
Os sentimentos, os interesses, os valores. A relação com
pais, com filhos, com cônjuges, com namorados e namoradas. A relação
com a família, com a escola, com o trabalho, com os amigos. Tudo
pode ser profundamente afectado pelo consumo destas drogas. O conceito
nuclear desta influência que as drogas podem ter na vida de quem
as consome é a dependência.
Há vários tipos de drogas psicoactivas. Podem distinguir-se pela sua origem geográfica, pela forma como são produzidas, pelos seus efeitos, pelo perigo associado ao seu consumo, pela forma como são vistas em diferentes culturas e sistemas jurídicos, etc..
Mas mais importante que as diferenças é o que estas substâncias têm em comum. Uma característica fundamental comum a todas as drogas psicoactivas é a dependência que podem provocar a quem as consome.
A dependência remete sempre para a relacão de uma pessoa com a substância. Todas as drogas têm aspectos positivos e negativos e podem ser melhor ou pior utilizadas pelas pessoas. A dependência é uma utilização inadequada de uma droga por quem a consome. Colocando desta forma a questão, fica no ar uma ideia: a pessoa dependente tende a ser vista como responsável pela sua dependência. É muito importante discutir esta ideia, que retomaremos na questão sobre a toxicodependência como doença. Mas o que é afinal a dependência?
Existe a dependência física, que corresponde a uma adaptação inadequada do organismo à droga consumada regularmente. Quando esta falta, o organismo ressente-se de uma forma que provoca grande sofrimento no consumidor. Como é sabido, nem todas as drogas provocam este tipo de dependência.
Existe outra forma de dependência que pode ser provocado por todas as drogas psicoactivas e que é muito mais grave: é a dependência psicológica. Trata-se de um processo em que a droga toma progressivamente conta da vida do seu consumidor. Associa-se geralmente a uma ilusão de poder e de controlo dos problemas e a uma negação da dependência. O consumidor não se apercebe do que lhe está a acontecer e não aceita os avisos dos amigos e familiares. Chega a um ponto em que a droga é a única razão de ser e de existir dessa pessoa. A família, a escola, o trabalho, os amigos, tudo deixa de interessar. Neste estado, a recuperação é extremamente difícil pois retirar a droga à pessoa equivale a retirar-lhe a razão de viver. É o vazio absoluto, que se torna insuportável para qualquer ser humano.
Quando falamos de dependência não podemos esquecer a codependência.
Trata-se da dependência que algumas pessoas desenvolvem relativamente
a um toxicodependente. Amigos, colegas, namorado/a, familiares podem envolver-se
de tal forma no problema de um toxicodependente que ficam também
"agarrados". Deixam de viver as suas vidas para viver em função
do problema do seu ente querido. Esta reacção é compreensível
em pessoas que se preocupam com os outros, em especial quando gostam muito
deles. Mas acaba por prejudicar a evolução do problema do
toxicodependente e, além disso, os co-dependentes tornam-se também
pessoas com problemas que precisam de ajuda para recuperar.
A toxicodependência não é entendida como uma doença comum pela generalidade das pessoas. Muitos negam mesmo que se trate de um problema de saúde. Esta ambiguidade relativa à toxicodependência é semelhante à ambiguidade com que a sociedade sempre encarou os problemas mentais em geral. A principal razão destas dúvidas resulta da impressão de que as pessoas com problemas mentais são fracas e paradoxalmente, a impressão que essas pessoas são responsáveis pelos seus problemas (estão/são assim porque querem).
Se vivemos todos no mesmo mundo, sujeitos às mesmas pressões e dificuldades, porque apenas uma minoria se torna mentalmente perturbado? A resposta evidente é simples: porque nós, os equilibrados, somos fortes e eles, os desiquilibrados, são fracos. Mas as realidades humanas escapam sempre às respostas simples e evidentes. Temos que admitir que não somos fortalezas inexpugnáveis e que estes problemas também nos poderão acontecer a nós. Temos que admitir que não há "nós" e "eles", mas sim seres humanos cuja essência é a conjugação de forças e de fraquezas. E a toxicodependência é um bom exemplo para reflectirmos sobre esta realidade.
Os toxicodependentes são parcialmente responsáveis pelo
caminho que percorrem entre a vida sem droga e a vida dependente de droga.
São também responsáveis por dar os passos fundamentais
para a sua recuperação. Mas quando estão dependentes
estão doentes porque não controlam essa situação
e a sua vida. Precisam de ajuda, ou seja, precisam de se tratar. E é
assim com a maioria das doenças do fim do século, cada vez
mais o resultado do que somos e fazemos, cada vez mais marcadas pela dimensão
da saúde mental/doença mental. Somos parcialmente responsáveis
pela nossa saúde, um recurso que temos de cultivar no dia a dia
durante toda a vida. Somos cada vez mais responsáveis pela qualidade
da nossa vida mesmo quando estamos doentes - notar que as doenças
do fim do século tendem a ser crónicas e de evolução
prolongada (SIDA, cancro, problemas cardiovasculares, etc.).
Prevalece a opinião que a droga é a principal causa dos nossos males. Mas é ao contrário., Os nossos males é que são a causa da importância que a droga ganhou nas nossas vidas. Quais são esses males?... Pergunta difícil, porque são tantos, todos tão enleados uns nos outros, que é dificil encontar o fio à meada. Em seguida referimos alguns desses males, mas não se esqueçam que a explicação não depende de um ou de alguns. Depende da combinação de todos.
O Ser. A toxicodependência é um problema do Ser, mas as explicações devem ser procuradas nas circunstâncias do Ser. As drogas, as pessoas com problemas, as suas vidas e as suas famílias, as instituições sociais como a Família, a Escola, ou Trabalho e a Rua. As cidades e a sociedade. A televisão e as outras formas de ilusão. A política e a economia.
As drogas. Os efeitos das drogas nas pessoas é uma vertente da explicação do problema. As drogas produzem uma ilusão de bem estar e de poder. Esta ilusão é artificial, mas as pessoas habituam-se a "ser" assim e só o conseguem com drogas.
A dependência e a negação, de que falámos antes, são também razões fortes para explicar esta doença.
As pessoas. As pessoas que se tornam dependentes são outra perspectiva necessária para compreender o problema. Histórias de vida e formas de ser diferentes: por exemplo, uma ideia pobre de si mesmo, uma expectativa inadequada sobre a vida, uma sede e viver e de vencer depressa, o medo exagerado do futuro, o sofrimento de Ser que se torna insuportável para alguns...
Famíla, Escola e Rua. Família desorientada, desagregada pelo individualismo dos nossos dias. Escola massificadora, que oferece pouco e não deixa procurar mais. Família e Escola que não atinam na missão primordial que é educar, que é formar o Ser. A Família perdida que se demite das suas responsabilidades. A Escola que nunca poderá substituir a Família. E para os jovens pouco espaço sobra para encontrar o sentido das suas vidas, para encontrar o Ser. Falta o rumo e o Ser, e assim andar nas "Ruas" é muito perigoso.
Trabalho e Família. Muitos perdem-se antes de chegar a altura de ter um trabalho. Mas outra das guerras do nosso tempo é entre a Família e Trabalho. O Trabalho desvaloriza a Família. Somos o que fazemos, somos o nosso trabalho. Somos no presente e esquecemos os nossos filhos que ainda não são nada. Crescer na Família é essencial ao Ser. É aí que se forma a raiz do Ser. Crescer mais, na Escola, na Rua e no Trabalho só é possível a partir dessa raiz. Equilibrar a Família e o Trabalho é um dos desafios que o nosso tempo coloca a cada um para continuarmos todos a ser (antes já falámos da responsabilidade de cada um, lembram-se?).
Cidade. Massa enorme, disforme, de pessoas sem identidade e sem Ser. A droga é a expressão máxima da vida das cidades, da vida sem Ser. É a massa da cidade que está a matar o respeito que o ser humano tinha pelo Ser.
Sociedade. Individualismo e materialismo exacerbado. Tudo tende para o coisificado, para o não-Ser. O Ser (humano) isolado não é Ser, é coisa entre coisas. O Ser (humano) constroi-se e cultiva-se na relação com outros Seres. É do respeito pelo outro que nasce o respeito por nós próprios e o sentido de uma existência digna e responsável.
Televisão. A ilusão. Como a droga. A vida fora de nós, tão depressa que não nos dá tempo para sentir, para pensar. Não nos dá tempo para Ser, para sermos nós próprios.
Política e Economia. A droga é um problema social
e global, ou seja, é um problema político. Cabe aos políticos
a visão. Cabe-lhes definir a estratégia e promover a mobilização
da tal responsabilidade de todos e de cada um. Infelizmente costumam gastar
o seu tempo com coisas mais urgentes (mas menos importantes). Quanto à
economia, todos sabemos que a droga é um dos maiores negócios
do mundo. Há países economicamente dependentes. Depois os
tentáculos do polvo chegam a todo o lado. Não podemos dizer
que a política e a economia criaram sozinhas este problema. Podemos
dizer que contribuíram para este problema nascer e crescer. Podemos
dizer que a sua contribuição para gerir este problema é
indispensável.
O álcool continua a ser a droga mais consumida e a que produz mais problemas para o conjunto da sociedade. Estima-se que 10% da população portuguesa (1 milhão de pessoas) tenha problemas relacionados com consumo de álcool. Problemas de saúde graves, violência doméstica, acidentes de viação e laborais, custos de protecção social e de serviços de saúde são exemplos das consequências do consumo de álcool.
As drogas ilegais são outro tipo de problema. O haxixe é a droga ilegal mais consumada, mas a que provoca mais problemas é a heroína. Há também a cocaína e as drogas similares. Estima-se que 50.000 a 150.000 portugueses estão dependentes de drogas ilegais. As principais consequências deste problema são vidas e famílias desfeitas. A criminalidade urbana é outro problema grave associado ao consumo de drogas ilegais. A droga é, directa ou indirectamente, a causa da prisão de mais de metade da população prisional portuguesa. Os custos de saúde, sociais e criminais do consumo de drogas são incalculáveis. A grande corrupção, as máfias e o terrorismo, que se sustentam com a produção e o tráfico de drogas ilegais, são um problema ainda mais sério que pode fazer ruir pela base toda a nossa sociedade. Há estados completamente enfiados, mas o pior são as ameaças à justiça e à liberdade, princípios fundamentais dos sistemas democráticos.
Os psicofármacos consumidos sem controlo médico é
um problema menos conhecido mas cuja gravidade tem vindo a aumentar. Os
toxicodependentes usam muitas vezes os "comprimidos" como alternativa
às outras drogas. Mas os tranquilizantes e anti-depressivos consumidos
diariamente pelo comum dos cidadãos provocam muitas dependências
ocultas em todas as idades e estratos sociais. Pessoas que vivem de forma
limitada sem darem por isso, permanentemente anastesiadas/ alienadas pela
droga.
Não há respostas certas e definitivas. Não há
soluções. Temos que admitir que este problema não
pode ser resolvido. Pode é ser gerido. A sua gestão depende
de todos nós. Temos de nos responsabilizar, por nós e pelos
outros. Pela nossa saúde e bem estar e pelo bem estar dos outros.
Tal como pelo nosso meio. A sociedade e o meio que temos são, em
grande parte, o que nós fazemos. Temos que nos preparar, que nos
educar. Temos a responsabilidade comum de fazer o melhor possível,
por nós e pelos que virão.
A toxicodependência pode prejudicar o trabalho (absentismo, acidentes, baixa de produtividade, confiituosidade, imagem ... ). O mundo do trabalho pode contribuir para a toxicodependência. Trabalho pobre, trabalho rico, inadequação do trabalho, ausência de trabalho, má gestão do trabalho, stress. O trabalho tem riscos para a saúde física e mental. Por estas duas razões, e por causa da tal responsabilidade de que tanto falámos, as organizações de trabalho e as pessoas que aí estão devem fazer qualquer coisa. Dever ... e querer. Dever ético. Querer, porque sabemos que poder não chega. E porque querer é poder. Por nós próprios, pelos nossos trabalhos e pelos nossos filhos, devemos todos fazer qualquer coisa.
A maioria das pessoas com problemas de consumo de álcool e drogas trabalha. Alguns trabalham de forma "especial", mas trabalham. Por vezes a sua família está desorganizada e os "amigos" vivem também no mundo da droga. O trabalho acaba por ser a única ponte com o mundo da vida sem drogas. Por isso, encontrar estas pessoas em contexto profissional é uma oportunidade para ajudar. Como? Não fingindo que não vemos ou que não é nada connosco (a tal responsabilidade).
Fazer o quê? Ser humano no trabalho é o princípio. Não devemos estar no trabalho como meros instrumentos ou peças da engrenagem. Devemos ser humanos e tratar os outros como seres humanos. Estar atento a todos os colegas, em especial aos desadaptados, aos que parecem não estar bem. Dar a mão. Às vezes basta um pouco de atenção, uma palavra, uma ajuda. Não piorar as coisas com "bocas" ou ignorando certas pessoas. Quando estamos seguros que há colegas com problemas, confrontar abertamente. Dizer-lhes que sabemos do seu problema e motivá-los para se tratarem. Transmitir a esses colegas confiança na sua recuperação e não os pôr de lado quando eles voltam depois de uma "cura".
Mas o desafio maior que se pode lançar ao mundo do trabalho é a prevenção. Devemos procurar informação. Devemos formar-nos. Divulgar informação no seio da empresa. Falar destas coisas, organizar um grupo de discussão e de gestão do problema na empresa, na Comissão de Trabalhadores ou no Sindicato. Procurar consultores especializados que ajudem o nosso grupo a funcionar e a produzir trabalho. Contactar organizações especializadas em prevenção e em tratamento. Propor que a empresa clarifique a sua política nesta área. Propor à empresa a organização de acções de informação e de formação para os trabalhadores.
Estas são só algumas ideias. Quisemos demonstrar que é possível. Agora estão nas vossas mãos. Força.
Textos: Dr. Paulo Vitória