Todas as drogas "agarram". Todas. Isto pelo modo como condicionam
os delicados limiares do prazer e da dor que existem no nosso sistema nervoso
e nos arrastam o comportamento.
Hábitos todos nós temos: beber um café a certa hora,
ligar a televisão em casa para ver as notícias, trabalhar
com a rádio ligada, ir à praia na época do calor,
pôr uma pitada de sal na comida... Mesmo nestes hábitos aparentemente
inocentes, está-se "agarrado": o que acontece quando algum
imprevisto impede de beber "aquele" café, ou a televisão
"resolveu" não acender, ou alguém levou o rádio
(ou exige que ele fique desligado enquanto estiver presente), ou temos
um familiar acamado durante o verão, ou a comida não sabe
a nada e o sal não salga? A angústia, ficar-se com um dia
(ou vários) estragado, são os disparates que começam
a fazer-se, uma vontade de tirar a desforra...
O que é certo, é que todos temos uma série de "âncoras"
que, em troca de uma sensação de prazer, nos agarram. Hábitos
inofensivos? Talvez -- mas não admito por completo que o sejam --
o que é certo, é que todos vivemos agarrados a uma série
deles. Vivemos com relativa estabilidade, melhor ou pior, se cumprirmos
todos os "nossos rituais" -- satisfazendo os limiares de prazer
que se instalaram em nós. Tirando-se um só que seja desses
rituais, o sistema nervoso protesta -- e vem a sensação de
carência, a dor que ela acarreta, e os actos que daí resultam.
O fenómeno da habituação é muito menos "inofensivo",
mas é exactamente da mesma natureza, quando os limiares de prazer
são demasiado elevados. É daí que deriva, por exemplo,
a angústia incompreendida de que sofrem muitos artistas quando não
têm uma oportunidade de renovarem a sensação de prazer
supremo que lhes dá a sua arte. Mas, a uma escala muito mais alarmante,
é também por aí que milhões e milhões
de pessoas em todo o mundo se entregam aos paraísos da droga. Só
que, ao contrário da arte, são prazeres que não precisam
de mais do que um passador de droga e do dinheiro para a obter. É
fácil demais, por isso não admira que tantos fiquem agarrados
aos químicos.
Digo paraísos porque o são de facto, pelo menos a ajuizar pelos numerosos relatos de quem já experimentou drogas. E como tal, deixar de tomar uma droga é extremamente doloroso -- pois se é rejeitar o paraíso!... Estar-se agarrado revela-se no fazer-se tudo para continuar a habitar esse paraíso. O drogado teria de sair de lá por sua própria vontade para voltar à normalidade. Quantos são capazes de fazê-lo?!
No filme "Trainspotting" há um personagem emblemático, o único que à partida não tomava drogas nem era alcoólico; o hábito favorito para ele era o de "rebolar-se" com a namorada a toda a hora. Esta era a sua droga (como os acontecimentos vieram a demonstrá-lo). Convencionalmente, levava uma vida saudável -- até quis levar os seus amigos a tomarem o ar das montanhas da Escócia -- ... uma jóia de rapaz.
Mas um dia, por causa duma distracção, gerou-se um equívoco que fez a namorada virar-lhe as costas, e aí é que a angústia se instalou... acabou por pedir a um dos amigos para o levar até à droga. E passado um tempo, "dava-lhe" com a maior das forças, acabando por apanhar SIDA. A vida dele transfigurou-se por completo, e mesmo assim ele nunca desistiu de reconquistar o paraíso perdido, só que a ex-namorada continuava a ignorá-lo, até quando ele lhe ofereceu um gatinho pelos anos (e teve que ficar com a oferta recusada!).
Esse gatinho acabou por contagiá-lo com toxoplasmose, matando-o (enquanto nos humanos sem imunodeficiência é uma infecção inofensiva ). Eis pois a tragédia mais contundente na trama tecida por este filme-documentário: a droga destruiu uma pessoa que víramos "limpa". E o facto dos outros drogados terem sobrevivido até pode aparecer como uma injustiça tremenda!
Mas sejamos claros: os outros também já haviam sido "limpos" um dia (só que esse dia não vimos no filme)! E se o que morreu vivera até há pouco limpo quimicamente, andava de tal modo mergulhado no paraíso sexual que lhe constituía a namorada que, quando esse paraíso desapareceu, nada à sua volta se lhe apresentou como substituto à altura; excepto a (fácil demais) solução da droga, na qual limitou-se a suceder aos amigos. Seriam estes aquilo que tantos gostam de apelidar "más companhias"? Então porque é que conviveu com eles tanto tempo sem se drogar? O passo de imitá-los, deu-o ele.
Pode perguntar-se porque é que há pessoas que tomam uma droga e se deixam logo agarrar, e outras que nunca tomam. Afinal quase todos sabem o mal que pode vir de tomar certas drogas, não é de certeza por falta de informação que se distinguem. É importante que se assuma que todos podemos ser susceptíveis se o nosso modo de vida nos tornar vulneráveis. E se cada indivíduo tem a sua história peculiar, mais ou menos única, há um ponto fundamental que é comum a todos os que se deixaram agarrar: a droga veio preencher um lugar que já estava preparado nas suas vidas. Trocar um modo de vida sem droga por outro que se sabe à partida ser uma escravidão implica uma decisão consciente, e isso é o reflexo da "droga de vida" que se deixa para trás com esse passo.
Nem sempre se trata de uma iniciativa tão consciente do indivíduo. É sabido que passam droga nas escolas e que oferecem rebuçados com droga às crianças. Trata-se de recrutamentos de nova clientela entre pessoas cuja capacidade de julgar o que se passa, e portanto de decidir, é ainda incipiente e por isso sujeita às incógnitas do ambiente familiar. Presumo que só são recrutados nestas idades aqueles que vivem em silêncio com os mais velhos, sejam pais ou irmãos. Com verdadeira comunicação, com todos a conversar e a escutar, esta estratégia não funcionaria.
Há também muitos casos de gente que se deixa agarrar por mera curiosidade; a surpresa que terão tido do efeito de tomarem a droga pela primeira vez, leva-os (ainda por curiosidade ou já por outras motivações) a quererem repetir esse efeito; a primeira vez é como a queda num pântano donde não se consegue sair, e onde, devagarinho, se vai afundando. Mesmo essa "inocente" curiosidade tem uma secreta motivação, porque todos precisamos de nos evadir de alguma maneira, e certas drogas não só são extremamente potentes como são -- eu não me canso de repeti-lo -- a via mais fácil de evasão. Evasão dos hábitos diários de resignação e de obediência impostos pela vida em sociedade, hierarquizada, uniformizada. Em minha opinião, a raiz da "droga de vida" está neste esvaziamento da vida de cada um. Por isso todos somos susceptíveis de ficar agarrados, não por tomarmos uma vez por si só, mas porque o mundo traiçoeiro da droga dura é um paraíso (pantanoso, mas paraíso) que faz esquecer o inferno em que todos, a partir da adolescência, começamos a viver.
Como é que a sociedade se dá com a ideia da destruição dos seus membros por estes se evadirem para os paraísos da droga? Muito bem, bem demais! Os argumentos desculpabilizantes são o que menos falta: ele é o darwinismo capcioso que classifica os que se drogam como fracos; ele é o cinismo do desperdício de seres humanos, reflectindo uma crença que em cada geração só uma parte dos indivíduos é que são aproveitáveis socialmente e constituem um abundante "recurso renovável" à medida que as gerações se sucedem; ele é ainda a existência de iniciativas oficiais género Projecto VIDA que salvam a fachada para o Estado -- mas que só actuam onde o mal já está feito, e como já foi dito atrás a informação que se divulga não previne de facto coisa nenhuma. Na "droga de vida" ninguém pensa, toda a gente quer esquecê-la.
No campo da ajuda aos toxicodependentes a auto-organização é olhada com desconfiança pelo Estado, só sendo apoiada oficialmente quando se deixa assimilar pelos organismos oficiais. Mas é curioso como uma parte dessas organizações independentes procedem à cura pela anulação da vontade, produzindo pequenos "exércitos" obedientes cujo desígnio escapa ao meu entendimento... refiro-me não só ao famoso Patriarche, como a n seitas religiosas e mesmo ao M.E.R.D.A., apesar dos contributos promissores deste último. Mas não espanta nada que, por imporem essa anulação, sejam muito bem toleradas pelo Estado e (de forma suicida) sejam ostensivamente ignoradas pela sociedade bem-pensante.
«Todos temos culpa, e a nossa culpa é mortal» (António Gedeão)
Tabaco, álcool, Ecstasy (vulgo "pastilha"), sexo, chocolates ou certos medicamentos, tudo exemplos de hábitos legais ou tolerados que sabemos poderem ter efeitos destruidores análogos aos de qualquer uma das drogas duras; a diferença está em serem "seguras" quando em consumo moderado (ou prescrito). Aqui vem à baila o conceito farmacológico de tolerância: o efeito de uma determinada dose só ser repetido, na vez seguinte em que se toma, aumentando a dose. O consumo imoderado resulta, por isso, da necessidade de recapitular um determinado efeito no sistema nervoso já habituado. Vem tudo dar ao mesmo.
Por isso se repete: um indivíduo que cai em qualquer destes hábitos tinha à partida um lugar preparado para eles. Mas há muitas pessoas, depois de um primeiro contacto, que nunca desenvolvem tais hábitos ao ponto de ficarem dependentes, e isso torna esses hábitos mais toleráveis socialmente: há um maior grau de opção para o indivíduo do que o das drogas duras. Mas é uma linha de separação muito ténue, e no caso da pastilha o aumento do nível de tolerância convida a transitar para as drogas duras, convite reforçado por químicos, menos "seguros" que a base de anfetaminas, malevolamente (?) introduzidos na sua composição: speed, ópio, sabe-se lá... como os rebuçados que dão às crianças! Mas o exemplo que relatei do filme "Trainspotting" ilustra no fundo a mesma coisa, não é só a pastilha que está em causa nesta tendência para transitar para as drogas duras.
Porque é que um fumador sem tabaco "crava" a outro fumador, sem se importar com a marca do tabaco que o outro tem para compartilhar, e já agora porque é que o que é "cravado" nunca hesita em ceder do que tem se também tiver para si? Este "código de solidariedade" entre fumadores (e também entre indivíduos agarrados a drogas duras) chega a fascinar-me: trata-se de uma consequência quase poética do pavor da carência. Quando na situação de carência, não só o indivíduo agarrado se serve de qualquer meio para obter o que precisa, sem limites nem remorsos, como é absolutamente indiscriminado naquilo que aceita tomar quando se vê apertado, desde que contenha aquilo que precisa.
Não é extraordinário? No meio disto tudo, todos os pretextos de prazer são a máscara que cai do rosto da habituação!
Paulo de Oliveira