Nota: este texto alude quase sempre a cenas ou personagens do filme, mas espera-se que mesmo sem essa referência, pelo realismo e a representatividade daquelas, a generalidade dos leitores queira lê-lo com o sentido que se pretende.
Ensinar: missão, emprego, aventura, sacrifício, gozo. Aprender: obrigação, esperança, abstracção, perplexidade, gozo. A escola: herança, santuário, encontro, confronto, pessoas, muros, rituais, frustração. |
Quase simbolicamente, fui ver o filme "A turma" no dia da greve dos professores, a 3 de Dezembro. Calhou-me, mas calhou bem. Tenho passado a vida no ensino, incluindo alguns anos (já longínquos) no secundário, e precisava de ir ver, até porque o realizador, Laurent Cantet, nos tem oferecido uma crónica excepcional da sociedade francesa contemporânea, mas por uma perspectiva na qual nós, por cá, nos revemos sem ter que acrescentar uma vírgula: "Recursos" humanos", "O emprego do tempo", e agora "A turma". Sempre uma visão nua e crua, dura mas duma autenticidade e humanidade irrepreensíveis.
O título original, "Entre muros", é muito mais sugestivo da intenção do filme: não é a turma em si que é o assunto, ela apenas mostra uma das facetas do confronto diário; é a escola, lugar irreal onde, apesar de tudo, se cumpre uma função fundamental para a sociedade, como se reflecte magnificamente nas aspirações testemunhadas pelos pais dos alunos. Um lugar de conflitos permanentes, aqui postos a nu para quem souber (e quiser) ter olhos de ver. Não haverá professor que deixe de reconhecer-se nas situações com que se depara a personagem François, muito bem desempenhado por François Bégaudeaud, ele próprio um professor de Francês e autor do livro, homónimo, instigador deste filme. Na sala de aula, na sala dos professores, nos diversos conselhos, sempre o mesmo desconforto: ser protagonista dum sistema e ao mesmo tempo ter consciência do embuste de toda a encenação de que faz parte.
Quanto à "turma" em si, é um laboratório onde Bégaudeaud e Cantet nos ilustram as tensões provocadas por este sistema. O que lá acontece, haverá talvez a tendência para ver-se como a selva donde os professores saem feridos e assustados, repetidamente a chegarem aos limites. Mas é aí que teremos muito que rectificar: o sofrimento também é dos alunos, sobretudo naquela idade (nada neste filme é deixado ao acaso) em que o renascimento que se dá por volta dos 12-14 anos mais facilmente deriva para a desadaptação. O despertar para o mundo dos adultos acorda-os para um sistema educativo que começa por não fazer sentido; só gradualmente, com mais ou menos traumas, evoluem para um ajustamento mais ou menos conformista.
Qual é a autoridade do professor? A do seu grau académico, a da sua experiência humana e profissional, a do seu "posto" como delegado do sistema, a do programa de estudos que lhe compete transmitir e orientar... tudo isto pode ser posto em causa, e é-o de facto, quer seja por alunos que resvalam para o banditismo e trazem toda a raiva para as aulas, quer nos que, silenciosamente, não aprendem nada. Os inúmeros exemplos de pessoas bem-comportadas, outrora brilhantes alunos, que não conseguem vingar na vida, assim como os daqueles que construíram vidas "de sucesso" sem que para isso contribuissem minimamente os "conhecimentos adquiridos" na escola, minam os pilares dessa autoridade. O apelo das indústrias de entretenimento, cientificamente apontadas para os adolescentes e urgindo ao ingresso no consumo, que não se compadece com a espera de vários anos até completar uma "escolaridade obrigatória", leva a amaldiçoar a vivência na escola, só mitigada pelos laços de cumplicidade entre colegas de carteira. E a mesma urgência de ser adulto, na faceta muito mais positiva de experimentar aquilo que os programas escolares teimam em manter reservado, como a literatura grega clássica...
Como se isso não bastasse, é a própria escola a minar essa autoridade. O despertar da adolescência revela, de maneira mais ou menos parcial e até distorcida, mas com um fundo de verdade que se torna chocante, a mentira que é o ensino. A escola é antes de mais vista como uma prisão (mesmo que inconscientemente; as perspectivas do recreio no filme são bem ilustrativas dessa afinidade), tanto pelas regras de comportamento impostas, como pela proposta duma coisa (a escola, para instruir/a prisão, para regenerar) e a evidência de fazer-se outra (castigar/castigar); onde a "massa estudantil" se vê tratada como gado, que volta todos os dias para casa mas regressa no dia seguinte como se fosse uma autoflagelação... Os programas escolares, pensados certamente com as melhores intenções, versam assuntos cujo interesse imediato não é aparente — um exemplo do filme: aprender uma forma verbal (pretérito imperfeito do conjuntivo) que nunca irei usar, ou se eu a usasse passaria por aquilo que não sou? — nem ajudam os professores a revelar esse interesse, obrigando-os, também com as melhores intenções, a improvisar "actividades", que podem captar o interesse, mas só para confirmar o desajustamento da primeira abordagem. A incapacidade da escola de encontrar solução para questões de ensino ou disciplinares — por falta de entendimento entre os professores, adiando sempre ou delegando, nas situações extremas, para os mecanismos administrados por autoridade superior, como é a transferência para outra escola — completa este quadro de desautorização. Esta falta de entendimento, narcisista e/ou irresponsável, faz com que cada professor "enfrente" as suas turmas como um mero indivíduo, isolado, frágil, prontinho para que essas turmas, convertidas de improviso em turbas malvadas, o lapidem no gozo dum poder duvidoso que as traz mais perto do mundo dos adultos — não que seja a melhor maneira de viver esse mundo, mas a ocasião presta-se várias vezes ao longo do ano...
Há mais: o próprio professor perde a autoridade com a sua conduta. A começar pelas oscilações entre rigidez e flexibilidade na questão das regras de comportamento; mas de maneira mais subtil e com muito maior importância, tanto mais porque é provavelmente a faceta mais negligenciada das atitudes institucionais autodestrutivas, mostrando insensibilidade. Os adolescentes exigem reciprocidade, o professor tem de dar o passo, delicado nas suas implicações mas indispensável, de aproximar-se para assim melhor chegar aos seus alunos. Livrar-se das barricadas para abraçar o irmão do outro lado. E como resultados práticos:
É fácil falar, claro. Pois, se assim fosse, François seria um super-homem. E para os alunos, que na adolescência se apercebem que não o é, ele vai perdendo a autoridade. Tenta aguentar-se na vacilante corda bamba dessa autoridade, até ao dia em que cai por si mesmo, descendo do pedestal onde o sistema o coloca, por usar, em desabafo, uma palavra que não lhe é permitida. Para aqueles alunos, nunca mais voltará a poder subir, e não é por acaso que a partir daí certa aluna já se penteia sem esconder as orelhas.
E o sistema aproveitará para fazer dele bode expiatório, não de imediato mas quando a oportunidade surgir, e não deixando de lembrar-lhe que até lá continua marcado pelo seu erro. Apenas uma das muitas maneiras que tem de reduzir os professores a uma atitude de humildade medíocre, na falsa segurança da barricada. Ora, o tal desabafo adveio duma situação complexa na qual o professor, indivíduo isolado, é apenas uma parte do problema.
Esta insensibilidade generalizada é revisitada colectivamente, numa cena particularmente chocante porém magistral, em que uma oportunidade de mostrar solidariedade material, no caso para com a família dum dos melhores alunos, dá lugar às boas intenções à volta duma taça de espumante, mas que não pagam nada.
Na verdade, o sistema de ensino, de tão desajustado e caduco, só seria tolerável com super-homens capazes de pô-lo em causa a partir de dentro, para torná-lo mais construtivo. Mas, perpetuado da maneira que é, vê-se que não dá saída: os professores recrutam-se em geral entre os que, quando eram alunos, se adaptavam muito bem ao sistema, eram "bem-comportados" — no fundo, estão entre a minoria que gosta da irrealidade do ambiente da escola, e cultiva-a. A inércia do sistema, auxiliada pelo lastro da cobardia nos dirigentes, do comodismo em todos, e da geral alienação na sociedade em geral, começando pelos pais, é o que prevalece. Os paralelos com a perpetuação do Estado e do sistema financeiro são óbvios. Todos sabem que o ensino teria de mudar para voltar a ser um bem de todos, mas todos (alunos, professores, dirigentes), quando lhes toca a vez de saírem da escola, só querem é esquecer. E no meio disso, o que há décadas atrás se cumpria meramente com um encolher de ombros, agora vive cada vez mais em sobressalto.
É um sistema que se afirma por vários níveis de autoritarismo que, como defendo acima, são postos em causa não só por factores "extra-muros", mas sobretudo pelo que acontece "entre muros". E todos são vítimas, alunos, professores, sociedade — esta última, porque teria a ganhar imenso com um bom sistema de ensino, mesmo que massificado, mas bom. E a tónica de bondade implica não haver autoritarismos nem muros (materiais ou outros), implica estar alerta a todos os sinais, implica amor. Com a capacidade de pedir perdão, e a capacidade de perdoar.
Tudo isto decorre à margem da recente guerra da avaliação de professores, mais uma preversidade do sistema de ensino. O mal é mais profundo, o ministério limita-se a fazê-lo mais evidente.