Vícios privados, públicas virtudes

Nem sempre uma gravidez é pacífica na vida de uma mulher e da sua família. Mas na óptica de muitos, a resolução do problema da gravidez indesejada cabe à mulher apenas, e logo por aí começa o mal. Pode ser indesejada por um sem-número de razões que aliás têm sido repisadas estes dias, mas que mesmo assim são ignoradas por muitos, quanto mais não seja porque o aborto na clandestinidade salvaguarda em muitos homens uma imagem de "pai de família" e de "marido amantíssimo".

Quase nenhuma mulher interrompe a gravidez de ânimo leve. As que decidem abortar, clandestinamente ou não, têm consciência do novo ser que vive lá dentro, sabem mais ou menos bem que, mesmo nas melhores condições, o aborto é uma violência terrível, psicológica como fisicamente. Se o fazem, é porque não vêem outra saída, e em lugar da condenação, os seus problemas deveriam suscitar compaixão, solidariedade e uma honesta reflexão. A legalidade do aborto por decisão da mulher vai encorajá-la a encarar um médico que a saberá aconselhar e tem o dever de lhe recomendar, se a gravidez é normal, que prossiga com ela. O aborto ilegal empurra-a para uma qualquer parteira ou "profissional de saúde" que não aconselha, faz negócio. Será justo que o proibicionismo da Lei consagre esta fatalidade?

As mulheres "pró-vida", diz-se, pertencem maioritariamente à "direita". É claro que abortam menos que as outras porque os problemas de uma gravidez indesejada ou não são os mesmos ou ficam muito atenuados graças à condição sócio-económica vantajosa de que disfrutam em média. Não querem que o aborto seja despenalizado porque, a ser mantida a barreira da legalidade na maior parte das situações de gravidez indesejada, os custos dessa ilegalidade traduzem-se para elas apenas numa parte do dinheiro que têm, para pagarem a certas parteiras ou a clínicas na Espanha ou na Inglaterra; para as outras, os custos traduzem-se em sentimentos de culpa, danos físicos irreversíveis, morte, endividamentos, ou então aos sacrifícios ao longo de anos e anos a criar uma ou mais crianças em más condições, quantas vezes abandonadas pelos homens que são os pais e também pela restante família. Por isso de certeza que não passam quase todas as "pró-vida".

A Igreja Católica está bem no seu papel em promover o "não". Todos temos a nossa cruz para carregar, e em alguns terá de ser a resignação de ter filhos a mais, amen. Só se pergunta porque não foi tão diligente a condenar o aborto clandestino ao longo de tantas décadas. Limita-se a lamentar que não haja melhores condições de vida e informação para todos, como se a solução para isso estivesse já ao virar da esquina! Quanto ao Estado, dá a triste aparência de indecisão ao referendar, pela primeira vez na nossa História, uma lei aprovada no Parlamento. Por detrás disso, contudo, está a mais-valia deste referendo constituir um ensaio-geral para o referendo-que-se-segue, ao qual foi desde o início associado. Quem é que ainda tem estômago?