TERROR E VACAS LOUCAS

I

Ser-se cientista é socialmente frustrante, não só porque a generalidade do público não encaixa a ideia de sustentar uma actividade aparentemente inútil, mas porque a verdade científica em matérias polémicas ou é a última a ser ouvida, ou até é sistematicamente ignorada. O que está a acontecer na chamada doença das vacas loucas ou BSE (para o inglês Bovine Spongiform Encephalopathy) serve bem de exemplo do que poderia estar muito melhor esclarecido do que é na realidade.

Talvez surpreenda eu dizer que no caso da BSE, embora haja uma transmissão do agente patogénico, não se pode falar de infecção. Mas sabendo como se desenvolve a patologia deverá ficar claro porquê. O agente patogénico é uma proteína que se localiza no tecido nervoso e que foi baptizada de prião (prion protein, ou PrP); na forma normal (PrPC), o prião é inofensivo, mas na forma patogénica PrPSc (o expoente Sc refere-se a uma encefalopatia ovina conhecida há séculos na Grã-Bretanha, o scrapie) tem a propriedade de transformar outros priões normais em priões patogénicos (PrPC PrPSc), os quais por sua vez também adquirem essa propriedade, propagando-se o prião patogénico numa autêntica reacção em cadeia que redunda na acumulação de PrPSc e posterior degeneração do tecido nervoso onde se dá essa acumulação (daí formarem-se lacunas no encéfalo, donde o termo espongiforme).

Que aconteceu a uma vaca inglesa que contraiu BSE? Com o desmame começaram a dar-lhe rações contendo farinha de carne, conforme era prática corrente até 1988 (ver adiante), a qual estaria contaminada com PrPSc de ovino. A repetida ingestão destes priões teria aumentado a probabilidade de atingirem o tecido nervoso desta ainda vitela e aí encontrarem-se com os seus PrPC (normais), transformando-os em PrPSc. Agora note-se: o agente infeccioso era de ovino, mas o prião patogénico que se propagou neste infeliz hospedeiro é de bovino. Por isso, para que o PrPSc de bovino possa afectar de alguma maneira os seres humanos terá de não só poder atingir o sistema nervoso do humano (admitamos que sim) mas também de actuar sobre a nossa própria versão de PrPC provocar a acumulação patogénica de PrPSc humana! E é aqui que se põem as maiores dúvidas por parte dos cientistas: da mesma maneira que uma vaca é mais parecida com uma ovelha do que com um ser humano, também os priões de ovino e bovino são mais parecidos entre si do que com o prião humano, e assim sendo, suspeita-se que o PrPSc de bovino não possa actuar sobre o prião humano. Isto quereria dizer que o nosso risco de desenvolver uma doença como a BSE por ingestão de produtos bovinos afectados não deve existir.

Se a BSE fosse uma infecção (e muitos, infelizmente, referem-se-lhe como tal), o prião de ovino nas rações "reproduzia-se" dentro do bovino hospedeiro, produzindo mais cópias (de prião ovino) que poderiam transmitir-se e repetir todo o processo. Mas o que "sai" do hospedeiro não é o mesmo agente, nem sequer descende dele, e por isso não é uma infecção. Pode isto parecer uma mera questão teórica, mas o facto é que a BSE «é uma doença da vaca, não é da manada»: se a ocorrência de BSE numa vaca implica o abate de todos os bovinos da mesma unidade de produção, isso resulta de todos serem alimentados da mesma maneira e não de ter havido um foco infeccioso. Por isso a medida tomada pelo governo britânico, em 1988, de proibir as farinhas de carne nas rações, traduziu-se (4 anos depois) no progressivo declinar do número de casos de BSE naquele país. Presentemente as incidências de BSE na Grã-Bretanha estão a níveis muitíssimo baixos.

II

É na posse destes dados que interessa reflectir sobre a presente crise das vacas loucas. Sabendo-se como os meios de comunicação social têm agitado a nossa sociedade, como é patente no presente estado de alarme com o consumo da carne de bovino, torna-se evidente que o tratamento que lhe têm dado denota uma total ausência de sentido crítico e a maior ignorância:

As doenças associadas a priões na espécie humana, exceptuando o caso muito especial do Kuru, são de carácter genético (hereditário ou esporádico), não havendo qualquer evidência de transmissão de bovinos ou ovinos ao Homem.

A regressão drástica do número de bovinos afectados, fruto da exclusão das farinhas de carne da sua alimentação, confirma que são os priões causadores do scrapie nos ovinos que estão na origem da doença das vacas loucas. Por várias décadas a espécie humana esteve "potencialmente" exposta aos priões alterados de ovino e bovino e teria já sido muito provavelmente tempo suficiente para que se detectassem casos deste tipo de patologia, nas populações humanas, que se tivessem desenvolvido a partir de uma transmissão por via alimentar. Ao contrário dos bovinos, não se tem verificado qualquer associação do consumo de carnes ou produtos lácteos suspeitos com a ocorrência destas encefalopatias nos humanos.

A nutrição dos bovinos de carne é muito diferente da dos bovinos de leite, e é nestes últimos que a probabilidade de ocorrência de BSE se confirmou alguma vez, porque a base alimentar para os bovinos de carne, precisamente por causa do tipo de produção a que se destinam, não são as farinhas mas sim o pasto. Nas actuais condições, até porque os ingleses deixaram de poder impingir rações com farinha de carne aos outros países, é extremamente improvável que os bovinos de carne possam transmitir priões do tipo PrPSc aos humanos. Mesmo assim, é conhecido como se recomenda cautela no consumo de tripas ou mioleiras de bovino, que em caso de contaminação concentram muito mais priões do que o bife ou o leite.

Os órgãos de comunicação social exploram esta crise por duas razões imediatas: a de "mexer" com a classe política, deixando-a apavorada pela perspectiva dos seus queridos lugares a estremecerem (e isso até me diverte, pois os políticos são ignorantes e daí incapazes de ir para além das ideias gerais, com as quais não chegam a rebater jornalistas em delírio inquisitório); e a de monopolizar as audiências com as suas "verdades" de circunstância -- ao sabor das constantes "revelações" de novos dados (fruto não das suas pretensas investigações mas sim do que lhes é ditado) -- aqui sim, está uma actuação nefasta e pouco responsável: os jornalistas começam por não saber nada, julgam a notícia apenas pelo impacto que pode ter sobre o público, não investigam (é muito fastidioso), mas retomam sempre que podem para manter essa frente de flagelação da consciência colectiva, e de cada vez juntam-lhe o sal e a pimenta que puderem como se se tratasse de um filme de terror e não do assunto grave que é. Por exemplo, só em 1993 (5 anos depois do início do programa britânico de erradicação das farinhas de carne, e com as incidências de BSE já em declínio) é que a BSE começou a ter caixa alta no nosso país, e só em 1996 é que dizem ser "agora" também um problema dos ovinos e caprinos; depois, ao saberem que a doença passa da mãe-vaca para o bezerro, "concluem" logo que também é genética (quando na verdade, ó santa ignorância!, se trata de transmissão por via placentária).

Em todo o caso, o facto de alimentarem a crise das vacas loucas, face ao que cientificamente se vai comprovando, revela a verdadeira face da comunicação social: a da sua irresponsabilidade para com o público que proclamam informar. Os leitores de A BATALHA bem sabem como a actividade jornalística não é um quarto poder, mas sim um instrumento de interesses geralmente pouco claros. O jornalista encontra-se prisioneiro de uma política editorial que por sua vez é prisioneira dos que lhe pagam para existir.

Quanto a quem aproveita com esta crise... duvido que mesmo os produtores de carne (acredito que genuinamente desesperados) o saibam dizer, mas o facto (muito contrastante) de praticamente não se beliscarem os interesses dos produtores de leite faz-me suspeitar que os políticos, especialmente a nível europeu, sabem (bem demais) o que se está a passar. Eis o que é factual: há lucros insuspeitados nos vários mercados de consumo de carne, pois a carne de vaca devia estar mais barata e não está, e as de perú e de porco estão mais caras; por outro lado, e é isto que me revolta mais, espalhou-se nas populações urbanas um absurdo terror em relação ao consumo da carne de vaca -- é de grande relevo para toda esta história que o grande público, já tão docilmente sujeitado a entorpecer-se de televisão, futebol, ecstasy e rebanhos turísticos, ainda o ficasse mais porque não sabe se pode comer isto ou procurar aquilo. Até que ponto se hão-de encurralar os povos?

Os políticos sabem o que lhes convém.

Paulo de Oliveira