Um balanço da Revolução Verde
Não me considero "ambientalista", sou um biólogo, acredito no bem que a Ciência pode trazer ao mundo, mas também sei ver o reverso dessa "medalha".
Sem duvidar das boas intenções de Borlaug, o "pai da revolução verde", os factos são:
1) A fome continua, pode mudar de sítio mas continua.
2) A abundância de alimento pode resolver a fome nalguns sítios, mas globalmente só faz é aumentar a população. E a obesidade.
3) A abundância, seja do que for, é o alimento do capitalismo.
Daí que:
4) A revolução verde, depois dum primeiro alívio (local) de problemas de fome, tornou-se na realidade mais um pretexto para lucro e controlo diabólico sobre a humanidade (avant la lettre, a globalização no que tem de mais abjecto); não foram só as tecnologias, foi também todo o discurso de resolver o problema da fome, que abriram caminho para um aproveitamento egoísta à escala global, que hoje se traduz em perdas muitas delas irreversíveis
para a humanidade:
- perda de diversidade genética nos produtos agrícolas;
- perda de heranças culturais de âmbito local em práticas agrícolas, gastronómicas e sacrais associadas à produção agrícola tradicional;
- perda de reservas de água;
- perda de áreas naturais;
- perda de saúde (degradação da qualidade dos alimentos).
E ainda se traduz em duas novidades muito graves, uma gritante que é a poluição do solo com fertilizantes, outra muito mais subtil mas (se possível) ainda mais aterrorizadora, que é a gestão da fome a nível mundial.
Finalmente:
5) É fácil dizer estas coisas agora. Por isso não deixo de juntar-me na homenagem a um homem que acreditou na ciência como a solução para os problemas da humanidade. Mas que terá partido talvez com a mágoa de perguntar-se «o que é que eu desencadeei?»
Embora a solução passe mais por outras áreas, talvez possa sempre ter a boa ajuda da ciência, naturalmente. Mas o problema resume-se na citação que agora faço (de memória) de Gandhi: «a Humanidade produz o suficiente para satisfazer as suas necessidades, mas nunca conseguirá saciar a sua voracidade»
Paulo de Oliveira
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Notícia original
1914-2009
Norman Borlaug - O homem que alimentou o mundo e foi Nobel da paz
Por Ana Gerschenfeld
Convicto de que o primeiro passo para garantir a paz no mundo era alimentar os esfomeados do planeta, o cientista norte-americano Norman Borlaug dedicou a vida à resolução científica do problema, desencadeando a chamada Revolução Verde
Norman Borlaug, considerado o pai da agricultura moderna, morreu no passado sábado no Texas, de cancro, aos 95 anos de idade. Na Índia ou no México, choram a sua morte; por cá, é virtualmente um desconhecido. Não é de admirar: "mais do que qualquer pessoa da sua idade, ajudou a fornecer pão a um mundo com fome", declarava em 1970 o Comité Nobel norueguês ao anunciar ser ele o laureado do Nobel da Paz naquele ano.
Borlaug não era um filósofo nem um ensaísta, nem sequer um político: era biólogo vegetal - especialista das doenças das plantas e geneticista - e tinha lutado toda a vida para melhorar o rendimento dos cereais. Mas o comité Nobel tinha-o achado merecedor da recompensa por uma razão muito simples, que explicavam:
"Fizemos esta escolha na esperança de que fornecer pão também sirva para conseguir a paz no mundo". Borlaug era, diziam ainda, directamente responsável por ter salvo centenas de milhões de vidas humanas.
Este homem, nascido em 19e países como o México e a Índia, ou a China e o Brasil, confrontados com um crescimento populacional desmesurado a seguir à II Guerra Mundial, se tornassem auto-suficientes na produção os seus alimentos de base.
Conta Leon Hesser, na sua biografia de Borlaug intitulada The Man Who Fed the World (O homem que alimentou o mundo) que quando o cientista, então com 56 anos, recebeu a notícia telefónica da atribuição Nobel da Paz, não acreditou. Foi por volta das seis da manhã (como é costume, devido à diferença horária entre a Europa e a América) que a sua mulher atendeu o telefone. Como Borlaug estava já a essa hora a trabalhar num campo de trigo nos arredores da Cidade do México, ela foi até lá de carro anunciar-lhe a boa nova - e recebeu como resposta um "alguém está a brincar contigo" incrédulo. Mais tarde, já convencido de que a informação era fidedigna, Borlaug disse que iria festejar o evento quando acabasse o trabalho.
"Ele fez provavelmente mais do que muitos, mas é conhecido por menos gente do que qualquer outra pessoa que tenha feito tanto como ele (...). Tornou o mundo melhor", declarou à imprensa, a seguir à morte de Borlaug, Ed Runge, amigo e colega de longa data na Universidade A&M do Texas, onde Borlaug trabalhou muitos anos.
Pelas estradas do México
Acabado o doutoramento, no início dos anos 1940, Borlaug foi recrutado pela empresa DuPont, que fazia investigação na área dos fertilizantes químicos. Mas a sua verdadeira carreira só começaria em 1944, quando foi enviado para o México pela Fundação Rockefeller para integrar um programa de luta contra a fome a pedido do Governo mexicano. Conta o New York Times que, ao deparar-se com a miséria em que viviam os pequenos agricultores mexicanos, com a degradação dos solos e a infestação das culturas pelo fungo da ferrugem do trigo - e com a desolação do campo mexicano em geral - escreveu à mulher, desesperado: "Não sei o que podemos fazer para ajudar esta gente, mas temos de fazer qualquer coisa."
Borlaug lançou-se de corpo e alma no projecto, trabalhando no campo, viajando milhares de quilómetros por estradas em estado calamitoso para conseguir cultivar as suas variedades experimentais de trigo ao longo do ano todo, aproveitando as diferenças climáticas.
Conseguiu assim desenvolver, numa primeira fase, uma espécie muito mais adaptável e resistente à ferrugem. E também conseguiu vencer as barreiras psicológicas e convencer os agricultores e as autoridades mexicanos a adoptarem a nova variedade de trigo.
Entretanto, os fertilizantes à base de azoto começaram a ser utilizados, aumentando o crescimento e daí o rendimento do trigo. Mas havia um problema: como esses compostos químicos faziam crescer ao mesmo tempo o caule (já de por si comprido nas variedades mexicanas tradicionais) e as espigas, as plantas acabavam por vergar sob o peso dos grãos e as colheitas eram perdidas.
Numa segunda fase, já nos anos 1950, Borlaug percebeu que talvez uma planta mais pequena e robusta pudesse ser a solução contra este novo obstáculo. Existia justamente uma variedade japonesa cuja originalidade genética a tornava mais compacta, mais curta - e portanto, mais susceptível de resistir ao peso acrescido das espigas.
Borlaug decidiu cruzar a sua anterior variedade de trigo mexicano com essa espécie japonesa de trigo anão para transferir a vantagem genética para o trigo local. O resultado foi providencial: obteve uma planta compacta, baixinha, com a espiga carregada de grãos. "O resultado foi uma variedade que era resistente à doença e capaz de produzir 10 vezes mais grãos de trigo do que a variedade mexicana não tratada", escreve o Washington Post.
Depois disso, houve governos de vários países que pediram ajuda a Borlaug, a começar pela Índia e pelo Paquistão. Mais tarde, desenvolveu também novas variedades de alto rendimento de arroz, alimento de base nos países asiáticos. Em duas décadas, a América Latina, o Médio Oriente e a Ásia tinham entrado na era da revolução verde.
Segundo estimava numa entrevista (também referida pelo NYT) Gary Toenniessen, director dos programas agrícolas da Fundação Rockefeller, cerca de metade da população mundial vai para a cama à noite depois de consumir grãos derivados de uma das variedades de alto rendimento desenvolvidas pela equipa de Borlaug.
Críticas ambientalistas
Borlaug viria mais tarde a ser criticado pelos ambientalistas por ter fomentado o abuso de fertilizantes e pesticidas químicos e o recurso à monocultura, aumentando as necessidades em água de rega (as variedades de alto rendimento são mais sedentas) e reduzindo a diversidade genética dos cereais, promovendo assim o fim da pequena agricultura e o controlo das grandes multinacionais sobre a agricultura. "Os peritos norte-americanos difundem por todo o mundo práticas destruidoras e insustentáveis", dizia em 1991 Vandana Shiva, conhecida activista indiana.
A isso, Borlaug respondia que o problema não eram as técnicas agrícolas, mas o crescimento populacional descontrolado, e que se a população mundial continuasse a crescer, a espécie humana seria destruída. Para ele, as críticas reflectiam um modo de pensar "elitista", próprio de pessoas que nunca tinham tinha tido "de se preocupar com a próxima refeição". Porém, veio ulteriormente a reconhecer que nem todos os ambientalistas eram fundamentalistas e que era preciso reduzir a utilização de compostos químicos na agricultura.
Nem todas as críticas são disparatadas, concorda numa crónica no site da revista New Scientist a jornalista Deborah McKenzie, que o conheceu pessoalmente. Em particular, escreve, "é um facto que as culturas modernas precisam de muita água e que os solos não são indefinidamente sustentáveis. Mas não tenho paciência para os argumentos segundo os quais a revolução verde foi um complot capitalista egoísta. A fome costumava ameaçar regularmente o subcontinente indiano: em 1943, dois milhões e meio de pessoas morreram no Bengal. A revolução verde acabou com isso."
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