Darwin fez 200 anos

A comemoração de Charles Darwin, a pretexto dos 200 anos do seu nascimento e dos 150 de publicação da Origem das Espécies(1), acontece em todo o mundo por estes dias. Não é só a Biologia, ou a Ciência, que festejam: é a sociedade, pelo menos onde os preconceitos da religião não impedem que se aprecie na sua justa medida a monumental obra de Darwin(2).

Em Portugal, para além de iniciativas do programa Ciência Viva e entidades diversas, temos uma exposição e ciclos de conferências organizados pela Fundação Gulbenkian que, só por si, já são acontecimentos importantes. A exposição vale bem os 4 Euros que nos pedem à entrada: entra-se por um alçapão aberto numa cópia da proa do navio Beagle, e lá dentro serpenteia-se por animais, plantas, fósseis, livros e cartas, personagens (destaque para Francisco Arruda Furtado, um escriturário açoriano que pediu conselhos a Darwin, e sobretudo para uma muito conseguida reconstituição 1:1 do jovem Darwin, o insaciável observador da natureza), os inevitáveis multimédia e, no que é uma aposta ousada, exemplares de animais vivos. Não se vê em menos de duas ou três horas.

As conferências começaram no Outono, por convidados portugueses, e prolongam-se agora com oradores estrangeiros, tendo começado em 13 de Fevereiro com Niles Eldredge, curador da exposição norte-americana e uma figura de grande relevo na interpretação evolutiva do registo fóssil, continuando dia 25 com John Parker, director dos jardins botânicos da Universidade de Cambridge, onde Darwin esteve antes da viagem do Beagle e conviveu com o eminente botânico John Henslow. Seguem-se a 11 de Março Olivia Judson, cientista-divulgadora e também jornalista, em 25 de Março Pietro Corsi, historiador da ciência que vai revisitar as ideias sobre evolução antes da publicação da Origem das Espécies, em 8 de Abril Lynn Margulis, famosa promotora de ideias inovadoras sobre evolução por simbiose, e do conceito Gaia, e a 29 de Abril Mark Stoneking, muito activo estudioso de antropologia através dos genes. Finalmente, em 13 de Maio ouve-se David Sloan-Wilson, autor notório de teorias evolutivas "sociológicas" (algo controversas), encerrando o ciclo no último dia da exposição, a 24 de Maio, com Rosemary e Peter Grant, que numa das ilhas Galápagos se têm dedicado a um cuidadoso trabalho de verificação da teoria com os famosos "tentilhões de Darwin", que tiveram grande importância para vários argumentos de Darwin sobre adaptação evolutiva.

A ênfase em fazer chegar esta exposição aos alunos das escolas secundárias é de saudar calorosamente.

Darwin no presente

Para nós, hoje, a obra de Darwin está longe de ficar quieta nas prateleiras. Por necessidade, o que talvez surpreenda. Se para a maior parte essa obra serviu para acabar com o tabu sobre a evolução, abrindo as portas ao que podemos chamar de Biologia moderna, na realidade ela continua como uma referência a lembrar-nos a futilidade das polémicas que, em vagas sucessivas, marcaram estes 150 anos. O discurso dele afirmava uma ruptura, é certo, mas ao contrário de muitos especialistas de hoje e de ontem, Darwin nunca usou argumentos desonestos nem levou as suas deduções além do que lhe era racionalmente permitido; é admirável como soube sempre manter um impressionante equilíbrio de julgamento e ponderação que serviu para dar ainda maior relevo às suas afirmações. Por isso ele permanece como um garante de unidade. Ironicamente, como se fosse uma bíblia, a Origem das Espécies tem os seus exegetas e obriga muitos a reeducarem as suas interpretações. Não que o seu autor fosse menos claro nos seus argumentos, o problema está na incapacidade de quase todos de mantermos aquele equilíbrio e aquela ponderação.

Podia pensar-se que o irracionalismo criacionista é a única fonte de polémica. É de facto a mais visível, e constitui um problema sério, especialmente entre os que professam o protestantismo cristão. Rebater as falsas críticas dos criacionistas/ID(3) não é tarefa fácil, sobretudo quando se trata de defender perante a sociedade, sem os detalhes técnicos que alienam, a legitimidade científica da Teoria da Evolução, ou seja, persuadir em três pontos:

Não é à toa que Darwin queria adiar a publicação da Origem das Espécies e até concebia, à maneira de Copérnico, deixá-la como obra póstuma. Sabia, pela sua própria experiência, o quanto essa obra abalaria alicerces fundamentais da sociedade, quer de então quer futuramente. Mas, entre considerar que a compreensão da natureza nega a narrativa bíblica da criação, ou que esta narrativa se interpõe à compreensão da natureza, o espírito científico não tem por que hesitar, favorecendo a segunda interpretação. O problema é que o primado da Ciência não é aceitável para todos, não sempre pelo menos. Aqui, vem a propósito o facto de Maimonides, distinto rabi cordovês do tempo de Afonso Henriques, ter sentenciado: "se a ciência e a Torah entram em discordância, é porque a ciência não foi compreendida ou a Torah foi mal interpretada". A tradição autora do livro da Génesis, por sinal, é bastante pacífica em relação à Teoria da Evolução.

Esta teoria começa em Darwin e mantém-se consensual através de gerações e gerações de debates sobre as novas observações ou descobertas que a pudessem invalidar. Complementada no século XX naquilo que ela tinha de mais frágil, que eram os fundamentos genéticos, saiu sempre reforçada e aperfeiçoada no papel de melhor explicação científica disponível (é mesmo esse o papel duma teoria, o de explicar).

Contudo, o aceitar-se como facto científico a Evolução das espécies vivas não implica que a explicação seja completa, pois ainda há muitos aspectos onde a falta de sínteses do conhecimento acumulado perpetuam um ambiente de controvérsia entre os especialistas. Tal deu ensejo a que o papa João Paulo II, na comunicação que fez em 1996 dando razão aos argumentos científicos, estipulasse não haver uma teoria da evoução mas várias. "Porém move-se...": com tudo o que há de divergências nos detalhes, o legado de C. Darwin permanece um magnífico tesouro civilizacional, e as homenagens deste ano constituem o reconhecimento social que lhe é devido.

Paulo de Oliveira
  1. O título completo, no original, foi: On the Origin of Species by means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life.
  2. A Origem das Espécies já bastaria, mas houve, só em livros científicos, cerca de vinte de grande valor, abrangendo a formação dos atóis, a geologia das ilhas vulcânicas, a taxonomia das cracas, a atracção de insectos polinizadores pelas orquídeas, a selecção artificial em animais domésticos, a selecção sexual, as emoções, plantas trepadeiras, plantas insectívoras, o movimento nas plantas, a formação de bolores.
  3. ID = Intelligent Design (desenho inteligente), versão "actualizada" do criacionismo, no sentido em que admite a possibilidade de evolução mas postula uma "entidade inteligente" que dá ao processo evolutivo um propósito, uma finalidade, evitando sempre dizer de que entidade se trata, e que surgiu nos anos 80, muito apoiada pelo então presidente dos States, Ronald Reagan. O autor promove workshops para professores do Ensino Secundário onde se entra em contacto directo com os argumentos criacionistas e a sua refutação.