Ensinar é libertar do jugo da ignorância. Tudo o que deixa de ser libertação, neste contexto, não é Ensino: é transferência de submissão. Nos tempos em que o Ensino estava a cargo do Clero, mesmo nos tempos negros da Escolástica, por vezes floresceu a Dúvida, confrontaram-se pareceres, e houve crises que, sobretudo na área da Teologia, deram muito que fazer às consciências a esses eleitos do conhecimento. Os enciclopedistas culminaram o espírito novo que, a partir do século XIX, se foi traduzindo no progressivo alargamento do Ensino à generalidade das populações(1) , consumando-se pela transferência da tarefa educativa para o Estado.
Como é que se podia esperar que um Ensino digno desse nome (recorde-se: libertador) havia de ser ministrado em tão larga escala? O Estado não seria o que é, de certeza! Temos pois assente que o Estado teve de aprender a administrar a Educação para melhor submeter quem o sustenta. Por isso os maiores riscos sobre esse intento foram sempre os próprios agentes educativos, professores e bibliotecas nomeadamente (e também a família, nos casos em que seja capaz de imprimir individualidade). O Estado, para conter eventuais surtos de criatividade, trata de afastar progressivamente os alunos dos professores, uns e outros das bibliotecas (de preferência afastando também os alunos das suas famílias), e esperar que esta alienação se auto-propague durante duas ou três gerações.
A minha memória e os meus 35 anos de idade fazem-me remontar apenas à reforma educativa de Veiga Simão o hábito que o Estado Português tem de brincar às experiências educativas. Uma dessas experiências, que inicialmente só pretendia servir o propósito a curto-prazo de desviar algumas vocações universitárias, desenvolveu-se na sucessão Serviço Cívico - numerus clausus - Ano Propedêutico/ 12º ano - Provas Específicas. É bem evidente, nesta sucessão, uma fuga para a frente escandalosa em que enveredou esta (incompetente) "pessoa de bem" que nos quer governar; mas o crescente de obstáculos no acesso ao Ensino Superior trouxe efeitos que acabam por convir imenso ao Estado: os alunos não estudam propriamente, entulham-se de palavreado e fórmulas; perdem o sentido da solidariedade e da amizade com os colegas; as aulas, a preparação intelectual, o contacto com os materiais e as fontes, tudo isso dá lugar às colectâneas de exames anteriores resolvidinhos, aos fortificantes neurológicos, a uma angústia muito imprópria de quem anda pelos 17/ 18 anos... que digo?, pelos 15-20 anos!
As sucessivas vagas que após isto tudo chegam à universidade são amálgamas desumanizadas, já cansadas do que julgam ser "aprender" pior, já marcadas por um estilo de aprendizagem livresco, unívoco e acrítico, destituídas de uma arquitectura mental capaz de ordenar o que deviam ser conhecimentos... e são entulho por cima de entulho. Isto reflecte-se, aliás, no comportamento que têm, infantil, superficial, disperso, fatalista, rígido, e também no súbito cinismo que um belo dia sobrevém. Quando se queixam da "falta de preparação" que "vem de trás", é verdade: eles são as vítimas, mas duvido que se apercebam da preversidade do sistema onde estão a ser educados.
A acrescentar a isso temos a situação das universidades periféricas, como é a que eu pertenço (Évora), idealizadas por Veiga Simão para mais depressa povoar o então "Ultramar" com quadros superiores, e que são hoje segundas-escolhas para onde convergem estudantes a verem-se de repente à solta, mas enxertados num meio social que lhes parece provinciano e hostil. Não admira, por isso, a tendência para desclassificarem as suas universidades (onde tanto lhes custou chegar, não foi?), com acusações à esquerda e à direita sobre docentes, funcionários, estruturas e funcionamento, acusações alimentadas por uma frustração profunda e cujo algum fundamento se perde perante a facilidade com que o fazem.
Tudo isto faz as delícias do Estado, que tanto vê saírem recém-licenciados submissos e em muitos casos já inscritos num partido político, como vê muitos professores tanto dos ensinos Básico e Secundário como do Superior a baixarem os braços, pensando cada um por seu lado que o seu melhor esforço é em vão. Não tenho dúvidas que o estrangulamento financeiro das universidades e a dramatização do acesso ao Ensino Superior servem um só e mesmo propósito de neutralização desse potencial perigo que é o Ensino. E não tenho dúvidas que essa estratégia é praticada em todos os "países desenvolvidos", que necessitam do contínuo suprimento de quadros superiores comprometidos e coniventes, e que não se importam nada estar a amontoar-se uma legião de "punks", quando não no aspecto de certeza que no íntimo, que ficam pelo caminho em cada geração. A selva do desperdício a ditar as suas leis, envolvendo elites fortificadas...
Diz-se muitas vezes que o Ensino Universitário anda desfasado, ou que os diplomas não têm valor no "Mercado de Trabalho". Vem-me à memória um exemplo que a generalidade entenderá: compare-se o desempenho no Ministério das Finanças dos "professores" Ernâni Lopes e Braga de Macedo com o dos "práticos" Miguel Cadilhe e Eduardo Catroga: há que reconhecer que as universidades em Portugal precisam de reflectir sobre tais críticas.
Há casos de professores que se deixaram enlear na rotina, ano após ano despejando sempre o mesmo "saco", semestre após semestre perdendo o sentido da avaliação de conhecimentos, sem nunca procurarem renovar o seu ministério; o pior, diria eu, é que se perde a possibilidade desses professores abrirem o seu capital de experiência e reflexão a quem tem a oportunidade de aprender com eles. Depois, há a consabida tendência (só portuguesa?) de certos mestres ensinarem apenas «o que querem», guardando como trunfo ilusório o melhor do seu conhecimento: esta atitude denota uma insegurança que se prolonga na perseguição a potenciais competidores enquanto eles podem ser anulados; tais pseudo-mestres criam o deserto à sua volta.
É em nome da "cura" a estes males tradicionais que um pouco por toda a parte se têm instituído esquemas competitivos de contratação, que obrigam os professores a renovarem-se cientificamente. Como todos os sistemas, viu-se prevertido (lá fora como cá), pois dele resultam "sobreviventes" que não têm tempo, ou disponibilidade, ou até vocação para ensinar. Nas áreas científicas pelo menos, deu-se uma partição quase exclusivamente entre dois extremos: o daqueles que de uma maneira ou doutra não precisam de investigar e se instalam confortavelmente nos seus "desertos", e o daqueles que quase só se dedicam à investigação e para quem a docência significa um fardo. Isto porque, bem ou mal, está a impor-se cada vez mais o critério da produção científica (número de publicações, número de projectos de investigação, número de bolseiros), porque mais "objectivo", na avaliação dos docentes universitários. No entanto, o paralelismo legal entre as carreiras de investigação e de docência universitária devia possibilitar uma separação de critérios de avaliação profissional só que, em Portugal pelo menos, os postos de trabalho abrem quase só para docentes, forçando muitas pessoas não-motivadas para o Ensino a suportarem o "sacrifício" das aulas, e criando uma pressão sobre os que genuinamente se sentem bem a ensinar, por terem de competir com os primeiros em pé de igualdade.
As excepções apenas confirmam a regra. É debalde que se esperará uma solução global para a renovação do Ensino Superior, até porque o Estado nem deve estar interessado... no entanto, a história das nossas universidades documenta bem sucedidos processos de auto-renovação operados ao nível de departamentos ou de faculdades(2). Quanto à questão do mercado de trabalho, cada diploma enfrenta problemas que lhe são próprios; falando dos biólogos em Portugal, os principais campos de oferta são: o Ensino Básico e Secundário; a carreira técnica em hospitais, empresas, e institutos (com a qual muitos se conformam, para bem deles se calhar...); a carreira universitária ou a de investigação; a iniciativa privada; as bolsas de pós-graduação. Até no primeiro caso, para o qual houve a preocupação de constituir ramos pedagógicos/ educacionais nalgumas licenciaturas, ou a de criar licenciaturas integradas de Ensino de Biologia e Geologia, o "mercado" anda confuso: muitos professores atingem a efectividade vindos de outras áreas (nomeadamente de licenciaturas sem currículos pedagógicos), e a própria associação profissional (APB), em suspeita parcialidade, ataca as licenciaturas integradas.
Quanto às restantes opções, na prática há bastantes deficiências, mas quantos se importam realmente? Pelo contrário, tudo parece andar no melhor dos mundos: no recente Congresso Nacional de Biólogos a questão mal foi aflorada, antes se reforçando o coro das diversas instituições onde se ensina Biologia (incluindo a Universidade de Évora) que insistem em afirmar as vantagens da formação abrangente que oferecem, e que é uma falácia: em parte por não haver dinheiro nem estruturas, em parte porque os docentes são sobrecarregados, o ensino pré-graduado tende cada vez mais a ser livresco, transferindo o contacto com a Vida para um "pedestal " a que só se acede após (!) a licenciatura. Sem dúvida que é mais cómodo para todos que assim seja, mas falsificam-se as motivações e o próprio conteúdo da profissão. Além disso, persistem lacunas tremendas dentro da tal "formação abrangente", porque ou não há quem saiba ensinar as matérias (isto é, há deficiências de "escola" nas nossas faculdades), ou as condições materiais e logísticas deficientes não permitem a sua abordagem. Honra seja feita a quem conseguiu essas condições e as coloca à disposição dos alunos: são poucos casos, mas valem o seu peso em ouro!
Pergunto-me se, com as devidas adaptações às outras áreas, o generalizado estrangulamento das universidades e a sobrecarga horária dos docentes não desencadeiam também uma erosão da qualidade intrínseca das licenciaturas, adiando a verdadeira formação profissional para estádios onde o conhecimento já é muito especializado (o que também demonstra a preversidade política do sistema). E só tenderá a ficar desta maneira, sabendo-se como o Estado prefere canalizar os recursos para o sustento de um volumoso tráfico de bolseiros de pós-graduação, e porque colaboram nesse mesmo tráfico, alegre e comodamente (e também sem grande alternativa), todos os que se queixam das más condições de ensino.
As actuais bolsas de pós-graduação são fruto da nossa integração na "União" Europeia e constituem-se numa das mais duvidosas importações de que fomos vítimas estes anos: imagine-se um recém-licenciado que conheceu alguém (docente universitário ou investigador) que lhe oferece a possibilidade de trabalhar num projecto de investigação que tem entre mãos; naturalmente, o luxo da recusa não é coisa que passe pela cabeça do recém-licenciado, ainda por cima porque a oferta em questão vem em geral acompanhada da quase-certeza de ter por ordenado uma bolsa de pós-graduação que lhe dá desde logo autonomia, com o eventual bónus de ir estagiar uns meses aos países civilizados cientificamente (uma Inglaterra, uma Holanda ou uma Suécia, ou com sorte uns Estados Unidos, depende onde estão as ligações do seu contratante). Por isso a questão de ter ou não gosto pelo trabalho que irá realizar é-lhe secundária, e quanto à consciência de estar a tirar o lugar a alguém mais vocacionado para aquele trabalho em particular, estamos conversados. É frequente que os recém-licenciados não tenham motivações específicas dentro da sua profissão, como corolário do esvaziamento das consciências ("blank generation") que as universidades teriam o dever de contrariar; mas nem sequer se espera dele criatividade ou motivação por aí além: a própria concepção dos projectos de investigação "à Europeia" não permite que se tomem riscos, pelo que em geral os resultados das investigações são à partida todos previsíveis (só não o serão com muita sorte ou com muito azar); é para o recém-licenciado um trabalho de sapa, para ser executado a 24/ 7 e sem grandes reflexões.
É trágico que sejam estas as condições em que tantos mergulham de cabeça numa "carreira" de bolseiro, aliviando o Estado das suas obrigações sociais pois, nessa condição de estdante-em-prolongamento, embora trabalhem como todos os outros não existem para eles quaisquer mecanismos de Segurança Social. O bolseiro (sucessivamente de mestrado, de doutoramento, de pós-doutoramento e outra vez de pós-doutoramento) vive uma vida de mercenário: em troca de umas boas patacas, faz o trabalho duro que os sucessivos chefes pensaram (bem ou mal), tratando apenas de sobreviver de bolsa em bolsa. Está na contingência de, a meio ou ao fim de uma dessas bolsas, ter de ir à procura de emprego, e aceitar o que lhe aparecer, independentemente das habilitações e experiência que adquiriu. Nessa altura, ou tinha poupado o dinheiro que não tinha de gastar (alguns conseguem-no) e resta-lhe "estabelecer- -se" por sua conta, ou ficará servo toda a vida servo, sobretudo, porque nunca pôde dedicar-se àquilo que melhor o motivaria profissionalmente. As nossas universidades tendem a olhar de soslaio para esses "doutorados-com-bolsa", que em 3 anos despacham outros tantos artigos duma investigação sem relevância alguma para elas (mas que foi excelente capital de prestígio para outras universidades, geralmente estrangeiras), assim "passando à frente" de quem anda a aguentar com as agruras da rotina universitária, etc.. Quanto muito, utilizam, deitam fora, e "guardam" um outro no seu corpo docente ou de investigação como se de relíquia tratasse.
Importa ainda frisar que os bolseiros de pós-graduação representam capital de trabalho que mal chega a ser aproveitado, acabando por deixar as nossas universidades na mesma, tal como o Estado deseja. Formação pós-graduada para quê? As respostas mais cínicas terão direito a prémio!
Ao referir-se à «Essência do comércio (3), Fernando Pessoa notou agudamente que comércio e cultura andaram historicamente a par um do outro, desenvolvendo-se paralelamente em função da produção em que se sustentavam, respectivamente a industrial e a artística. Para Pessoa, o grau de civilização das nações traduz-se na sofisticação e irradiação das teias de comunicação que são os respectivos comércio e cultura; no caso de Portugal, basta ver-se a permeabilidade das nossas "élites" e classe média aos ditames estrangeiros, a falta de visão da universalidade nas nossas criações, ou o generalizado desrespeito pela Educação, diria mesmo aversão, para ficarmos esclarecidos.
Só que entretanto passaram 70 anos, e enquanto nós andamos mais ou menos na mesma, a "globalização" da economia veio substituir o ambiente nacionalista em que Pessoa viveu. A cultura que aí está não tem bandeira, mas domina tudo com os seus argumentos inexoráveis, espezinhando a diversidade de enraizamentos culturais, ultrapassando a lógica dos Estados. Se os Estados julgam que engolem o Ensino, pois estão quase prontos a ser engolidos por "peixos" bem maiores. Curiosamente, o Ensino não perde dimensão nesta nova perspectiva, apenas muda de inimigo; como terá de posicionar-se é uma questão fundamental: talvez que devesse proclamar o seu propósito libertador, radicalizando-se face aos sistemas emergentes, mas teria de preparar-se para ser visado por eles, que o iriam tentar neutralizar sem cerimónia(4); talvez que só tenha de esperar pelo colapso "apocalíptico" destes sistemas, mas então que herança humanizada vai conseguir perdurar entretanto?
Enquanto houver gente, haverá a possível humanidade. Resta esse consolo.
1. e, mesmo assim, lá está Portugal com um dos seus atrasos-recorde: ainda 15% de analfabetos!
2. alguns relativamente recentes como foi o caso da licenciatura em Biologia da Faculdade de Ciências de Lisboa depois do 25 de Abril.
3. Teoria e Prática do Comércio. Preceitos práticos. in "Obra em Prosa", Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro)
4. não é pura ficção: a venda de drogas nas escolas é um exemplo.