A controversa investigação em células "estaminais"

Recentemente fui convidado para integrar a mesa dum debate intitulado "Limites da Ciência - A controversa Investigação em células estaminais", que fazia parte do XIII Encontro Nacional de Estudantes de Biologia (Évora, 2009). Admirei-me com o título: limites da ciência, logo neste contexto?

Para mim, esses limites são apenas os que a nossa própria ignorância impõe, mas percebe-se desde logo que o que está aqui em causa é uma corrente social que pretende, nesta e noutras áreas, impor limites à investigação científica em matérias que ameacem a dignidade humana -- sem o saberem, os cientistas que estudam células "estaminais"1 obtidas de embriões humanos seriam comparáveis aos médicos no regime nazi, que usavam prisioneiros como se fossem animais de laboratório.

Trata-se de embriões que não são produzidos para fazer-se investigação científica: no processo de fertilização em laboratório, utilizado para resolver problemas de fertilidade (em tempos usava-se o termo "bebé-proveta" para os indivíduos que se geravam por este processo, mas eram outros tempos, de facto), produzem-se vários embriões, porque está longe de ser 100% eficaz. Uma vez conseguida a implantação de um e a gravidez ter sucesso, os restantes passam ao estatuto de "supranumerários" e deverão ser eliminados (embora não o sejam de imediato, pela polémica que envolve). Os cientistas reivindicam a sua utilização para o progresso do conhecimento científico que pode ser conquistado com o estudo destes embriões, que não pode ser conseguido noutros sistemas experimentais. Este conflito reflecte-se em textos legais como a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais (Nice, 2000), que proclama a liberdade académica e da investigação científica (artº 13º) enquanto na observância da dignidade do ser humano (artº 1º). Por isso importa analisar até que ponto essa dignidade é posta em causa pela utilização dos embriões supranumerários.

Relembremos a célebre ovelha Dolly. Ela foi o fruto da investigação sobre um aspecto muito importante da constituição dos organismos: o potencial regenerador que existe praticamente em todos os tecidos e órgãos do corpo adulto, necessário para a reparação de lesões, para a compensação do desgaste, para a substituição de elementos que funcionam mal, para todos os tipos de crescimento. Dolly demonstrou a possibilidade de explorar esse potencial, ao ponto de recuperarem-se todas as virtualidades do desenvolvimento que se encontram no ovo, aquilo que se designa tecnicamente de totipotência. Por outras palavras, a partir de células "estaminais" duma ovelha, obtiveram uma réplica do ovo donde ela mesma se desenvolvera. Como demonstração, foi um grande feito científico, apenas por uma razão -- através de Dolly podiam aprender-se muitas coisas. Apenas aprender, que é aquilo a que os cientistas dedicam as suas vidas.

O conhecimento científico é património universal. É a luz do conhecimento que ilumina o uso da razão no modo como agimos sobre a natureza e as suas leis. Pelo contrário, é com o alimento da ignorância que se sustenta a irracionalidade nessa actuação e muitos males que se sofrem por causa disso. E foi por isso que me chocou ouvir naquele debate invocar-se o espantalho duma "ruptura antropológica" a que nos arriscamos com este conhecimento e a sua utilização; uma ruptura antropológica, entenda-se, é uma revolução na maneira de perceber a nossa espécie, variavelmente definida segundo os contextos, de resto nem sempre com uma conotação negativa (a invenção da roda trouxe uma ruptura antropológica). Mas um termo assim, como foi usado neste debate, parece visar um reforço do medo do conhecimento. Mas é apenas um espantalho, e como tal devemos saber ignorá-lo. Racionalmente.

O artigo dum psicanalista francês2 estrutura os valores deste debate sob o ponto de vista da "intenção" com que se usam células "estaminais":

  1. uma intenção terapêutica, quando se trate de usar o seu poder regenerador para assistir na reconstituição de estruturas perdidas (um dos exemplos mais notáveis é o tratamento de indivíduos com queimaduras extensas, aplicando-lhes epiderme produzida a partir de células "estaminais" autólogas);
  2. uma intenção oportunista, no sentido em que se aproveitam células "estaminais" embrionárias (ou adultas, como no caso da ovelha Dolly) para a procriação;
  3. uma intenção eugénica, em que o seu potencial é aplicado em larga escala, seja para a produção de clones (isto é, séries de indivíduos idênticos entre si) "desenhados" ou seleccionados para certo fim, seja para a produção de embriões apenas como dadores de órgãos (uma versão desta última possibilidade foi mais ou menos bem explorada no filme "A Ilha", embora com muita fantasia à mistura).

Não é difícil perceber que, destas, só a intenção terapêutica é defensável dentro da nossa ética3, e como no exemplo da epiderme até pode nem ser preciso recorrer a embriões para obter células "estaminais", aliás um recurso proibitivo à escala da aplicação clínica.

Mas a questão dos embriões supranumerários, cuja razão de ser termina com o sucesso da reprodução a partir de um dos irmãos, é uma batata quente para todos. A alternativa a serem estudados é a de serem eliminados. Para quem pretende impedir o seu estudo com o facto de estar-se a experimentar em seres humanos -- que já em embrião talvez tenham sentimentos (e logo se imagina um coração que bate, bem acelerado), talvez uma consciência individual, talvez um direito civil? -- aqui vão umas verdades:

A verdade, finalmente, é que se está tentar negar um direito a aprender, recorrendo a uma argumentação ética contraditória e confusa, e erros de apreciação do foro da Biologia. E mesmo quando as terapêuticas evoluírem para o recurso apenas a células "estaminais" adultas, ainda haverá muito que aprender com embriões supranumerários.

Dito isto, não fiquem dúvidas de que o desenvolvimento tecnológico, fruto do que se aprende com o método científico, também abre oportunidades de negócio que têm de ser regulamentadas e vigiadas. Mas impor limites ao estudo científico com o argumento da "ruptura antropológica" é como impedir que se tentasse dominar o fogo há milhares de anos atrás, com o argumento de que daria azo a fogos-postos no futuro. É de certeza mais produtivo aprendermos, de par com os avanços no conhecimento científico, a conceber a sua utilização apenas para o bem comum. Aprendamos, pois.

Paulo de Oliveira

Notas

1 Estaminal quer dizer "relativo aos estames", e por sua vez estame quer dizer órgão reprodutor masculino das flores das espermatófitas, radicando no latim stamìne-, que quer dizer fio. Nada disto tem a ver com o significado atribuído ao conceito que é internacionalmente conhecido como stem cells, e o seu uso em Portugal tem sido repetidamente criticado em diversos quadrantes científicos. Para fazer justiça ao significado biológico destas células, mas tendo em conta a ampla divulgação que têm nos órgãos de comunicação social, a tradução literal para células-tronco, comum no Brasil, também traz problemas de inteligibilidade pois relaciona-se com uma imagem abstracta do processo de diferenciação e especialização celulares, que "entronca" em células pluripotentes e se ramifica em células progressivamente unipotentes. O mesmo problema de inteligibilidade põe-se com o termo células-mãe, que para além disso é confuso. A solução para este impasse é bastante simples, embora não seja ainda consensual: células germinais, ou células geradoras.

2 http://www.1000questions.net/pt/chroniq/Clonagem.html

3 A Comissão Europeia emitiu em 2003 alguns documentos orientadores que continuam a formar o referencial das decisões a nível comunitário sobre o apoio à investigação (http://ec.europa.eu/research/index.cfm?pg=search, referências 2003/0151 (CNS) e SEC(2003) 441), vedando esse apoio à clonagem reprodutiva ("Dolly" humanos), à modificação genética, e à produção de embriões apenas para investigação ou para obtenção de células "estaminais", embora admita o recurso a embriões supranumerários ou células em cultura obtidos antes de 2003. Por sua vez, os apoios a nível nacional podem variar: Dinamarca, Espanha, Finlândia, França, Grécia e Holanda permitem essa utilização de embriões, desde que sejam supranumerários de reprodução medicamente assistida — mas reconheça-se que pode resultar daqui a tentação de "superproduzir" embriões supranumerários, manipulando a ovulação, o que tem de ser muito bem vigiado.