_Crónicas

 

Maria Alice Vila Fabião

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O tempo e as palavras

Esta difícil coisa que é ser mulher

Eles caminham ao lado dos poemas / a noite cava-lhes os rostos / eles caminham sob o olhar dos poemas / eles escutam o caminho / que leva ao instante exacto / em que poderão rever-se nas palavras
Marlena Braester*, Eles caminham sob o olhar dos poemas, in: La voix, elle, Ed. Caractères, Paris, 1993
Trad. do francês: MAVF

Sub-repticiamente, a rotina instala-se, esbate os contornos das coisas, suaviza arestas, arredonda ângulos, torna tudo igual a tudo. Os dias sucedem-se uns aos outros: trabalho e sol; trabalho e névoa; trabalho e sol… Até a alternância se torna rotineira. No calendário, apenas as cruzes vermelhas que assinalam os prazos a cumprir trazem sobressaltos ao liso fluir do tempo.
De súbito, o pânico rubro da página em branco incendeia a imaginação, traz febre ao ritmo do pulso cansado. Uma vez mais, em vão procuro as palavras exactas que jamais existiram; em vão procuro o poema perfeito que ainda jamais alguém escreveu. Ulos, eles, as palavras e o poema de que hoje preciso?
Mais uma vez, é Dia Internacional da Mulher, “dia de rosas para as senhoras”, dizem-me, com um sorriso da parte da Edilidade. Inclusive para mim, que há 149 anos não estive lá; que não fui uma das 129 operárias queimadas vivas por patrões e polícias, por reivindicarem direitos dos homens, sendo mulheres; que jamais pelo meu trabalho recebi remuneração inferior à de um homem por ser mulher; que jamais deixei de ter direito ao trabalho por ser mulher; que jamais precisei de desejar ser homem por ter razões para ter medo de ser mulher; que jamais fui mutilada sexualmente, violada, espancada, vendida, ou mesmo rejeitada ou morta ao nascer por ser mulher; que jamais fui propriedade de quem quer que fosse por ser mulher; que jamais fui silenciada por quem quer que fosse por ser mulher; que jamais fui insultada ou humilhada por ser mulher. Ou…fui? Ou sou?
Claro que fui! Claro que sou! Se não como pessoa, pelo menos como mulher, como membro do “mulherio”, da “mulherada”, da “capoeira”. (Qual será o colectivo, correspondente, de “homem”?)
É comum fazer-se notar o paralelismo existente em todas as línguas entre as diversas formas de opressão: homem/mulher; classes dominantes/classes dominadas; maiorias/minorias. Na maior parte das culturas mundiais, o homem assume-se naturalmente como classe dominante, como maioria, como senhor da palavra, por oposição à mulher, geralmente reconhecida como classe dominada e minoria forçada ao silêncio. “Não permito que a mulher ensine ou domine o homem; ela que se mantenha, portanto, em silêncio”, dizia o santo S. Paulo na sua Primeira Epístola a Timóteo. Esta atitude reproduz-se na língua, espécie de espelho cultural onde se reflectem os preconceitos e estereótipos próprios de cada época e de cada sociedade, e em que a imagem da mulher está, historicamente, longe de ser lisonjeira. A palavra, como acto de vontade e inteligência dentro do produto social que é a língua, torna-se arma de agressão de que usa e abusa o opressor. “Aquele que deixar um só dia de injuriar as mulheres é um pobre homem que merece o nome de parvo”, escrevia o grego Eurípedes, lá pelos anos 400 aC..
O aviltamento da mulher é omnipresente em todas as línguas, a todos os níveis e em todos os registos. Na linguagem vulgar de certos estratos sociais, a mulher é frequentemente reduzida, no acto da fala, ao seu órgão sexual, e por ele designada; ela não é a companheira numa relação a dois, mas apenas um produto de consumo, algo que se “come”.
Neste universo de predomínio masculino, o homem institui-se medida de todas as coisas. “Por mais aviltado que um homem possa estar, é imensamente superior à mais superior das mulheres, pelo que é impossível qualquer comparação entre os dois”, escreve em 1903 o vienense Otto Weininger (1880-1903), na sua obra Sexo e Carácter, ainda considerada “uma das poucas obras-primas dos tempos modernos”!
Não precisa de perguntar: É claro que não sou feminista! Salvo melhor opinião, só tem necessidade de o ser quem tenha qualquer respeito pelos machistas. Coisa que não tenho. Como linguista, só na palavra, que aviltam, sinto, humilhante, a sua presença. Como mulher e ser humano – e porque tudo quanto é humano me diz respeito - , pergunto-me se não terá razão quem suspira: Como tudo seria mais fácil, se Deus fosse mulher!

* Poetisa, linguista e tradutora israelita nascida na Roménia.


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