O poder da farda

Quando se vai ao cinema para ver mais um filme de Hollywood não se está propriamente à espera de deparar com espectáculos de implicações políticas. Lá está, não é de todo infrequente que apareçam imagens dentro da tradição anglo-saxónica de auto-pseudo-crítica social, mas vendo bem, o mostrar-se ao grande público o que nas sociedades é errado, mau, ou feio, quando feito abertamente, é uma maneira de habituar as gentes à ideia, neutralizando o efeito de surpresa e a possibilidade de escândalo - serve para educar o conformismo e a passividade.

O que importa aqui, e isto a propósito do filme O Negociador que passou em Dezembro passado, é aquilo que nos é mostrado implicitamente, que não pretende ser entendido (mas deveria sê- -lo) por toda a gente que vai ao cinema. Nos anos mais recentes tem-se intensificado em mim a sensação que grande número de artistas em Hollywood, sobretudo realizadores e argumentistas, procuram compatibilizar a necessidade de produzirem filmes rentáveis, conformes ao cruel regime de competição em que vivem, com a necessidade de exprimirem as sensibilidades e preocupações nas suas consciências. Para que isso seja possível contam com uma sofisticada máquina de produção e com actores e actrizes de grande capacidade, mas sobra-lhes uma coisa: terem de confiar na comunhão dos espectadores.

N'O Negociador o enredo centra-se num desvio de fundos que um pequeno número de polícias levou a cabo, sem se esquecerem de arranjar um bode expiatório. Esses fundos provinham de uma poupança colectiva da corporação, assunto muito delicado para todos os seus membros e que veio contribuir para que todos os polícias se unissem contra esse bode expiatório. Este por seu lado, também polícia, passa quase todo o filme encurralado pelos seus a tentar descobrir quem o andou a tramar; passado muito fogo-de-artifício (e golpes de teatro não menos espectaculares), os verdadeiros criminosos são desmascarados e o herói safa-se, mandando-se o público para casa com uma boa dose de emoções no papo e vagamente capaz de dizer que é um filme sobre corrupção(1).

Mas, vendo o filme sob o ângulo das fardas, o que temos? Elas representam um serviço pago por todos; elas são vestidas por indivíduos treinados para proteger o cidadão, às vezes até de si próprio (como na sequência que serve de aperitivo ao filme); mas elas são o uniforme de uma corporação, que como todas se serve a si própria, uma corporação que neste caso é dependente de um Estado que a financia e equipa com o dinheiro público. Ele há fardas de gala como no enterro dum polícia, mas também as fardas operacionais, há até paisanos com pistola e crachá no bolso a servir-lhes de farda - não importam as metamorfoses. Tirem a farda ao polícia, e ele já não é polícia. A partir daí já podem dar-lhe caça: várias vezes os polícias fardados atacaram, mesmo contra ordens, e se conseguissem o que no fim de contas teria sido uma execução sumária, logo haveria uma justificação bem-pensante pronta a sair. Tudo isto aparece neste filme, ao mesmo tempo que se exibem à exaustão os meios sofisticados "à la carte" que estão ao dispor dos agentes fardados - comunicações, armas de precisão ou de destruição em massa, transportes.

Outra mensagem óbvia é que o herói teve tempo para descobrir a verdade - e até conseguir alguns aliados para lá chegar - mas teve-o porque era um osso duro de roer, e ainda por cima estava habilitado a prever os movimentos dos polícias que o cercavam. Já menos óbvia, mas mais importante para o que estamos aqui a tratar, era a razão que o levou a meter-se numa situação de extremo desespero. O facto de ele ser um (ex-)polícia também aqui conta muito, pois permitiu-lhe intuir, na encruzilhada do filme, o que é que o esperaria se aceitasse entrar em acordos de advogados no julgamento que se preparava: seria sentenciado, materializando-se nele "para além de qualquer dúvida razoável", aos olhos da corporação, o estigma de traidor; depois, ficando sob a alçada da polícia, esperava-o a prazo uma "morte misteriosa" ou semelhante, tudo isto por algo que não fizera! Por isso o que ele fez foi não ficar à espera duma morte a prazo e, na pior das hipóteses, morrer a tentar ilibar-se. O estar-se por dentro das situações tem destas coisas...

O enredo de primeiro plano pode ou não ser realista, mas o que está implícito nos pormenores que se desenrolam perante todos é que é, a meu ver, de um acutilante realismo, e daí o interesse que lhe vejo. Interessa-me porque eu sou dos tais cidadãos a quem um dia pode cair em má sorte ter de lidar com uma corporação (policial ou outra) constituída para o nosso bem mas que para tal se serve de meios destrutivos, portanto de resultados irreversíveis, a coberto de uma farda que obviamente eu próprio não uso. Interessa-me porque "a segurança dos cidadãos" serve de desculpa, no Portugal de hoje, para repressões a toda a escala, desde as piedosas, como foi a proibição de crianças abaixo dos (salvo erro) 10 anos de presenciarem a final do Campeonato da Europa de Hóquei em Patins, às revoltantes, como aquilo que se sabe ter acontecido em Rio Maior na manifestação dos suinicultores.

O Negociador mostra que, na altura julgada devida pelas forças de segurança (segurança de quem?), saltam cá para fora equipamentos, fardas e indivíduos de extrema violência e cuja acção, sob os mais diversos pretextos, faz tábua rasa de toda a racionalidade assim como dos direitos de todos a um tratamento de justiça. Como era um filme de Hollywood, sempre pudemos ver no final a perplexidade dum polícia, que se tinha revelado especialmente zeloso durante o cerco, perante a extensão da injustiça que estivera para ser cometida (no que ele teria tido por certo uma participação preponderante), mas... fora dos filmes e de Hollywood como é? Como é que o Orçamento de Estado tem sido aplicado na minha segurança? Que legitimidade existe para acumularem arsenais e desenvolverem atitudes a condizer, sem que isso seja exposto?

Paulo de Oliveira
1. Corrupção que, tanto quanto se mostra no filme, não existiu -- ninguém comprou ninguém -- mas é sintomático que estejam a habituar a malta à ideia que existe sim senhor, nas polícias, nos governos, em todo o lado (e em todos os tempos, não é de agora). Quer dizer, não há lugar no mundo livre de corrupção, portanto é conformarem-se com isso e deixarem o marfim correr.