Propaganda e contra-propaganda

Tudo a mesma tanga

O que se passa com as denúncias sobre os organismos transgénicos (ou, como actualmente ficou convencionado designar-se, os organismos geneticamente modificados, GMOs), obriga-me a reflectir sobre as guerras de propaganda de hoje e de sempre. Propaganda é sempre algo que realça e esconde ao mesmo tempo, que encolhe umas coisas para poder esticar outras. A verdade, a existir, não reside necessariamente no ponto intermédio entre as supostas verdades de propagandas contraditórias. E, se por um lado podem ser conjunturalmente úteis, as acções de propaganda são falso apoio à reflexão crítica por parte do público e por isso abrem terreno a uma manipulação recorrente... e sempre em nome dos melhores princípios.

Na perspectiva ecológica, desde que se iniciou a agricultura que a presença humana tem sido uma agressão contínua à natureza. A acção das sociedades civilizadas, que (muito biologicamente) procuram continuamente crescer e expandir-se, rouba o espaço à natureza para que esta lhes dê lugar e a tudo o que elas protegem, a saber, as plantas cultivadas e o gado. Pode argumentar-se que isso foi praticado dentro de proporções modestas ao longo dos séculos, pelo que essa presença não entrou necessariamente em rotura com a natureza, apenas redefinindo paulatinamente os limites para a predominância que as sociedades foram tratando de conquistar; mas é importante assentar na ideia de uma já longa pressão invasora por parte do homem e das paisagens por ele criadas para a exploração da terra.

O que o século XX trouxe de novo neste processo de ocupação sistemática foi uma aceleração vertiginosa, em tais proporções que o perigo de destruição em larga escala tornou-se patente. A diferença em relação ao passado está nos meios de que as sociedades passaram a dispor para levarem isso a cabo -- a racionalização científica dos processos de produção. Como marcos deste processo acelerado contam-se as plantas híbridas, a selecção de novas raças e variedades para além do imaginável, auxiliada pela mutagénese, a propagação vegetativa (parques clonais) e, fora da manipulação genética, a "fertilização" do solo com adubos inorgânicos, os regimes de rega, as estufas, as rações com hormonas, as farinhas de carne que enlouquecem vacas, etc.. Um conjunto assombroso de progressos que é uma vitória do racionalismo científico e um permanente desafio para a transposição de mais limites.

Mas é uma vitória de sabor amargo, pois a exploração da terra vai assumindo proporções de catástrofe ecológica, seja com os ecossistemas agrícolas extremamente depauperados, ou os ecossistemas naturais confinados em áreas estreitíssimas, todos fragilizados. Infelizmente, a nossa relação com a natureza vai-se perdendo ao ponto de muitos, especialmente os mais novos, já não saberem apreciar a extensão do problema: já hoje convivemos com um futuro de alimentação triturada para além do reconhecível -- hamburgers, filetes congelados, bolachas integrais, fruta em sumo natural a 100%, gelados de frutos silvestres...

O princípio tecnológico dos GMOs é o seguinte: se os genes determinam as características, então criando uma nova variedade com um gene adequado, introduzido por métodos laboratoriais, pode resolver-se um problema para o qual não se conheciam soluções por métodos convencionais. Na essência, a obtenção de um GMO não difere dum processo aplicado cientificamente há várias décadas, chamado introgressão, excepto que este se baseia em cruzamentos controlados e selecção artificial; o resultado na prática é de facto o mesmo: obtém-se uma variedade igual à que se usou à partida para modificar, com a diferença de "ter uma coisa a mais". Porém, como o método de obtê-la é no caso dos GMOs "mais limpo", teoricamente mais rápido, potencialmente aplicável a um maior número de espécies e até sem necessitar de recorrer aos genes da espécie a ser melhorada, e ainda porque se realiza essencialmente em laboratório, com os GMOs surgem enormes potencialidades para a criação de novas variedades. Não sendo forçosamente bem-sucedidos, como certa propaganda gostaria que fosse (a relação gene-característica é muitas vezes demasiado complexa e não leva aos resultados que se espera, como exemplifica o abandono nos planos de obter gado com mais carne, através dum suplemento hormonal produzido por um transgene, pois obtinham-se animais obesos em vez disso), também não são necessariamente perniciosos, ao contrário do que a outra propaganda quer fazer crer.

A preocupação principal sobre os GMOs deveria incidir sobre o propósito para que são criados, e também para o seu design. Os GMOs que já apareceram vêm quase todos na continuação da lógica de avanço alucinado (mas sempre racional, ah!, como a razão de cada um é tão limitada...) da "agricultura científica" -- uma forma intensiva e anti-ecológica de agricultura que é concebida, assim diz a propaganda, "para alimentar o mundo"... mas a comida continua a faltar para muitos, isto é, o objectivo proposto não é nunca atingido, só que entretanto criaram-se problemas que não existiam: contaminação dos lençóis freáticos (que são o que alimenta os cursos de água terrestres) com adubos inorgânicos; propagação de pragas a velocidades e em extensões impossíveis de neutralizar; contaminação do meio ambiente com insecticidas, herbicidas e outros naturicidas; substituição da paisagem natural por desertos agricolamente cultivados; erosão ou salinização do solo; incremento da incidência de patologias multifactoriais no consumidor; etc., um longo rol. A propaganda que lhe é afim proclama então GMOs para resolver ou pelo menos reduzir cada um desses problemas... claro, cada um a seu tempo, de acordo com as "prioridades" dos que detêm a tecnologia e o dinheiro para investir, enquanto os consumidores esperam padecendo dos males que ainda não se sabe ou não se quer resolver. Os GMOs são, em minha opinião, apenas uma pequena parcela de todo este panorama de destruição: estar a atacar a sua criação sem atacar aquilo em que se inserem é passar ao lado do problema essencial. Mesmo que em nome da propaganda, é pior a emenda...

Quando esta "revolução verde" alastrou pelo mundo industrializado, nos anos 50-70, ninguém falava dos problemas que se verificou depois trazer consigo, mas admita-se que quase ninguém estava em condições de antevê-los com precisão. Até hoje, porém, ainda há pouco quem esteja consciente deles e os traga a público: há por um lado os que reagem propondo alternativas radicais como a agricultura biológica e são (por enquanto) marginalizados; por outro, há-os que justificam os GMOs que aparecem com uma bem doseada "revelação" desses problemas. Enquanto falta aos primeiros o suporte científico suficiente para conciliarem os seus ideais com níveis de eficiência e previsibilidade a que a economia em que vivemos se habituou, aos segundos falta por completo uma medida das consequências que os GMOs poderiam ter. Exemplos como as batatas que envenenam ratinhos ou a morte laboratorial de borboletas não são provavelmente demonstrativos dos reais perigos para o futuro, mas também tenho de duvidar das afirmações de inocuidade que são feitas numa de "fé em Deus", e pelas formidáveis pressões dos que querem pôr esses GMOs cá fora. Dum lado e do outro, e por ausência de dados sólidos, atura-se a propaganda falaciosa (um pleonasmo, as minhas desculpas). Ninguém sabe o suficiente sobre o que irá/iria dar o cultivo dos GMOs, por mais imaginação que se tenha, daí que seja bem-vinda a moratória da União Europeia, mesmo que tardia, envergonhada e baseada em argumentos duvidosos. A qual, e não se perca isso de vista, terá de ser temporária, pois com as incessantes pressões sobre os "pobres políticos", e providenciando-se uma sempre possível e atempada "distracção" dos órgãos de comunicação social, essa moratória acabará por ser revogada. E será insuficiente enquanto durar, pois com a globalização da economia o "santuário" europeu mostrar-se-á ecologicamente inoperante: ao fim de algum tempo já ninguém vai olhar para o rótulo para ver se o produto que está na prateleira tem ou não derivados de GMOs, vai sim olhar para o preço, para a publicidade, para o "bom nome" (entenda-se lá o que se quiser sobre o significado disso...).

Tudo o que antecedeu a introdução dos GMOs foi sempre regido por uma lógica de industrialização do uso da terra, com a mecanização do trabalho, a padronização dos materiais (ao nível das sementes, nomeadamente), a algorítmica optimização de todos os processos. Os GMOs pretendem trazer novas perspectivas na componente do melhoramento genético, que tem sido fundamental em toda essa lógica. Não há praticamente nada na nossa mesa de refeição que não tenha sido objecto de algum melhoramento científico: cereais, carne, hortaliça, legumes, frutas, videiras, que já vinham sendo aperfeiçoados empiricamente por centenas de gerações, desde o início da agricultura, foram submetidos no século XX a processos, baseados na ciência genética, que aceleraram a diversificação de variedades. Mas que variedades? As da "revolução verde", exclusivamente. Os aumentos de produção por hectare basearam-se, por exemplo, na selecção de variedades cada vez melhores na resposta ao adubo inorgânico (aquilo a que alguém já chamou a "dependência química" das plantas cultivadas). O mesmo se pode apontar na relação entre diversas raças de animais de criação e as rações que lhes são ministradas. A agricultura da "revolução verde" é pois uma solução integrada, mas por ser destrutiva é perigosa, e por ser capitalista deve ser contrabalançada.

Contudo, o conceito de GMOs é tecnologicamente defensável. Primeiro, porque se sabe como evitar a sua propagação, se isso for recomendável, uma vez libertados dos laboratórios (só não foi feito isso nos já existentes porque não se esteve para tal, e essa é uma prova muito grave da displicência e desdém a vários níveis com que esta indústria resolveu prepará-los para o mercado); segundo, porque eles podem ser muito úteis também para uma alternativa agrícola ecologicamente defensável. Da mesma maneira que o melhoramento genético convencional (por cruzamentos e selecção) vem sendo aplicado naquilo que se chama a conservação "in situ" de recursos genéticos, também se podem desenhar GMOs segundo necessidades totalmente alheias aos interesses da agricultura industrializada. Por outras palavras, o erro dos GMOs não está na sua existência, mas no uso que se pretende deles, e que orienta a sua criação. Diz certa propaganda que o milho-Bt, com a sua toxina de origem bacteriana introduzida, permite reduzir os pesticidas utilizados nas culturas, com as vantagens que isso traz de redução de despesas (a sério?) e de poluição (mas não evita a poluição pelos herbicidas e pelos adubos inorgânicos). Mas este milho com a sua toxina não é mais que uma outra maneira de meter um pesticida na produção, e se "eles" juram que essa toxina é totalmente inócua para o ser humano, não apresentam provas disso. Mas até acreditando na inocuidade, e concordando que o gene bacteriano, uma vez no nosso sistema digestivo, é DNA como qualquer outro que se integra na nossa nutrição e ponto final (opinião que apoio), ainda e sobretudo cabe perguntar: para quê uma variedade que vai, à maneira do que aconteceu com muitos antibióticos, promover a própria obsolescência, que sobrevirá logo que os insectos visados desenvolvam resistências à toxina que a impregna? Para ser necessário investir ainda mais na criação de sucessivas "implementações" de milho pesticida, onde a parada na guerra química dos campos cultivados vai subindo a cada nova "solução", investimento que inclui não só descobrir cada novo veneno como demonstrar através de sucessivas fases de avaliação, ainda por definir, que é inócuo -- com debates, manifestações, propaganda e contra-propaganda, enfim, um desperdício (capitalista) de recursos materiais e energias sociais?

Há soluções alternativas, como por exemplo o controlo biológico de pragas, que se servem do conhecimento da ecologia de diversas espécies animais e vegetais para protegerem e mesmo aumentarem o aproveitamento das colheitas, enquanto permitem despoluir os campos e recuperar os solos. Em comparação, quase nada se investe para analisar cientificamente e aperfeiçoar estas soluções, mas não admira, pois quem detém o dinheiro, como diz muito bem o artigo de J.-P. Toubin [1], é quem pretende concentrar o controlo de tudo: das sementes, dos adubos, dos pesticidas, eventualmente das máquinas de que tudo isso depende e até dos seres humanos que ficam agarrados a elas.

O laboratório de Ingo Potrykus, em Zurique, produziu recentemente novas variedades de arroz transgénico, nas quais inseriram os genes necessários a que a semente acumule quantidades apreciáveis de caroteno beta [2]. Para quê? Para que milhões de pessoas cuja base alimentar é o arroz possam estar menos sujeitas à deficiência em vitamina A, que é uma causa nutricional de perda de visão em inúmeras crianças. E isto é tanto mais credível conquanto esse "arroz dourado" é fornecido grátis aos melhoradores e organizações que se comprometam a adaptá-lo às condições em que vai ser cultivado, por cruzamento com variedades locais e selecção. Seria bom que este exemplo de "bom-GMO", feito com uma visão responsável para com os consumidores, mas infelizmente ainda pouco frequente, se multiplique numa série de outros casos que tornem os "maus-GMOs" ainda mais inaceitáveis aos olhos do público.

Paulo de Oliveira

Notas

1 ­ A Batalha, número 181, Maio-Junho de 2000.

2 ­ Artigo publicado na revista Science, volume 287, págs. 303–305, 2000. Na Internet, ver algumas declarações de Potrykus na reportagem www.populist.com/99.9.downs.genefixers.html, um artigo de 2004 sobre o projecto em web.ethlife.ethz.ch/e/articles/sciencelife/golrice.html, os projectos da equipa em www.goldenrice.org, e o desapontamento que Potrykus expressa em 2007 com a nula implementação do seu programa nos campos em www.ethlife.ethz.ch/archive_articles/070719-goldenrice/index_EN.