Confesso que só me lembro de ouvir falar desse conceito, o de se ter um perfil profissional ou o dar-se uma formação "generalista", desde que vim para a Universidade de Évora há dois anos. A insistência com que é usado aqui na casa, especialmente porque lhe parece estar associado um valor positivo, uma meta a atingir, não me parece justificada. O conceito é mesmo de certa maneira perigoso.
Depreendo que o generalista se define por antítese ao especialista. Então está em causa também o problema da especialização. Estes dois conceitos, e a respectiva síntese, formam um triângulo dialético no qual cada indivíduo, pela formação que recebeu, pelos estímulos que teve, pelas exigências da sua actividade (e também pelas suas inclinações), se irá progressivamente situando. O ideal, como em todas as dialéticas, é optimizar-se uma síntese dos dois princípios, ou seja, fazer com que uma grande abertura de horizontes, generalista, seja inter-fecunda com um conhecimento especializado, por definição aprofundado.
Mas todos sabemos como o ideal está longe de se atingir em geral, e também como as dialéticas não passam de reduções da realidade. A pessoa é muito mais do que os conteúdos de aprendizagem que lhe são ministrados, e isto é muito importante no contexto da preparação que se propicia aos alunos que integram a Comunidade Universitária de Évora, no sentido de enfrentarem os seus futuros exercícios nas profissões que vão seguir. Sem dúvida que uma licenciatura não deve pretender condicionar os que a frequentam para uma especialização precoce; a meu ver, uma licenciatura tem de permitir tudo dentro da via profissional respectiva, inclusive a tal especialização precoce, para quem a deseje. Por isso não concordo que se objective como "generalista" um perfil-tipo dos licenciados saídos da Universidade de Évora, sejam eles biólogos, engenheiros de recursos geológicos, músicos, etc.. É uma questão que não tem cabimento, a bem dizer.
Outra coisa que está longe do que seria ideal é o consenso sobre uma formação generalista. Classifico o termo de perigoso já que, pela inércia, o conceito generalista pode vir a confundir-se com superficialidade, o que redundaria num esvaziamento do conteúdo das licenciaturas.
O aprofundamento das matérias "levanta uma poeira" muito complicada! Primeiro porque, ao conceber-se a formação dos alunos como tão "abrangente" quanto possível, se julga necessário limitar o seu aprofundamento. Aqui joga- -se com outra dialética: entre o mero "chamar da atenção" para muitas coisas, apenas as aflorando, e a necessidade de estudar no sentido próprio do termo, que é embrenhar-se nas complexidades e subtilezas específicas de cada domínio e vencê-las. Para mim tem sido um desafio muito importante tentar estabelecer uma síntese adequada entre estas duas necessidades, considerando as inúmeras limitações a que se está sujeito, e os moldes pouco flexíveis de funcionamento da casa; e devo aos meus alunos o fornecimento mais ou menos activo das pistas, do diálogo, e de alguma esperança. É um processo que se tem valido de alguma humildade de parte a parte, e ao menos tenho sentido alguns progressos dentro do muito que há para melhorar, em mim, neles, na casa.
Depois, há a dificuldade acrescida em tentar transmitir o chamado "gozo criador", em turmas de alunos que, desde o 10º ano de escolaridade pelo menos, só jogavam pelo seguro para sobreviverem e por isso adiaram a real aprendizagem (questão central dos "problemas de base" que todos constatamos na sua formação); a fantasia é um ingrediente fundamental para o desenvolvimento da criatividade, mas a enorme maioria dos alunos parece não reconhecer o lugar que ela devia ter na sua formação universitária.
Imaginam um engenheiro, um arquitecto, um economista, ou um médico, perante algo que lhe compete resolver e não ter uma solução pronta, nem ser capaz de encontrá-la? Morde o lábio, tem arrepios na espinha e suores frios, porque se essa solução não surgir todos vão perceber que algo está a correr mal e os olhares hão-de virar-se para ele na altura das perguntas incómodas; porque, sobretudo, os prejuízos humanos ou materiais poderão ser irreparáveis esse profissional tem uma responsabilidade (que, diga-se de passagem, constitui a parte mais importante do seu vencimento) de enfrentar essas ocasiões de apuro que requerem dele (ou dela, claro) fazer uso da sua criatividade. É aliás comum ver-se nos melhores profissionais uma atitude inventiva permanente; torna-se-lhes um hábito que entronca na sua experiência profissional, na sua predisposição natural e... na sua formação. Quanto mais se adia a facultação de tudo aquilo que não está nos livros (nem pode estar, porque não há receitas, apenas desafios), mais se agrava a rigidez intelectual dos alunos, pois a idade não perdoa e os anos da universidade (do primeiro ao último) são o tempo-chave da chave de toda a aprendizagem: aprender a aprender.
Não é com "ideias gerais", ou simples "chamadas de atenção", que a Universidade cumpre a sua parte na preparação dos futuros profissionais. Por mínima que seja, a exigência de aprofundamento em cada disciplina produz nos alunos os mais duradouros efeitos, que irão transcender o conteúdo imediato dos desafios colocados. Não há aprendizagem sem haver crise, e dentro da crise está a sua própria solução com ela, uma evolução dentro da pessoa. Porém muitos alunos, habituados (a culpa não é deles forçosamente) a confundir estudo com "empinanço", e a confundir discurso com "palha", não enfrentam os desafios, torneiam-nos mesmo, e às vezes com que sacrifício... acredito que muitos vejam em tais desafios exercícios de perfídia ou de sadismo da parte dos docentes (o que é outra confusão: sádicas são as Provas Específicas a nível nacional), mas quanto há nisso de descrença ou mesmo de desconhecimento da essência da aprendizagem?
Precisamos de bons profissionais, e é na Universidade que eles começam a sê-lo. É esse o maior proveito para os docentes, podem crer. E nada melhor do que um estreitamento da cooperação entre alunos e docentes para que se alcancem progressos visíveis.
Paulo de Oliveira
Departamentode Biologia