Globalizar é sobretudo reduzir as atribuições dos Estados. E isso é uma revolução bem mais profunda do que a de 1789: esta pode ter retirado a legitimidade às casas reais em nome do povo, mas veio logo a definição de identidades nacionais para legitimar a manutenção da funcionalidade do Estado: fronteiras com alfândegas, moedas e leis mais ou menos características, altos e baixos mais ou menos próprios, élites e cobrança de impostos mais ou menos centralizado(ra)s, segredo de Estado, sistemas de comunicação, segurança e diplomacia, relações bilaterais mais ou menos privilegiadas, etc.. Embora dito com algum simplismo, em 1789 passou-se da História dinástica à História dos colectivos sem ter de rescrever-se nada de especial, apenas enfatizando isto ou aquilo segundo as conveniências. A maior parte das dinastias que ainda se mantêm sobrevivem apenas em prateleiras de simbolismo - a mais famosa delas até se considera, com despudor assinalável, uma "firma".
A Nova História, aquela que está a escrever-se já nos dias de hoje com o processo de globalização, aproxima-se cada vez mais do fim da Política para fixar-se apenas na Economia. Os protagonistas já não são os Estados (nem mesmo o do tio Sam, como mostra tão bem o poderoso tio Gates), mas empresas com orçamentos de dimensão estatal. É claro que, antes de lá chegar-se, muito vai acontecer a nível político (e bélico) - apenas pelo facto dos Estados não abdicarem das suas premissas, mesmo sabendo que remam contra a maré.
Só as atribuições necessárias a sustentar o chamado "bem-comum" (isto é, aquilo que não der lucro) irá justificar a permanência dos Estados num mundo globalizado. De resto, acabam os privilégios alfandegários, uniformizam-se as leis e as élites, integram-se as moedas, simplificam-se as contribuições, e o segredo de Estado deixa de ser importante. Pode até parecer o projecto federalista da União Europeia, mas esse é apenas um intermédio para outro processo muito mais vasto - global - que engolirá a entretanto amestrada Europa. O recente desfecho da "guerra das bananas" diz-nos quem realmente tem força na selva global.
Na África, na América Latina e na Ásia, onde a maior parte das fronteiras, com ou sem régua e esquadro, foram desenhadas para assegurarem a submissão ecónomica, os Estados não têm real soberania; para a globalização o Mundo divide-se em "regiões", estratificando-as pelo tipo de oferta que têm, definindo-se as suas vocações segundo as conveniências de concentração de recursos ou mão-de-obra, não pelos desígnios locais. É claro que as transformações não se fazem sem conflitos mais ou menos prolongados (mas com desfecho previsto), caindo os políticos que defendam a força do Estado para serem substituídos por "governantes" cuja missão é abrir as portas à sofreguidão do capital global - de preferência democraticamente. Porém há casos cuja dimensão ou situação geopolítica e estratégica ainda os torna ossos muito duros de roer - mas também os mais cobiçáveis: China, Índia, Brasil, Irão, Turquia, talvez a África do Sul. Uma coisa é certa em todos: o poder global não vai morar lá.
O Estado perde a sua razão de existir também por causa do que se passa internamente. A noção de pertencer a um país, cujo destino justifica a noção de Estado, está a perder-se geração após geração. Há por um lado o declínio da própria autoridade de cada Estado, cuja imagem é sistematicamente vulgarizada pelos jornalistas (opinião dita pública controlada por interesses privados) relatando ao mínimo pretexto as falhas do sistema, enquanto deixam no ar que esse mesmo sistema não consegue melhorar, que se limita a não piorar demasiado. E por outro lado promove-se a ideia que as grandes empresas privadas são o refúgio para cada um garantir o seu sustento, singrar numa carreira, enfim, talvez ser feliz. Dito à pressa, é o caos das instituições que sugam o dinheiro dos contribuintes contraposto à "boa ordem" dos gigantes que montam o cavalo da globalização. A lealdade a uma bandeira substituída pela lealdade a um logotipo.
Se todos já vemos isso hoje, é de lembrar a crescente proporção dos que nunca viram outra coisa e se estão nas tintas para o Estado - mas isso não quer dizer que sejam anarquistas, nem isso nem antes pelo contrário. Os valores da globalização continuarão a ser promovidos à custa da desacreditação dos Estados e do desaparecimento das gerações mais antigas, e irão a certa altura tornar-se tão orgânicos para as populações como os Estados constitucionais, fossem eles monárquicos ou republicanos se tornaram para os europeus do século XIX. E há urgência em virar as páginas da História.
Todo o veneno depende da dose para envenenar. A globalização é mais do mesmo a que fomos habituados desde sempre, mas é pelo efeito da "dose" que as regras mudam, condicionando as escolhas da Humanidade pela destituição dos Estados a favor de uma economia de modelo único. Analogamente à Tomada da Bastilha em 1789, que simboliza o desencadear de uma revolução cujas raízes lhe eram bem anteriores, os acordos de Ronda do Uruguai do GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio), firmados em 1994 para deles surgir a WTO (Organização Mundial de Comércio), são para a globalização um início mais simbólico que real.
Nas palavras do primeiro boss da WTO, esses acordos foram uma espécie de "Constituição de uma única economia global". Achando (segundo parece) que a globalização económica lhes abria as portas para os mercados mais ricos sem interferências nem mediações, os países considerados menos desenvolvidos deram o sim ao que se tem revelado isso mesmo mas no sentido oposto: são os mais desenvolvidos, não por via dos Estados mas directamente por acção de interesses privados, que entram como querem para sacarem o que lhes interessa para pouco darem em troca - a não ser o que é preciso para anularem a resistência local seja a que nível for, nomeadamente a dos governos.
De todos os sinais dos tempos desde 1994, o mais descarado é o agigantar dos conglomerados económicos. A exigência de capacidades administrativas e financeiras para a expansão a nível global gerou no que já eram grandes empórios a necessidade de aumentarem de tamanho, com a multiplicação das fusões e aquisições de empresas. Atingem com isso tal dimensão que em tudo adquirem a lógica dos Estados (só lhes falta terem moeda própria!), e com segredos próprios dessa lógica. Pertencer a uma empresa é obedecer às regras internas da mesma para não ser castigado. Alegoricamente, passar para a empresa rival é como mudar de país. É essa a única liberdade que os empregados têm (e muito limitada pela imposição de uma série de compromissos internos e chantagens diversas), porque de resto vivem numa total ausência de democraticidade: "alguém" visionou, investiu, articulou e expandiu, e isso confere-"lhe" um direito discricionário sobre todos os que dependem desse "alguém". Sendo impossível conceber-se poder judicial equitativo dentro das empresas, e estando o Terceiro Poder manietado e (como todo o Estado) desacreditado, não há reais direitos senão os de obedecer para receber.
Usando de alguma atenção, há duas coisas que dominam agora as notícias muito mais do que antes da fundação da WTO: os conflitos armados e as flutuações dos mercados financeiros. Ou, posto de outra forma, os problemas que a globalização quer resolver, e os que ela cria.
Muitas situações locais são altamente obstrutivas ao avanço da globalização. Essas, ou o "consenso internacional" declara inimigos ou, segundo a circunstância, ostraciza. O Estado de Milosevic´ revelou-se um osso muitíssimo duro de roer, e foi preciso desencadear(-se) uma crise financeira no verão de 1999 para deixar a Rússia com a língua de fora e assim de mãos atadas enquanto assistia à guerra no Kosovo e no resto da Jugoslávia. A arma económica actuou antes e vai continuando hoje a actuar, desta vez com os despojos de guerra onde avulta a pessoa do próprio ex-presidente, em troca da concessão de favores financeiros à Jugoslávia. Revela-se agora que havia um problema muito mais "global" que a tensão étnica naquela região (que jeito os albaneses têm dado!): o garantir para um consórcio anglo-americano o controlo de um gasoduto através dos Balcãs até ao Adriático. Assim sim, tudo claro como água do Luso.
O capitalismo não é um sistema, mas uma manifestação colectiva do lado instintivo da nossa existência. Por isso tem uma enorme flexibilidade, mas também conduz a extremos de irracionalidade que desencadeiam desastres em larga escala. A globalização pretende remover todas as barreiras físicas, legais e mentais ao crescimento económico privado, mas isso traz problemas que nem sequer são novidade. Usando de uma analogia, logo que nos campos explorados extensivamente com uma única cultura grasse uma praga, esta espalha-se tão depressa que acaba por destruir a colheita sem dar tempo para qualquer intervenção - assim a economia global é um "campo" onde tudo corre bem... quando corre, pois quando algo de errado acontece a catástrofe é também global e muito difícil de controlar. Uma espécie de Pré-História daquilo a que me refiro aconteceu na Bolsa de Nova Iorque em 1929: já o facto de ter-se desencadeado uma grave depressão económica em toda a extensão dos States, por ter colapsado uma bolsa importante, seria suficientemente ilustrativo, mas o que é certo é que essa depressão se fez sentir em todo o mundo, criando as condições para um Keynes ou um Hitler. Diz-se que ainda pior esteve tecnicamente para acontecer em 1987, e que na altura valeu ao mundo o Japão ter comprado dólares americanos para "acolchoar" a queda, mesmo assim não deixando de haver uma certa depressão de que nos calhou ser oásis... Ao contrário da de 1999, nada indica que a crise financeira global de 87 servisse de arma com finalidades obscuras, antes é indicativa das enormes vulnerabilidades do sistema financeiro, que é imprevisível (pelo menos para o comum dos mortais) e não deixará de mergulhar em novas crises de descontrolo, surgindo ao sabor dos puxões a que a economia global está submetida permanentemente. A quantas poderão acorrer os japoneses, ou como último recurso os suíços?
A União Europeia de Delors e Kohl (ou seja lá quem realmente a concebeu no caminho que hoje segue) é uma demonstração cabal da diferença entre o que parece e o que é: tratando-se de um espaço económico com mais capacidade de consumo do que qualquer outro à face da Terra, que é origem histórica do capitalismo industrial e nunca abdicou de assumir a vanguarda, então medite-se porque é que o lançamento da sua nova moeda fosse desde logo marcado por uma queda deslizante em relação ao dólar americano, para tombar abruptamente, ó ironia! (ou talvez não), durante a guerra do Kosovo. Note-se que este comportamento desastroso foi imensamente facilitado logo que a participação da moeda do Reino Unido foi inviabilizada pela especulação cambial. O Euro ficou assim descapitalizado e ao sabor das mais diversas "conjunturas", ficando a Libra a acompanhar o dólar US, numa evidência de união estratégica da tradição anglo-saxónica atlântica, que é a que mais nitidamente se identifica com a globalização. Obluff da União Europeia está a nu, com a agravante de ter monopolizado as energias dos potencialmente rebeldes europeus (continentais...) para uma quimera que resultou até agora em apenas anular as margens de manobra dos seus Estados membros... Quinze coelhos de uma cajadada!
Mesmo que as guerras se localizem longe dos olhares bem-pensantes, bem-tratados e bem-alimentados, há factores de destruição mais subtis, e que por isso atingem todos. A agricultura da Revolução Verde é um deles. Toda a inovação agrotecnológica que foi concebida para aumentar a eficiência industrial da exploração dos campos é acolhida com entusiasmo pelos protagonistas da globalização - mas é uma lógica de "depois de mim venha o dilúvio". Os próprios que produzem a maior parte da comida cultivada nos países industrializados não consomem da que produzem mas sim da outra, que até lhes sai mais cara, mas eles têm dinheiro para o luxo de consumir alimentos saudáveis.
Depois, há os milhões de hectares no Terceiro Mundo que todos os anos são apropriados por eucaliptais e outras exóticas de crescimento rápido, cuja exploração é por si só um factor de destruição dos solos que eram mantidos com uma agricultura ecologicamente sustentável, quando não vêm substituir habitats naturais irreversivelmente, e isto precisamente nos países onde os há com maior riqueza biológica. Trata-se de catástrofes ecológicas de extensão planetária, ao pé das quais o enchimento do Alqueva, os derramamentos de petróleo ou mesmo Chernobyl são episódios menores, e que se vão produzindo longe dos olhos de uma opinião pública que aliás é mantida ignorante sobre as suas implicações, pois isto da diminuição acelerada dos habitats naturais que ainda restam não é coisa que aflija muito.
Há o consolo de termos visto a Transamazónica ser engolida pela Amazónia, e o pretexto trazido pelos transgénicos para mobilizar as consciências contra a globalização. Se bem que os transgénicos sejam apenas uma das facetas da questão, os seus promotores não previram os obstáculos que se puseram à sua aceitação, um passo em falso que saiu muito caro; mas a globalização é na prática imparável, e nada (a argumentação pela lógica menos que tudo) deterá a ânsia de desforra que isso trouxe - e no fim somos todos a pagar caro, e de várias maneiras. Para já, a presença de um transgénico no molho das batatas fritas dos McDonald's é identificada como "milho modificado". Seguir-se-ão outros capítulos talvez menos eufemísticos.
Outro dos aspectos anti-ecológicos da globalização é a desumanização das sociedades, pela muito maior submissão da existência humana às regras do dinheiro. Muito do que hoje é ser-se humano vai ficando para trás, e a passos largos.
A televisão é um dos instrumentos mais importantes nesta transição. Contribui, por ajudar a construir uma percepção do mundo a um nível antes de tudo global, e quase sempre segundo preferências "internacionais" (leia-se anglo-saxónicas) que subalternizam os valores locais. Todas as produções internacionais, sejam elas as da MTV, CNN ou EuroSport, ou o Canal 18 e as produções da Endemol, administram uma escala de valores unitária (pois é independente das respectivas especialidades) que conduz a um só ponto: a glorificação do dinheiro na aspiração a consumir. É claro que isto resulta na procura cada vez mais canalizada para as marcas ou escolhas de expressão global, sejam elas de comida rápida, cosmética, roupas, carros, destinos turísticos, bebidas, etc.. As estrelas que servem de exemplo a estes consumos são indistintamente pessoas que se notabilizam por serem excepcionalmente bem pagas, sejam eles desportistas, artistas do cinema ou da música, ou manequins, por exemplo. Valem pelo que ganham mas sucedem-se uns aos outros em pouco tempo, porque o carrocel dos mitos gira sem parar.
De tal maneira é assim que hoje há televisores por todo o lado, cujas imagens funcionam para a maioria de nós como a janela global. Todos os olham para ver o que é que "lá" se passa, mesmo que não se passe nada, pois não há outra coisa que interesse no mundo ao alcance da mão. Alternativamente, há a World Wide Web, vulgo "internet", onde se consomem tempos dificilmente imagináveis à procura de alguma coisa que interesse, muitas vezes sem rumo, quando não seja apenas para ver imagens pornográficas, "mircar" (conversas em tempo real), jogar em casinos virtuais, ver o BigBrother e tantas outros vícios à disposição.
A isto eu chamo uma existência virtual. Os laços entre os indivíduos, dependentes de uma convivência continuada e repetida, não se chegam a formar. Como derivativo para a solidão, definem-se "comunidades", indivíduos que não se conhecem de facto mas têm em comum uma coisa qualquer, seja usarem um portal da WWW, curtirem uma banda rock, serem fãs de um actor de novela, ou andarem de Clio.
Os templos da existência virtual são regularmente visitados para ver os artistas ou desportistas que cada um venera: recintos desportivos, mega-espectáculos... Sem repararem muito no dispositivo policial que os cerca, sem ligarem nenhuma a quem está ao lado (mas que está lá pelo mesmo motivo), os indivíduos surgem em enormes rebanhos mas desligados entre si, para consumirem mais um pouco daquilo que ganham e daquilo que esperam, regressando depois a dizer que foi maravilhoso (mas não lhes perguntem porquê).
Pode parecer que estou a meter tudo no mesmo saco, mas é de facto tudo o mesmo saco. A solidariedade que pode surgir naturalmente entre as pessoas, seja nas famílias seja nas escolas, ou noutros contextos, é um factor de risco permanente para a globalização. Ao contrário das barreiras ao comércio que são removidas sistematicamente a nível global, todas as barreiras à identificação espiritual entre os indivíduos são invocadas.
O gigantismo das empresas é percebido pelos indivíduos, assim desgarrados, como uma fatalidade à qual não podem escapar, facilitando a sua submissão. O terrorismo mediático, servido em doses diárias sobretudo através da televisão, contribui para este fatalismo. Mais ainda, a omnipresença de fardas de vários tipos estabelece limites mentais e desenvolve colectivamente a culpa pessoal. A sociedade humana tende cada vez mais a parecer-se com o formigueiro e suas obreiras indistintas, soldados indistintos, zangãos indistintos...
Mas todos vivem a existência virtual aparentemente satisfeitos, ficando por isso surdos a quaisquer alternativas, até as odiando. Consegue-se isso com o alimento espiritual de duvidoso conteúdo que é enviado à distância, uns entreténs que ocupam toda a capacidade de atenção e prontamente são varridos pelos novos entreténs que a máquina de produção de diversos palcos, noticiosos ou pretensamente artísticos, laboriosamente fabrica. Acrescente-se a ocupação que tanta gente faz do que deviam ser tempos livres para serem transportadas, quais Sísifos reformulados, e não sobra tempo nem capacidade para se dedicarem a si próprios, às suas casas, aos que lhe são próximos. Apesar disso, tudo deixa de ter importância desde que a dose de virtual seja garantida: indiferentes a valores, indiferentes às manipulações, indiferentes às consequências do que fazem, do que omitem ou do que admitem que lhes façam, aquilo que por troça são designados cidadãos caminham todos os dias para uma forma não-excluída de drogado. E é aí que a satisfação aparente por vezes deixa cair a máscara: será que a "queda" na toxicodependência não é apenas um minúsculo passo?
O que é o prazer? Um estímulo químico num centro-não-sei-quê do cérebro, um dispersivo das ralações ou frustrações, a satisfação duma busca - sim, tudo isso são formas de prazer, e todas têm o seu departamento na oferta global. Mas se a destrutiva habituação à heroína se fixou em todos os mercados acessíveis à globalização, o não menos sórdido consumo de vinho morangueiro não oferece atractivos para vir a expandir-se a essa escala (não é difícil imaginar porquê). Simplesmente, não faz parte do rol. Canalizar as fantasias da humanidade para terrenos devidamente preparados para o consumo global é ao mesmo tempo a causa e o efeito da rápida configuração de vastidões humanas segundo o figurino unificado.
Há pouco mais de um século, o sindicalismo e o cooperativismo foram grandes mobilizadores da acção anarquista. Nos anos mais recentes, é a resistência à globalização que tem mostrado um novo potencial mobilizador para essa acção. Pode ser que dela surja uma muito desejável actualização das ideias e dos métodos, se bem que a mistura com grupos demasiado bem organizados, sejam eles formações políticas marxistas, ou os bandos de arruaceiros que são pasto para a mediatização negativa dessa resistência, me tornem céptico sobre a real produtividade deste movimento.
Contudo, ao minar a força dos Estados, ao produzir contingentes de excluídos, a globalização lavra o terreno para a sementeira do anarquismo. O renovado protagonismo de organizações que se declaram anarquistas baseia-se nesses factores de rejeição do sistema económico, enquanto aos poucos se toma consciência da valia dos meios introduzidos para servir a globalização, internet e não só, para servir os objectivos dessas organizações. Para cada rebanho de promissores servos do sistema é matemático que se produzirá uma colheita de indivíduos cujas vidas são a outra face, que se revela a todos viável, da existência à margem da economia global.
É claro que a visibilidade do anarquismo não implica a curto prazo qualquer saída da situação marginal em que tem persistido, e não tardará que surjam campanhas que desacreditem as acções dos anarquistas, por exemplo identificando-as com a desordem, a agressão, a loucura, etc.. Mas, ao contrário do que os comunistas e outros gostam de repetir, o anarquismo é mais actual do que nunca, e pode considerar-se que a globalização favorece o aumento no número dos que o tomam a sério:
- O descrédito do Estado (por causa da autoridade que lhe é inerente tender a interferir com a globalização) é também o descrédito dos partidos como supostos projectos de Estado. Ao propor uma via política sem Estado (e alheia aos partidos), o anarquismo pode beneficiar da crescente ausência deste para aglutinar muitos dos que rejeitam o sistema económico da globalização.
- O Estado, permeável à globalização mas opressor sobre o indivíduo, é identificado cada vez mais com a sua função de guardião de interesses privados, algo que não deixa de causar revolta nas numerosas vítimas desses interesses. Essa revolta, quando não é activa (arruaceiros àparte), acaba por encontrar a mais produtiva canalização nos métodos de Ghandi, que são uma das expressões culminantes da acção anarquista.
- O anarquismo, apoiando-se em valores espirituais perenes, que elevam os indivíduos da bestialidade do capitalismo, como sejam a solidariedade, o apoio mútuo, a consciência crítica acompanhada de tolerância, a libertação do dinheiro..., enfim, pelo desafio à organização sem sistemas pré-concebidos, renova em cada um a vontade de melhorar a sua existência. A opressão pelo sistema económico, conduzindo ao desespero dos indivíduos, aumenta a probabilidade de criar-se neles uma receptividade a esses valores que alie à vontade a coragem de pô-los em prática.
E isso vai valerá a pena ver acontecer, se não é que acontece já sob múltiplas e subtis formas. Só pergunto quanto sofrimento terá de passar a humanidade para que isto se torne realidade para um número de indivíduos suficiente...
Paulo de Oliveira