BOM COMPORTAMENTO

Homem previsível e congenitamente bem-comportado, o Engo. António Guterres é bem a imagem de muitos dos que povoam os corredores da política. E é nas mãos dele, e mais ainda nas dos que estão por detrás dele, que Portugal foi cair... os tempos que correm são tempos de nos portarmos bem, os milhões de nós todos, não só a pagar os impostos e a tolerar as fardas, não só a cumprir o Código da Estrada e a engolir cerveja sem álcool. Aquilo que se exige da generalidade dos cidadãos vai muito além disso.

O bom comportamento hoje em dia é cada vez mais a linha divisória entre os que são pagos para consumir e os que se limitam a sobreviver. Os primeiros vivem não para si e para os que lhes são chegados, mas para ganharem o dinheiro que lhes parece comprar momentos de felicidade, o que neste grupo só se consegue com "liberdade". Por isso acabam por submeter-se a padrões de comportamento que lhes permitem assegurar empregos, galgar escalões pré-estabelecidos de progressão, evitar o abismo da mudança, e ignorar tudo o que à sua passagem se vai perdendo ou destruindo. Mas o que julgam ter conquistado é fatalmente para ser consumido, "porque merecem", ou antes como corolário de todo o culto de egoísmo que adoptaram. Não admira que se sintam vazios. E não admira que, previsíveis como são, acabem por ser manipulados de toda a maneira. A liberdade que pensam comprar é tanta como a do canário na gaiola: este mal pode voar, nunca deixa de estar fora de vigilância, come e bebe do que lhe dão, procria e até canta!

Os segundos são os excluídos explicitamente, seja por caírem no desemprego, na alienação pelas drogas ou no crime, e os que vivem a contar os tostões para ao menos levarem a sua vida sem ficarem excluídos. Qualquer dos deste grupo anda tão obcecado com as necessidades imediatas que o confrontam a cada momento da vida, que não há espaço para espiritualmente respirar. É o grupo dos mal comportados (dos que são, e dos que foram... por exemplo não gostavam das aulas, ou casaram cedo demais, ou... tanta coisa que é mau comportamento...), e o seu exemplo constitui o verdadeiro prémio ao bom comportamento dos do outro grupo, que "vivem bem" só porque não têm estes problemas.

Largar tudo e começar de novo é o privilégio de muito poucos. Esses poucos sabem "comportar-se mal" e mesmo assim irem além da mera sobrevivência; são gente que vive realmente melhor mas que infelizmente estão pouco interessados em mobilizar-se para causas do chamado bem comum, talvez porque não acreditem na capacidade dos outros serem solidários. Estatisticamente têm razão, mas estatisticamente eles próprios quase não existem, ainda por cima isolados. Por isso o sistema despreza-os.

Mas esta divisão entre bem e mal comportados ainda não é tão dramática como se vai tornar com o andar dos anos, assim consigam os Estados levar a bom termo o seu zelo: como só os novos é que podem ser conduzidos para o "bem" com eficácia, todas as campanhas são poucas para induzir nos jovens a noção de que os caminhos estão todos traçados e o melhor futuro é servido de bandeja a quem segue as regras, desde beber o leite excedentário da União Europeia a pagar as propinas tabeladas abusivamente. Tal como num anúncio que recentemente apareceu nas ruas, o futuro é como um artigo de consumo, que se escolhe como os jeans ou se prefere como a cerveja. Há muitos e graves sinais de conformismo e mesmo ultraconservadorismo em massa nos adolescentes de hoje. A noção, igualmente nítida, de que o prazo para a igualdade de oportunidades em cada geração é muito limitado torna-os ansiosos, empurrando-os para decisões que precocemente os definem para os grupos que hão-de formar em adultos, isto é, os bem e os mal comportados. Têm plena consciência do que significa bom comportamento, pois a propaganda não pára de lhes indicar os caminhos a seguir. E ai de quem não os quiser seguir ou quem não soube escolher o que mais lhe convém e fica no fim da lista, que para esses o afunilamento das opções é aterrador.

Febres do consumo

As construções em cidades como Lisboa e Porto são o espelho do modo de vida que se vai instalando nestes tempos. Exemplo notório disso é a proliferação de centros comerciais, catedrais para onde convergem todos os necessitados de consumir por consumir. Desde há anos que se vem notando, especialmente em épocas de alto movimento como é o mês de Dezembro, que são precisamente os produtos mais caros os que se esgotam mais depressa. Este padrão de consumo não pertence apenas a proprietários de terras vivendo ao mesmo tempo de subsídios da seca e da chuva, a empreiteiros topa-a-tudo que cobram a bem ou a mal pelas obras (inacabadas) que fizeram, a industriais que declaram falências fraudulentas, aos que suplementam o ordenado com facturas falsas ou a outros parasitários, tudo gente que não vem aqui ao caso; aliás, cada vez menos lhes pertence. Corresponde mais à grande massa dos bem-comportados, que apreciam o prazer de poderem gastar porque "merecem".

Mas as construções também são as dos bancos, a que se juntam as companhias de seguros, as empresas imobiliárias, os operadores de telemóveis, os vendedores de carros, tudo feito para o "alvo" (rico nome!) preferido dos seus produtos. Com PPR's, OPV's, créditos disto e daquilo, campanhas e "ofertas", com as revistas de apresentação luxuosa a promoverem destinos de viagem sob a máscara de reportagem, cada vez é maior o assédio aos que detêm um ordenado bem-comportado, visando "limpá-lo" até ao último centavo. Porquê? Porque os ordenados dos bem-comportados são um mercado bem abastecido. No admirável mundo novo que os políticos preparam para os países desenvolvidos, os bem-comportados são meros redistribuidores de dinheiro, nunca chegam a deter essa fonte de poder que tantos tanto ambicionam; abdicam da possibilidade de, pelo menos materialmente, conseguirem emancipar-se da gaiola onde habitam. Logo estes, que na maior parte sentem-se aparentemente felizes, mesmo sem se darem conta que não têm tempo (ou paciência) para si mesmos e para os seus familiares (se é que têm família), que cada vez menos se dedicam aos pequenos nadas da vida, que perderam o sentido da solidariedade, que cada vez mais comunicam virtualmente e cada vez mais têm medo do dia de amanhã! Se lhes abrissem a gaiola, por exemplo com uma herança, nem saberiam o que fazer cá fora.

E o Primeiro Ministro, mais quem está por detrás dele, anda descansado com estes que se portam bem ao ponto de alimentarem a economia de consumo, e que querem continuar a portar-se bem. São, à sua imagem, úteis, previsíveis e inofensivos.

Paulo de Oliveira