A alma ao desleixo

(o "visionário" perante o Centro Comercial da Mouraria, Outono 89)

Da Mouraria já só vai restar um nome, e um centro comercial que o ostenta. Da gasosa passar-se-á à Coca-Cola; do carrascão para a droga; se antes havia miséria e malandragem, havia o consolo de ser-se um sobrevivente, e isso cantava-se; apesar das conversas dos intelectuais e do comércio discográfico, a arte e a alma do fado permaneciam intactos e vivos naquele "monte eterno" de que agora só resta um centro comercial (e que, no Bairro Alto, perdeu a privacidade).

Mas, quando a Revolução surgiu a difamá-lo, o fado envergonhou-se, e saiu dos hábitos. A Revolução fez-nos sair da casca, abriu-nos ao mundo, e por isso fazemos agora parte dele. Não tarda muito que impere um "crioulo" do inglês que circulará no nosso quotidiano.

Sempre a televisão! É afinal ela que prepara todo este caminho. O que era parolo passa a chamar-se "tradicional", mas está certo, a tradição tornou-se distante, é algo exótico, vende-se como repertório de autenticidade -- muito bonita, na vitrine de um museu. Ela já não dá forma aos homens. E o fado aprende-se nos discos, e o Fernando Pessoa é uma estátua, as ervanárias deliciosas curiosidades, a velha urbanização "património".

Há uma intenção de seduzir a vista sem atingir a alma, esta que aliás já não reconhece nada senão padrões universais que um dia se saberão errados! (para dar lugar a outros?)

Nos anos 60 e 70 certa malta procurava a todo o custo libertar-se do passado, mas parece que desistiram. Era como se quisessem livrar-se da alma. Agora a nova malta aparece liberta, mas não sei que alma eles têm. Se calhar até a procuram, e se pudessem comprá-la, ainda mais a procuravam.

Seremos um planeta em que as nacionalidades serão folclore. Uma só sociedade mundial compartimentada em modos de vida padronizados, de preferência reforçados por "imagens" próprias -- os tecnocratas, os conselheiros espirituais, os jornalistas, a alta roda, as "estrelas" (desporto, cinema, música, são meras subdivisões), a finança, os intelectuais, a juventude, os militares (os paramilitares, milicianos, eclesiásticos e "seguranças") e os inadaptados. Iguais por toda a parte.

E o "Centro Comercial" Capelo, uma chafarica à entrada da rua do Benformoso, tem o seu truque castiço desmascarado, com vizinhança tão gigantesca. Restos de um mundo que já não pode sobreviver.

Paulo de Oliveira

(revisto a 1 de Janeiro de 1990)