De quem foram as decisões, afinal?

A opinião emitida recentemente pelo Professor Pedro Fevereiro (ver PÚBLICO de 2000/01/26) sobre a decisão governativa de suspender o cultivo comercial de milho transgénico em Portugal carece de uma análise detalhada tanto pelas questões que levanta como pela posição a que vincula a Ordem dos Biólogos, visto não vir assinada em nome individual mas sim pelo Bastonário. É questionável a oportunidade de emissão de uma posição tão demarcada face a um tema reconhecidamente controverso sem que os orgãos directivos da Ordem tenham promovido um desejado debate ou esclarecimento internos. Lançada, no entanto, a questão a público, ofereço aqui uma contribuição para o seu enquadramento.

Desde logo o afunilamento do debate deve ser questionado: não podemos limitar-nos a discutir apenas os eventuais impactos de plantas transgénicas. A actual produção de medicamentos em sistemas confinados levanta questões de cariz substancialmente diferente das colocadas pela libertação intencional para o ambiente de um qualquer organismo vivo modificado mas não deixa de ser objecto de preocupação, ecoada, por exemplo, nas negociações sobre Biossegurança que reuniu 134 países em Montreal, no Canadá. O argumento internacionalmente aceite é de que qualquer ser transgénico viável representa um risco potencial a diferentes níveis, que deverão ser sujeitos a escrutínio detalhado. Além disso, embora a produção comercial de transgénicos com interesse alimentar esteja neste momento centrada em plantas, prevê-se, por exemplo, que já em 2002 possam ser colocados no mercado peixes portadores de genes para hormonas de crescimento humano ou de outros animais que garantem maior tamanho no estado adulto e menor consumo energético per capita.

Quando o meu colega declara que "não acredita" na nocividade dos transgénicos no tocante à saúde humana fá-lo certamente enquanto cidadão - espero que não enquanto cientista e certamente nunca enquanto dirigente. É que um posicionamento tecnicamente rigoroso deveria acautelar contra expressões de fé, uma área em que cientistas se encontram em pé de igualdade com qualquer outro mortal. Se, como é o caso, neste momento não existe consenso científico (várias têm sido as tomadas de posição com centenas de assinaturas de cientistas a defender leituras da biotecnologia diametralmente opostas entre si) nomeadamente por conhecimento incompleto da matéria, invista-se na ciência até obtenção das respostas necessárias e, no entretanto, aplique-se o princípio da precaução à circulação e libertação de transgénicos. Poderá um cientista advogar outras opções que precisamente carecem de fundamentação científica?

Uma das razões apontadas para justificar a ausência de preocupação perante a engenharia genética de índole alimentar prende-se com a inexistência de mortes por ingestão de transgénicos. Conceito extraordinário, este! Infere-se que algumas das premissas subjacentes a esta afirmação incluirão: - a morte de pessoas é o único facto que deverá desencadear a intervenção política; - deve-se esperar que aconteçam essas mortes para fundamentar devidamente as decisões; - é possível conhecer sempre, quando as pessoas morrem, a raíz original do mal que as afligiu; - há alguém a pesquisar a origem dessas mortes para detectar eventuais correlações com o consumo de transgénicos. Como é por demais conhecido em ambiente, a ausência de prova não significa prova de ausência. Por exemplo, o facto de este momento já todos os portugueses comerem transgénicos sem que o possam evitar (visto a rotulagem ter sido legislada de uma forma deficiente e nem nesses termos estar a ser aplicada ou fiscalizada) impede a realização de estudos epidemiológicos sérios, precisamente aqueles que poderiam contribuir para a fundamentação técnica das decisões governativas através da caracterização detalhada dos tipos exactos de patologias mais ou menos graves (alergias, etc) eventualmente associadas ao consumo.

Relativamente à asserção de que não existirão riscos de alergias acrescidas nos alimentos transgénicos já comercializados gostaria de lembrar um exemplo da soja modificada, em que um dos alergénios mais importantes (um inibidor da tripsina) aparece numa concentração 26.7% superior à da versão convencional não alterada.(1) Esta mesma soja, em testes levados a cabo por cientistas da empresa Monsanto, provocou um aumento da proporção de gordura no leite de vaca e uma diminuição da taxa de crescimento em ratos macho. A análise do impacto ambiental da biotecnologia agrícola é reduzida a uma comparação favorável com as práticas convencionais, como se estas representassem a única alternativa no terreno. Mas a biotecnologia não elimina o impacto ambiental negativo dessa agricultura (antes poderá acelerá-lo através do aparecimento de pragas resistentes, novas doenças, desequilíbrios ecológicos, transferência horizontal de resistência a antibióticos, etc, etc). Estará então a humanidade limitada a escolher o menor entre dois males? Limitar-nos-emos a decidir sobre a velocidade com que as espécies deverão extinguir-se, com que o ambiente deverá degradar-se? Fraco crédito concede o meu bastonário à biotecnologia, afinal.

São-nos apresentados dois exemplos do que a engenharia genética pode vir a fazer para encaminhar a sociedade em direcção a um futuro mais equitativo e ecologicamente equilibrado. O proposto é aliciante, se for possível concretizá-lo. Mas vale a pena reflectir sobre os problemas que tanto o arroz enriquecido quanto as bananas com vacinas se propõem combater. Talvez a biotecnologia seja de facto a resposta, mas qual era a pergunta, exactamente? Se a doença e a desnutrição têm origem na ausência de infrastruturas sanitárias, na injustiça da distribuição de terra fértil, na pobreza que resulta de uma industrialização e urbanização sem ética, pretenderemos nós contribuir para a manutenção do status quo através do desenvolvimento de medidas mitigadoras que olham a ponta do iceberg sem nunca questionar as correntes de fundo? Se a evolução social nunca tivesse passado pela biotecnologia, estaríamos condenados a conviver com a miséria? Evidentemente que a biotecnologia não se esgota nestes exemplos, mas permanece a necessidade de reflectir sobre quais as questões que se colocam antes de investir apenas num dos vários modelos de resposta disponíveis.

Existe acordo com o supra-citado texto pelo menos num aspecto: qualquer introdução de transgénicos no ambiente deve ser precedida por estudos cuidadosos e ecologicamente relevantes. Talvez venha aqui a talhe de foice lembrar o próprio autor que, em intervenção pública, referiu um período superior a 50 (cinquenta!) anos como necessário para que esses estudos possam responder conclusivamente às questões que qualquer cidadão de bom senso gostaria de ver colocadas. Escusado será dizer que os estudos em Portugal, onde os houve, nem cinco anos duraram, para além de terem partido do princípio que os transgénicos são "substancialmente equivalentes" às variedades não alteradas quando se analisa o eventual impacto negativo (mas já são "significativamente distintos" quando se trata da atribuição da patente).

A bondade da recente opção governativa que impõe uma suspensão de um ano ao cultivo comercial de milho transgénico em Portugal é questionada por ser uma decisão "política", por ceder às "exigências" dos agricultores, satisfazer "ambientalistas" e ainda alinhar com a posição da "maioria dos países da União". Aparentemente o executivo conseguiu atingir vários coelhos com uma única assinatura, numa jogada de mestre que nos deveria deixar orgulhosos. Aparentemente só (alguns) cientistas ficaram insatisfeitos. Porque é que a classe se deveria ofender com uma escolha em que de qualquer modo não tem capacidade de intervir como seria apreciado é a pergunta que fica sem resposta. Não gostaria no entanto de deixar de contribuir para o esclarecimento do Bastonário da Ordem dos Biólogos, pelo que aqui deixo a minha contribuição relativamente às perguntas levantadas expressamente no seu texto:

  1. Por que é que, se foi em nome dos "riscos para o ambiente", não foi o Ministério do Ambiente a tomar esta iniciativa? Porque, tal como vem definido na legislação em vigor, a autoridade competente nesta matéria é o Ministério da Agricultura. Foi este orgão que optou pela inserção do dito milho no Catálogo Nacional de Variedades, e só ele poderia suspender tal autorização. Ainda bem que o Ministério da Agricultura acredita que considerações de índole ambiental não são monopólio exclusivo do Ministério do Ambiente e assumiu as suas responsabilidades no tocante à análise dos riscos de grandes explorações agrícolas de transgénicos.
  2. Como vai ser esta suspensão verificada? Isso pode dar-se a vários níveis: ou é o governo, ou os agricultores, ou os exportadores ou os importadores estrangeiros ou ainda as associações de defesa do ambiente e do consumidor. Dada a visibilidade da questão é previsível que não falhem todos os elos da cadeia ao mesmo tempo, até porque a tecnologia de detecção está disponível no mercado e os kits são de uso simples com resposta imediata. Acima de tudo, é economicamente vantajoso para os agricultores evitar o uso dessas sementes.
  3. Quais são os mecanismos no terreno existentes em Portugal que condicionem o cultivo de plantas transgénicas? A ausência de um processo de autorização e monitorização dos impactos da libertação que seja credível, independente dos interesses económicos de empresas transnacionais, com sensibilidade para a multiplicidade das implicações em jogo e humilde no reconhecimento de que (tal como até o presidente da Monsanto assume) as consequências desta nova tecnologia são, por definição, imprevisíveis.
  4. Quem foram os técnicos e investigadores com experiência ouvidos para permitir uma tomada de decisão, técnica e cientificamente fundamentada? A decisão foi política sem ter de se desculpar por isso, sobretudo se considerarmos o conhecimento científico que não temos porque ainda não existe, e baseou-se em parecer dos técnicos da Direcção Geral de Protecção de Culturas e demais estruturas do Ministério da Agricultura. Serão eles incompetentes? Conciliar as aspirações do público, das associações de defesa do ambiente e do consumidor e ainda dos agricultores foi de facto uma realização de talento.
  5. Que medidas vão ser tomadas em Portugal para esclarecer as dúvidas relativamente aos "riscos para o ambiente" da utilização destas variedades? E que propõe o Bastonário da Ordem dos Biólogos? Ou deveremos remeter-nos para a dita fé?
  6. Qual a política que os Ministérios do Ambiente, da Saúde, da Ciência e Tecnologia e da Agricultura [têm] nesta matéria? Se existe nunca foi publicada. Mais uma razão para que se suspendam as libertações de transgénicos até que a necessária reflexão nacional tenha sido concluída. É até possível que se chegue à conclusão de que temos de apostar inteiramente na biotecnologia agrícola. Mas o oposto também se pode revelar verdade. Já agora, qual é a política e atitude que a Ordem dos Biólogos em si advoga para a área? A do seu Bastonário?
  7. Por que é que as empresas que comercializam estes produtos não se queixaram desta decisão? Porque a experiência adquirida noutros países onde a mobilização do público já adquiriu maior dimensão é de que essa é a melhor estratégia. As empresa com grandes interesses investidos na comercialização de sementes convencionais não ganharam nada em aparecer como "aqueles que querem meter milho do Frankenstein na papa do meu bebé".
Particularmente perturbadora é a leveza com que entidades não identificadas são acusadas de andar a espalhar desinformação e, à má fé e com a cumplicidade, presume-se, da comunicação social (que assim é rotulada de ingénua ou igualmente vendida) enganar o público com o objectivo de o "assustar". O propósito dessas intervenções maliciosas não é clarificado, pressupondo interesses obscuros por parte de quem as leva a cabo. O governo acaba por também ser cúmplice porque permite que esses arautos da desgraça a soldo não se sabe de quem acabem por ser as únicas vozes no "debate e esclarecimento" do país. Lamentavelmente ficamos sem conhecer quais poderão ser os fins últimos de tais actividades ou a quem poderão aproveitar. Quem as leva a cabo, por outro lado, é óbvio: considerando que processos de intenção equivalentes me foram já endereçados em público por Pedro Fevereiro, parece-me razoável concluir que eu própria e certamente outros ambientalistas estão a ser directamente visados. Pessoalmente não me revejo em absolutamente nada do que me é imputado e desafio o meu colega a apresentar publicamente qualquer fundamentação para tão graves acusações. Gostaria igualmente de ver esclarecido se não estaremos perante uma calúnia mal-encapotada motivada por despeito ou, pior ainda, pelo estrebuchar (individual, que não da classe) de quem sente que a sua actividade profissional está debaixo de escrutínio por parte do público que, através dos seus impostos, para ela contribui. Lá terá as suas razões para o receio.

À pergunta de remate final do texto em questão, contemplando a ausência de interesse por parte do Ministério do Ambiente em ouvir a Ordem dos Biólogos sobre a problemática em apreço, e sem pretender esvaziar uma posição institucional do orgão em causa, permito-me encerrar com a resposta possível: porque o Ministério do Ambiente nunca realizou debates nem escolheu interlocutores e como tal, ao contrário do que é implicado, não discriminou contra a Ordem, porque não é o Ministério do Ambiente que tem de se pronunciar sobre comercializações, porque o Ministério do Ambiente nunca se recusou a ouvir quem lhe tenha pedido reunião e porque, tal como ficou visível, ao ouvir a Ordem se incorre na dificuldade de conseguir ouvir apenas o seu digníssimo Bastonário.

(1) Hammond B. et al. (1996) The feeding value of soybeans fed to rats, chickens, catfish and dairy cattle is not altered by genetic incorporation of glyphosate tolerance. Journal of Nutrition 1126 (3): 717-26.

Margarida Silva, Bióloga Professora Auxiliar Escola Superior de Biotecnologia Universidade Católica Portuguesa msilva@esb.ucp.pt


PÚBLICO

Quarta-feira, 26 de Janeiro de 2000

OPINIÃO: As "Nossas" Decisões

Por PEDRO FEVEREIRO, Bastonário da Ordem dos Biólogos

Não sou antitransgénicos. Aliás, esclarece-se que o problema não se coloca desta forma: o problema é apenas quanto às plantas transgénicas, pois é sabido que um bom número de medicamentos é actualmente produzido por organismos transgénicos, sem qualquer reprovação. Assim, não sou anti-plantas transgénicas (PT). Não acredito na nocividade dos produtos alimentares transgénicos para a saúde humana e tenho grandes dúvidas de que, se for feita uma análise racional dos custos/benefícios para o ambiente da utilização das PT (mesmo em termos de manutenção da biodiversidade), a sua utilização seja mais perigosa do que as actuais práticas agrícolas. Para além disto, é totalmente mentira que tenham existido casos de morte por ingestão de produtos provenientes de PT, e não se vislumbra, nos produtos comercializados, o risco da acumulação de substâncias que causem alergias.

Sou completamente a favor da exploração racional desta tecnologia para o benefício da espécie humana e da sua relação com o ambiente. Como exemplos, refira-se o arroz transgénico capaz de sintetizar a pró-vitamina A (cuja carência afecta na Ásia milhares de crianças por ano, conduzindo-as à cegueira); ou a banana transgénica que acumula uma vacina, permitindo aumentar a sua estabilidade e a vacinação indolor; ou ainda a manutenção da produção de papaia, por introdução da resistência a um vírus, no Havai.

Finalmente sou a favor de uma avaliação cuidadosa da introdução de PT no meio ambiente. Esta avaliação deve ser feita caso a caso e no ecossistema em que as plantas vão ser introduzidas.

Ao suspender a autorização do cultivo do milho transgénico, o Governo português tomou uma decisão política interessante: satisfez as exigências dos produtores de milho, que preocupados com a possível queda do preço, devido à má publicidade e às possíveis restrições de comercialização internacional, lhe exigiram esta decisão, e calou os "ambientalistas" dando como justificação para a decisão "prevenir riscos para o ambiente". Ao mesmo tempo arejou a sua imagem neste assunto, preparando a Presidência Europeia, numa perspectiva de consenso com a maioria dos países da União [consenso de resto já obtido em Julho do ano passado, em Conselho de Ministros Europeu, onde só o Reino Unido e Portugal não apresentaram qualquer declaração política sobre a matéria (?)].

Ficam no ar, no entanto uma série de perguntas incómodas sobre este assunto que vale a pena formular: Por que é que, se foi em nome dos "riscos para o ambiente", não foi o Ministério do Ambiente a tomar esta iniciativa? Como vai ser esta suspensão verificada? Quais são os mecanismos no terreno existentes em Portugal que condicionem o cultivo de PT? Quem foram os técnicos e investigadores com experiência ouvidos para permitir uma tomada de decisão, técnica e cientificamente fundamentada? Que medidas vão ser tomadas em Portugal para esclarecer as dúvidas relativamente aos "riscos para o ambiente" da utilização destas variedades? Qual a política que os Ministérios do Ambiente, da Saúde, da Ciência e Tecnologia e da Agricultura nesta matéria? Por que é que as empresas que comercializam estes produtos não se queixaram desta decisão?

Independentemente da oportunidade política da decisão, esta é tomada como corolário de um conjunto de equívocos e de cruzamento de interesses que pouco tem a ver com a ciência e a qualidade efectiva dos produtos que estão a ser comercializados. É ainda chocante a facilidade com que foi dada voz a pessoas que divulgam mensagens erradas, fantasiosas e por vezes com a intenção deliberada de enganar e de assustar o público em geral. É este o tipo de debate e esclarecimento que se pretende para o nosso país?

Uma pergunta final: por que é que o Ministério do Ambiente não quis, até agora, ouvir a Ordem dos Biólogos sobre este assunto, inclusive num momento em que se ultimam os preparativos de uma decisão sobre Biosegurança?

Pedro Fevereiro, Bastonário da Ordem dos Biólogos