Desde que optei pela vida individual de automobilista, comecei a sentir que a minha vida é condicionada, numa percentagem quanto a mim exagerada, pelos órgãos de comunicação social, que me impõem uma realidade.
Ao levantar-me a televisão informa-me o que vai no Mundo, e eu acredito. Saio de casa, por mim passam algumas pessoas que acho serem meus vizinhos, não me ligam nenhuma. Ainda antes de ligar o carro, já a rádio está a tocar, obviamente que passo para uma estação que me diga como está o trânsito, como vai estar o tempo, e pronto eu acredito. Ao passar pela primeira papelaria, paro o carro, saio à pressa porque o Polícia pode passar a multa, olho para as primeiras páginas dos jornais, compro o meu preferido e volto ao automóvel.
Chego ao trabalho deprimido, com o Mundo, guerras, atentados, mais uma doença que se descobre, mais um alimento que faz mal, vivo no caos. Desesperado com o mundo em que vivo, nemvontade tenho de ser simpático, ou olhar com a atenção que a colega merece.
No final do dia volto a casa, compro então uma revista daquelas cor-de-rosa, vou para vasa, vejo televisão, mais notícias do mundo, mais desgraças, o mundo continua num caos, e já cansado, folheio a revista sonhando com um mundo que acho que não existe, mas que me conforta.
Um destes dias, deixei o carro em casa, optei por viajar de autocarro, não ouvi as notícias, reparei no olhar simpático da moça que me vendeu o bilhete, e enquanto bebia o café no bar da estação, dei comigo a olhar para uma mulher bonita, que me olhou, sorriu, e eu fiquei bem disposto.
Na porta do autocarro, um senhor pediu-me o bilhete, e à minha pergunta, "onde é o meu lugar", respondeu, "sente-se onde quiser que hoje há muitos lugares", dei uma gargalhada e disse para os meus botões, estou em Portugal.
Fui sentar-me na parte traseira do autocarro, assim poderia ver quem entrava e com um pouco de sorte a tal mulher bonita poderia ser minha companheira de viagem. Entraram homens e mulheres, a maioria de uma certa idade e que foi ocupar os bancos da frente: - senta-te aqui, que lá à frente enjoas, dizia uma senhora enquanto limpava o casaco do seu homem. Entraram em seguida jovens, que numa algazarra que me irritou se sentaram a meio do autocarro, eram estudantes. Duas senhoras de cabelos brancos entraram em seguida. O sotaque meio português meio espanhol indiciava que seriam representantes de muitos e muitos espanhóis que no decorrer da guerra civil se refugiaram em Portugal.
Já a camioneta estava quase em marcha, quando entraram cinco homens, que vieram ocupar os lugares de trás, vinham com aquele olhar vago e triste, com os corpos cansados, falavam numa língua etsranha, um deles guardou o lugar da janela, vi mais tarde que era para um companheiro, que só pela cor de pele fazia a diferença dos outros. Mal o motor começou a trabalhar, colocaram uns fones nas orelhas e rapidamente adormeceram. Uma estranha sensação apoderou-se de mim, aqueles olhares não eram estranhos para mim, aquela tristeza era-me familiar. Todos nós tivemos pelo menos um familiar que um dia teve de sair da nossa terra para procurar em países estranhos o que aqui não havia.
A minha tristeza foi apagada pela alegria de viver numa época em que nós portugueses podemos proporcionar a outros a possibilidade de melhorar a sua vida e porque não contribuir para desenvolver o seu país, retribuindo assim o seu papel decisivo para o desenvolvimento de Portugal.
Naquele autocarro, estava Portugal, aquela era a realidade, uma realidade onde cabe o sofrimento de quem tem de ir à cidade grande para ter um médico, a realidade de quem tem esperança no futuro, a realidade do país solidário que nós somos, e a realidade dos novos tempos e das novas pessoas com quem temos de partilhar este país.
Quando nesse dia cheguei ao trabalho, apeteceu-me ir beber café (mais um) com os meus companheiros de labuta, apeteceu-me discutir o futuro da nossa terra, estava com grande vontade de produzir, afinal se trabalhar bem posso vir a ter um perfume que me encanta, afinal este país é muito mais que o cinzento com que nos querem pintar.
E no meio deste grande dia, senti o orgulho de ser português. Temos hoje mais um feito a juntar a tantos no passado, um feito que vai ficar para sempre, uma palavra, uma pequena palavra que dizíamos ser só portuguesa, e que hoje fala russo, ucraniano, romeno, crioulo e tantas e tantas línguas e dialectos, a saudade já não está só no sangue lusitano, a saudade é cada vez mais internacional, mas é nossa... sempre.
Mário Simões
(colaborador regular nas páginas
de desporto do Diário do Sul)