No filme "Boa noite, e boa sorte", é-nos dado acesso aos bastidores do confronto entre a redacção da televisão norte-americana CBS e o "senador júnior" MacCarthy, o tal da caça às bruxas nos anos 50. Para além de todos os paralelismos e alusões que se podem encontrar nesta narrativa, ela é principalmente a crónica da derrota que este confronto representou para a televisão como instrumento ao serviço das virtudes democráticas. Nesses tempos pioneiros, esta contenda revelou como o sistema de patrocínio em troca de publicidade comercial se transforma numa forma de pressionar para que a televisão, com todo o seu potencial de condicionamento, se reduza a um instrumento de promoção do consumo, e não há coisa mais indigesta para tal fim que consciências esclarecidas.
Vem este prelúdio a propósito do que nós vemos acontecer com o ensino universitário, de que o "paradigma" de Bolonha não passa afinal de mais um meio para um só e mesmo fim: esvaziar esse ensino do que pode ter de crítico e criador. Pode não ser aparente para a maior parte dos actores deste processo, mas o esquema que se está a desenhar vai transformar as licenciaturas em bacharelatos, que não passam dum passo intermédio a que não é reconhecida qualificação profissional. Não é mais do que nivelar todos os sistemas aos de países que têm já como norma dar um diploma ao fim de 3 anos. Se há por cá muito quem se iluda com o primeiro grau do novo paradigma chamar-se licenciatura, mais tarde ou mais cedo vai ficar patente é como uma cabeça de alho chocho: por fora pode parecer o mesmo, mas por dentro está encolhidinho e tem pouca serventia.
Este novo paradigma vem dar continuidade à evolução do consumo entre os estudantes de licenciatura, que cada vez mais é a verdadeira aprendizagem dos estudantes universitários nos primeiros anos. A massificação nos 3 anos da licenciatura "chocha" (descontados os anos a marcar passo) traduz-se economicamente na massificação dum certo padrão de consumo. Os docentes bem se podem sentir como os jornalistas da televisão: participam numa grande máquina de promoção do consumo. E não é só o efeito económico que se obtém, a vivência universitária também serve para condicionar as consciências dos estudantes.
Quanto à formação superior, só se realiza verdadeiramente nos dois ciclos que se seguem ao primeiro grau universitário, onde a maior parte já não entra, não só porque estão satisfeitos com a ideia (não passa disso) de "serem" engenheiros ou doutores, mas também porque os preços serão ainda mais elitizantes — a não ser nas carreiras que continuarão a ser financiadas pelo Estado, e será interessante ver quais serão...
A verdadeira qualificação profissional torna-se assim, como antigamente, um privilégio. Não faço juízos de valor sobre esta constatação, apenas assinalo-a no âmbito de compreender-se o que é o papel social reservado para o nosso ensino universitário no futuro.