Carta de Teruel

A democracia é um conceito, e uma aspiração, do mais precioso que há na organização das sociedades para os assuntos de interesse comum. Poder do povo, representado por políticos empenhados em servir da melhor maneira, isto é, representando os interesses de quem confia neles; possibilidade de escolha entre diferentes representantes, mas respeito pela maioria expressa e, através da crítica construtiva, aperfeiçoamento daquilo que ficou conhecido com o nome de política.

Pois é, todos sabemos como nada disto é cumprido. O único poder que ainda é do povo, o de substituir uns políticos por outros, está condicionado: os políticos encontram-se aquadrilhados em confrarias chamadas partidos políticos, que não representam ninguém e apenas devem fidelidade a si mesmos. O despojamento da democracia vai ao ponto de a abstenção não ser mais que uma estatística, nunca valendo -- que eu saiba, em lado nenhum -- como rejeição do sistema partidário. Um partido político fora do poder apenas visa, por meios bélicos não-armados, (re)conquistar esse poder, por isso no essencial não participa construtivamente na política.

A única coisa gira das campanhas eleitorais é ver os candidatos fingirem que se interessam pela situação do povo, fingirem que gostam de dar beijinhos às vendedeiras dos mercados, fingirem que gostam daquelas crianças, fingirem que só não andam mais pelo chamado país real porque não têm tempo... no resto do tempo. Convenhamos que, mesmo para políticos, se torna duro! Sobretudo porque nem sempre compensa: é como nas entrevistas para emprego -- quem "fica" há-de aproveitar como pode, quem "não fica" há-de encontrar outra coisa, tem de voltar a tentar. Se um mais ou menos subtil traçar de perna deu ou não resultado, deixa de ter relevância depois da escolha estar feita.

De quem é a culpa? Sem dúvida que de "todos", mas como? Em primeiro lugar, a docilidade do votante. Os eleitores desbaratam o seu eventual poder de decisão porque, em grande maioria, se habituaram a pôr uma cruz junto ao rótulo do costume, como quem pega na mesma marca de detergente da prateleira dum supermercado sem reparar se a fórmula utilizada mudou ou não. Neste hábito de votarem em rótulos, os eleitores que o fazem são mais irresponsáveis do que na abstenção em massa que tanto preocupa o "gentilíssimo" presidente da Comissão Nacional de Eleições.

Os "meios de comunicação social" dão a sua ajuda: os chamados "factos políticos" resumem-se essencialmente àquilo que possa fazer "cair" um político ou, melhor até, vários. Iludem o povo com a noção que o seu interesse deve centrar-se em questões de poleiro (esse é o interesse dos políticos e dos partidos apenas) e com as supostas crises que levam a colocarem-se essas questões. Mais ainda, põem-se com "entrevistas" de rua que infalivelmente patenteiam um desconcerto de opiniões, algumas delas bem imbecis. Ou seja, "mostram" que o povo "não sabe" dar opinião.

Pretensamente refugiado no reduto da sua casa após um dia de trabalho frustrante, pretensamente protegido por um ordenado e por uma promessa de reforma, o cidadão quer só não ter de lembrar-se porque é que não tem um trabalho, e talvez um ordenado, melhor, nem que o dinheiro que desconta é mal utilizado pelos políticos, de tal maneira que daqui a umas décadas nem se vai saber se haverá a reforma que hoje lhe prometem. O círculo da alienação completa-se com o premir do botão da TV, onde os bobos do regime asseguram uma paupérrima distracção. Se realmente lhe importasse a sua cidadania, então haveria discussão, e queria ver que resultado dariam essas entrevistas de rua -- então o rótulo não chegava, e queria ver se os políticos se atreviam a vir à rua com os seus fingimentos!

Regidos pela lógica de um Estado que já não é o que era -- progressivamente desautorizado por "Bruxelas" e pelos financeiros -- os partidos políticos, cada vez mais, só preparam e promovem as nulidades de carácter que lhes assegurem uma completa submissão aos interesses, próprios e envolventes, que realmente contam. Podem vir-me com as melhores recomendações de inteligência sobre este ou aquele candidato: sei que pertence a um partido que o apoia para tomar o que resta do poder num Estado falido (financeiramente e doutras maneiras). A transferência das regras de poder para os partidos, resultado quase universal das grandes contendas políticas do século XX, significa por isso o encobrimento por rótulos, brandidos por carcaças insufladas, de obscuras maquinarias de governo dos recursos globais. Mal-empregadas inteligências, mal-empregados recursos, mal-empregados votos!

Se para alguns os Estados Unidos são a actual "luz do Mundo", reflicta-se no embuste da frase "um governo do povo, pelo povo e para o povo" quando se viu eles aceitarem a mentira confessa do seu presidente como um mal menor. Naquela altura, se o senado tivesse deposto o mentiroso, teria emperrado irremediavelmente uma operação militar que se avizinhava e já tinha sido estrategicamente viabilizada pela operação financeira que deu cabo do que restava da economia da Rússia, em onda de choque iniciada nos afinal frágeis tigres asiáticos. É evidente que estamos demasiado longe do que devia ser democracia, mas com a NBA de novo a andar, o novo capítulo da Guerra das Estrelas e outras diversões irrelevantes, os eleitores dos EUA ficam contentes por não terem de lembrar-se... luz de fogo fátuo?

Em teoria, votar em branco (ou nulo) seria a solução para esse jogo de batota que são as "eleições livres". Na prática, passaria por mudarem-se as prioridades das gentes, que já foram pão, depois higiene, depois instrução, depois casa e carro, e agora parece serem privacidade e segurança. Disse-me uma pessoa de conotação PC, face à posição anti-eleitoralista dos anarquistas, que o anarquismo estava desactualizado. Sim, Lenine e depois Estaline promoveram a formação de partidos em todo o mundo, não para participarem em eleições, mas para absorverem politicamente os movimentos anarquistas. Se o conseguiram em grande parte, não desactualizaram o anarquismo, pois a extorsão do poder e a correspondente submissão são questões de sempre que só se vê os anarquistas colocarem no centro das preocupações. A prioridade da generalidade dos cidadãos nunca foi maioritariamente essa, oxalá o seja um dia.

21-8-99

Paulo de Oliveira