A vacina decepcionante


No dia 24 de Fevereiro [de 2003] foi oficialmente anunciado o resultado do teste clínico à vacina para os vírus causadores do SIDA, desenvolvida pela empresa californiana Vaxgen. No dia seguinte, o assunto chegou ao jornal da noite da SIC, onde pela leitura do imperturbável R. G. de C. ficámos a saber que essa vacina só dava alguma protecção aos afroamericanos e aos asiáticos, mas não aos brancos e hispânicos. Mais ainda, que a aprovação da dita vacina pela entidade responsável (F.D.A.) é improvável, dado que não há memória de tal ser concedido com base nos resultados em "minorias".

Este rol de barbaridades emanou do próprio comunicado da Vaxgen à imprensa, e foi literalmente repetido com uma candura de quem não imagina sequer o que as palavras proferidas implicam: a distinção entre brancos e hispânicos, de reveladoras ressonâncias arianistas, é de uso corrente nos E.U.A., mas a genética não engana, sendo a mais que provável determinante da semelhança entre os dois "grupos" neste teste. No entanto, e apesar das origens europeias de ambos os "grupos", pessoas conhecidas nos States como Julio Iglesias, Reynaldo Arenas, Juan Luís Guerra ou Andy Garcia não pertencem aos brancos aos olhos dos que se consideram como tal nesse país. Mas trata-se de uma sociedade diferente da nossa, podemos discordar mas não podemos julgar; já a tradução literal para o noticiário nacional leva a perguntar: não houve ninguém naquela redacção que soubesse adaptar o texto para uso nacional, nem o próprio pivot soube ver o lapso iminente durante a sua leitura prévia do serviço noticioso? Ou teremos que concluir que a informação que consumimos é para ser o mais possível semelhante àquela que condiciona os cidadãos do país mais poderoso da Terra, mesmo sabendo que nós somos hispânicos afinal?

A análise dos resultados deste teste ainda não está completa, mas como mais de 80% dos indivíduos testados eram brancos (não-hispânicos...), talvez a pensar no mercado-alvo que poderia ser melhor-pagante, globalmente os resultados decepcionaram a Vaxgen. E como os grupos mais beneficiados são "minorias" (que pagam impostos como os outros todos, talvez menos per capita, é certo), a vacina não deverá ser aprovada. E não se pense que vai haver grandes hesitações sobre esta discriminação (povo americano, como sofres!). Mas Deus (ou a genética, se preferirem) escreve direito por linhas tortas, desde que a Vaxgen se lembre de rentabilizar os seus esforços de investigação fornecendo esta vacina, a preço razoável, aos muitos milhões que na África Bantu (geneticamente próximos dos "afroamericanos") vivem sob a ameaça da infecção com os vírus causadores do SIDA. Aliás, era neles que deviam ter pensado desde o princípio, se virmos onde é que estas infecções assumem as proporções mais medonhas em todo o Mundo.

Paulo de Oliveira