ANARQUISMO XXI

Nos concursos públicos, as regras pretendem levar a uma racionalização dos recursos disponíveis, leia-se "poupar dinheiro". E isso só pode dar asneira (já não falo dos "arranjos" que se fazem para ganhar algum por fora), pois fixar um objectivo de cada vez não pode dar bons resultados — eu dou um exemplo: a comida servida aos pacientes internados nos hospitais é fornecida pela empresa que ganhou o mais recente concurso, leia-se "a que saía mais barato". Não terá isso que ver com a falta de apetite duns e a resignação dos restantes?

Na democracia de estado, dita representativa, as eleições funcionam como os concursos públicos — ganham os que saem mais barato. Entre promessas duns e doutros, e a vontade de ficar-se melhor servido, assim vão soprando os ventos. Sem dúvida que o sistema tem a sua vantagem: de vez em quando mudam de ementa. Mas o que permanece, quer sejam uns ou outros a servi-la, é aquele mau ar com que se encara a "comida de hospital", e que não ajuda a sentir melhoras!

As promessas de suplantar a concorrência nas propostas apresentadas a concurso cumprem-se no próprio momento da celebração do contrato: de facto, é nesse momento que se comprova que quem ganhou suplantou os outros. "Já está". De todo o restante conteúdo de promessas, quem contrata não quer saber senão duma: que cumpram o orçamento estabelecido. A comida não presta? Vem aí a fiscalização? A essa, dá-se-lhe sempre a volta: vejam à pressa, verifiquem no contrato, e se querem melhor vai sair mais caro, até ao próximo concurso.

Em 14 de Março de 2004 a Espanha mudou de fornecedor. Novas fardas, nova prosápia, outra cozinha, o mesmo desgosto. Era o mais barato. A democracia representativa fica-se por isto.

Entretanto, há um estado que se propõe levar essa democracia a todos. Ele é ao Afeganistão, ele é ao Iraque, ele será aonde tenha contas a ajustar. Mas essas contas o que são, se aquilo que trazem a esses pobres países é a grande oportunidade de serem livres, leia-se decidirem quem fornece a comida? Para quê repisar sobre a imposição dos ingredientes baratuchos que esse estado considera indispensáveis para o paladar desses povos? Até porque para eles esta transição não é fácil, coitados, ainda estão longe de darem a mesma importância que nesse estado dão ao Dólar Todo-Poderoso — mas Roma também romanizou, e os califas também islamizaram, será inexorável, pois o espírito humano vira-se para o alto, e o Dólar é o que agora sobe mais alto em todo o lado.

O anarquismo não vai em eleições. E será que se come? Há quem insista em considerá-lo indefinível, inatingível, insano. Não sai barato de certeza! Mas está sempre presente, pois o espírito humano também se vira para o indefinível, o inatingível, o insano. O anarquismo floresceu no século XIX, deu alguns frutos no século XX, e deixou sementes que continuam a romper. Assim foi no dia 13 de Março de 2004, quando um punhado em Madrid veio junto à sede do aznoPP, e como era para chamá-lo de mentiroso atraíram milhares em poucas horas, com ecos monumentais em Barcelona e Bilbau. Foi como o doente internado que por uma vez recusou a comida do hospital e arranjou maneira de comer do que gostava. E que paz, que alegria serena, isso lhe deu!

Paulo de Oliveira