Estava-se em 1999 e os ministros da Educação/Ensino Superior "dos 15" (o nosso era Marçal Grilo) quiseram com esta declaração aplicar a lógica comunitária ao Ensino Superior, guiada por princípios como os da qualificação, da equiparação, da mobilidade, da integração. E, não esquecendo, o princípio da competição (interna e externa).
E como? Estabelecendo um denominador comum a todas as universidades de toda a União Europeia. No essencial, trata-se de normalizar a formação superior num só modelo geral, incentivando-se em todos a integração de semestres, módulos, visitas laboratoriais, etc., a realizar noutras instituições de ensino superior europeias.
Ambiciosa e radical em muitos aspectos, esta reforma já vinha pré-figurada em vários diplomas, programas ou práticas informais. Por exemplo, desde inícios dos anos 90 que se idealizou um diploma europeu para os biólogos, em que os mesmos 8 anos do actual paradigma (ver adiante) estavam subdivididos em 3 "ciclos", dos quais o último era preenchido por um número mínimo de anos de exercício da profissão; o programa Sócrates (ainda em vigor) concede bolsas para que estudantes, pré-licenciados ou licenciados, realizem parte da sua formação em instituições de ensino doutros países da União Europeia; e é prática corrente, no decurso duma investigação para mestrado ou doutoramento, frequentarem-se cursos, laboratórios ou bibliotecas doutras instituições. Mas tudo se tem organizado ad-hoc (protocolos entre as instituições) ou sectorialmente — a declaração de Bolonha visa dar um horizonte mais generalizado, e uma estrutura jurídica a condizer. Em troca, as universidades (e, se entendo bem, institutos politécnicos) têm de ajustar-se ao figurino comum.
A declaração inicial concebia diversas possibilidades, e só em 2001 começa a prevalecer o paradigma de três graus, conclusão de outros tantos "ciclos", os dois primeiros abrangendo os cinco primeiros anos como a generalidade das licenciaturas actuais, e o terceiro ocupando mais três anos O segundo e o terceiro graus são herdeiros do mestrado e do doutoramento, respectivamente. As diferenças que incidem neles são, no essencial, duas: o facto de, na prática, serem indispensáveis para uma qualificação profissional, mesmo que ninguém agora o queira admitir; e o seu enquadramento financeiro (quanto se paga, se há subsídios ou bolsas e quem os concede, o que num Portugal cronicamente desleixado nas políticas de Educação bem nos pode deixar apreensivos). Ambas se reflectem nas acusações que se vão ouvindo de elitização do ensino superior, mas a verdade é que não se sabe se são fundadas. Talvez o sejam, talvez.
O primeiro grau, que aparentemente é uma contracção da licenciatura para ficar em 3 ou 4 anos (segundo os casos) sem "parecer" que é um bacharelato, é onde incidem as grandes transformações, a começar por não conferir qualificação profissional alguma, mesmo que com o discurso das "competências" (ver adiante), e de "ter relevância para o mercado de trabalho europeu" (o que na prática não esclarece nada — nem compromete), se tente dar a impressão contrária. Do ponto de vista dos estudantes, o massificado primeiro ciclo vai ser apenas o passo, obrigatório, para aceder aos ciclos que realmente conferem essa qualificação; do ponto de vista dos docentes, vai ser a transposição para as instituições de ensino superior das lógicas do ano propedêutico/12º ano. Por outras palavras, em lugar da aparente antecipação de 1 ou 2 anos na obtenção dum grau superior, a contracção para 3 ou 4 anos redefine o primeiro ciclo com uma fase de triagem dos candidatos às carreiras de elite.
De facto, a situação das décadas mais recentes gerou desequilíbrios, dos quais o excedente de médicos espanhóis, ou os exércitos de doutores & engenheiros empregados em tarefas onde a sua formação académica é irrelevante, são apenas dois exemplos. A dita redefinição permite assim, apenas com semântica, que se varram das estatísticas os números negros do subemprego dos licenciados, pois não têm "licença" nenhuma. As gerações formadas em muitas das licenciaturas actuais são automaticamente englobadas, e prevejo que essas só muito tarde compreendam que têm de voltar a frequentar a universidade para pelo menos completarem o segundo grau e (re)conquistarem uma qualificação profissional.
É o resultado lógico da massificação que se deu no ensino superior, ao qual por enquanto ainda resistem licenciaturas com relevância social melhor estabelecida, como sejam o Direito, as Arquitecturas, algumas Engenharias, as Medicinas, a Farmácia, algumas de Ensino. Mas mesmo essas terão de ajustar-se ao paradigma de Bolonha, por exemplo concedendo através das respectivas Ordens equivalências entre os antigos licenciados e, claro, o segundo grau. Em troca, o regime de apoio financeiro dado pelo governo ao 1º ciclo vai estender-se ao 2º nessas áreas, mas só nessas!
Como dizia o Leopardo, é preciso mudar uma ou duas coisas para que fique tudo na mesma.
Só que a envolvente não é a mesma, de todo.
São incontáveis as reuniões por essa Europa fora a tentarem enfiar o Rossio na rua da Betesga, isto é, compactar 5 anos de ensino superior, que é em quase todas as licenciaturas intenso e exigente, em 3 ou 4. Mesmo aparando as redundâncias que existem em todas, é um exercício fútil; mais valia assumir-se de vez o carácter não-qualificante do primeiro ciclo, mas como em todas as "guerras", os "generais" só sabem as regras das anteriores. Quem se antecipa com novas tácticas é que sairá a ganhar.
O paradigma de Bolonha, para iludir os docentes sobre a validade de tal exercício, formulou duas falácias: orientar para a aquisição de "competências", e transferir a ênfase do "ensino" para a "aprendizagem". Isto, porque convém salvar as aparências garantindo aos futuros licenciados (1º grau) alguma ilusão de terem a mesma qualificação em menos tempo. Visto de maneira benevolente, trata-se então de "revolucionar" a formação universitária extirpando tudo o que se considere supérfluo para as competências profissionais, e aumentar a eficiência da aprendizagem incentivando nos docentes e alunos uma cultura de acompanhamento destes por aqueles.
Basta analisar com alguma atenção esta retórica para que nos apercebamos da confusão em que se anda. A caracterização do "ensino" vigente como uma mera transmissão de conhecimentos centrada no docente, e dos alunos como meros receptáculos para esse ensino, é uma caricatura justificativa da ênfase na "aprendizagem" como conquista de conhecimentos centrada em cada estudante, onde os docentes servem como orientadores mais ou menos impessoais. A caricatura vai passando, à força de ser tantas vezes repetida, e a liberdade de interpretação sobre como realizar a nova ênfase, (des)orientada pelas mais díspares definições que irão produzir-se sobre as competências a atingir no 1º grau, não tardará a desencadear processos de avaliação e consequentes "purgas" no sistema. Como em todas as revoluções, muitos ficarão pelo caminho.
Os métodos de aprendizagem preconizados, podendo ser os mais diversos, praticamente não podem prescindir da implementação de interfaces informáticas de ensino à distância, promovidas por todo o lado como meio particularmente eficaz. Basta apenas que haja suficientes computadores e redes informáticas de suporte, e os alunos até podem nunca precisar de conhecerem pessoalmente os seus professores. Dito sem quaisquer rodeios, a mudança de ênfase substitui as aulas por explicações.
E sai mais barato, o que até se justifica pelo menor valor social que o 1º grau vai ter em comparação com a licenciatura. Ao desinvestimento em estruturas e em recursos humanos acrescenta-se a esterilização humanística do ensino universitário. A revolução já não pode morar aqui, e o gérmen da criatividade fica quando muito para os ciclos seguintes, onde a qualificação profissional se efectiva, mas entre docentes e estudantes que:
Já vai longo, este texto. Resta homenagear-se a capacidade de antecipação dos arquitectos do novo paradigma, eminências pardas que souberam harmonizar uma concepção de ensino superior com a concepção duma Europa federal, neoliberal e neoimperialista. Se se gosta desta é uma outra questão, mas como se sabe não é hábito de "Bruxelas" querer saber da nossa opinião.