As universidades e a formação científica nas escolas secundárias

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São nove as universidades em Portugal donde actualmente provêm licenciados em Biologia habilitados ao ensino nas escolas secundárias deste país; aí eles constituem o grosso dos docentes de Ciências da Natureza, Biologia e Ecologia, contando-se ainda muitos que se adaptam ao ensino de disciplinas como a Matemática, a Geografia, as Ciências do Ambiente, a Geologia, Noções Básicas de Saúde, e possivelmente outras.

Daí decorre a enorme responsabilidade desses licenciados pela qualidade da formação científica que os alunos do Ensino Secundário adquirem, e a não menor responsabilidade das universidades por, primeiro que tudo, os equipar intelectual e tecnicamente para a desempenho de tão importante missão.

A actividade do professor tem "pano para mangas", pelo que se lhe proporciona de versatilidade e riqueza criativa no cumprimento dos programas. Tudo -- o exercício da sua personalidade, a integração no grupo da respectiva disciplina (e consequente intervenção nas orientações globais, por exemplo na escolha dos livros), os recursos didácticos que explora (no que se incluem aulas práticas, debates, visitas de estudo, "slides", videocassetes, buscas bibliográficas, construção e manutenção de aquários e herbários,... ), não esquecendo a tradição de convivência que possivelmente exista na escola -- concorre para torná-la uma vivência altamente recompensadora.

Então porquê essa minimalização do exercício das funções de professor que se verifica e acentua desde há anos? Porque se sente cada professor, com os anos, a afundar na pantanosa rotina dos três períodos escolares repetindo-se ciclicamente, onde os acontecimentos relevantes acabam por se resumir às fichas de avaliação, aos problemas disciplinares, aos conselhos de turma e aos exames, e à angariarão de explicandos? Porque é que a respeitabilidade do professor se liga tanto ao receio pelas familias de eventuais "révanches" nas notas, quando em teoria era de se encontrar uma verdadeira gratidão pela obra sublime que consiga realizar? Porque, para os futuros licenciados em Biologia, a quase certeza de emprego como professor é por tudo isto uma fatalidade, senão mesmo uma traição ao seu entusiasmo inicial?

Com o decorrer dos anos, a sucessão das turmas, a repetição dos programas, as reuniões de coordenação, os recursos didácticos, a tradição na escola, acabam por se tornar banais para o professor. Seriam estes os mesmíssimos elementos que, sem essa banalização, conduziriam o serviço docente à mestria, mas a fazem, afinal, degenerar num vil automatismo, quentes vezes uma caricatura. Que ironia!

Os problemas da nossa Educação têm muito a ver com os problemas dos nossos professores. É certo que estes, numa maioria significativa, se deixam imperceptivelmente arrastar pelas circunstâncias em que se desenrola a sua actividade, levando-os ao já referido automatismo; mas cabe perguntar de que circunstâncias se trata e saber como elas poderiam ser melhoradas.

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O titulo do presente artigo refere-o à formação universitária dos professores, isto é, a um dos múltiplos aspectos em jogo na problemática colocada acima. Irei detalhá-lo a partir da formulação de quatro perguntas:

I - Que formação científica fica por dar aos futuros professores?

2 - Que abertura intelectual se lhes oferece?

3 - Que prática científica deles se exige?

4 - Que liberdade de iniciativa neles se suscita?

I - São muito significativas as lacunas da formação científica na universidade, e tomam três aspectos: primeiro, no plano curricular, o corpo docente no seu conjunto não preenche totalmente o leque de matérias que havia de ser leccionado e, estranhamente, dá reduzidas mostras de reconhecer tais lacunas ou de se preocupar em as colmatar assegurando as correspondentes cadeiras, mesmo que para isso não conte com especialistas - existem excepções a este "deixa-andar", mas o facto de a serem (às vezes bem dramaticamente) diz tudo!; segundo, é manifesta a separação ostensiva da Biologia em relação às muitas ciências ditas aplicadas que nela assentam [Veterinária, Medicina, Engenharia Biológica/Biotecnologia, Agronomia, Farmácia ... ), pelo que nem sequer se faz -- era a mínimo exigível -- uma exemplificação das questões que se investigam especificamente nesses domínios (por isso não admira serem os professores de Biologia, na sua generalidade, e -- coerentemente -- os programas da sua autoria. incapazes de satisfazer o interesse que os alunos revelem por essas áreas aplicadas); terceiro, não há uma demonstração sistemática do método científico, nem sequer o estímulo, através da avaliação, para um conhecimento aprofundado da mesmo (adiante haverá a oportunidade de se avaliar este ponto mais desenvolvidamente).

2 - Abertura intelectual? Até que ponto, com o perpetuar da vício de repetir das designações e frases feitas? É por demais frequente vê-lo reproduzir-se no Ensino Secundário, em provas orais, por exemplo, que se resumem a um encadeamento de perguntas começados por "Como se chama ... ? ", "Qual é ... ?", "Quantos(as) ... ?" e semelhantes, e este é apenas um exemplo do que imprime nos alunos um falso conceito da disciplina seja ele positivo ou negativo, mas falso. É um vício que continua a ter a sua origem na faculdade, onde ainda se dá em larga medida um certo relevo ao coleccionamento de designações e até se favorece a imitação do estilo de cada professor. Como não esperar que os professores da Secundária estejam condicionados e perpetuem esta mesma escolástica?

3 - O reconhecimento das limitações que afectam as aulas práticas durante a licenciatura - sejam eles a falta de tempo, de material de laboratório ou bibliográfica, de pessoal, de instalações, etc. - não devia subalternizar a questão essencial que é a reduzida utilidade dessas aulas práticas, pelo menos na sua grande maioria, e o seu desgarramento total. É inegável que o conhecimento sistemático do método científico se confina a quem, depois da licenciatura, permaneça integrado em investigação experimental, o que já por si é uma insuficiência; àqueles que se encontram a leccionar no Ensino Secundário, em regra excluídos dessa oportunidade, não resta senão recorrer a livros se alguma vez pretenderem realizar demonstrações do método científico às suas turmas. Ora, é improvável que isso os venha a capacitar nessa matéria de modo a serem convincentes.

É aliás alarmante o acentuado esquecimento a que as aulas práticas têm chegado no Secundária. Por isso se deve reagir, o que terá de passar, sem dúvida, por uma reforma das aulas práticas da faculdade. Com as limitações existentes? Claro! Primeiro: durante os primeiros anos da licenciatura havia que atribuir-se toda a importância ao estudo de duas vastíssimas áreas fundamentais da formação científica (onde aliás muito pouco se carece de aparato logistico ou técnica especial): a metodologia da observação (com e sem instrumentos) e a metodoiogia da organização e tratamento de dados. Segundo: substituir, nesses primeiros anos, as aulas práticas "a brincar" de uso corrente, das quais pouco ou nada "fica" e que tanto tempo ocupam a toda a gente, por um número prescrito e limitado de cursos práticos intensivos (cobrindo uma ou mais semanas a tempo inteiro) de âmbito interdisciplinar.

Como exemplos funcionais contributivos para a definição do modelo por que se iriam organizar novos cursos práticos para os primeiros anos, nada melhor que as aulas práticas de maior eficiência pedagógica, em geral aquelas que são ministradas aos anos mais adiantados em certas cadeiras de opção (que nunca contemplam os estudantes da via de ensino, diga-se de passagem...); tendo as necessárias adaptações, relacionadas com a alargamento à generalidade dos estudantes e com a orientação primordial dos cursos aqui propostas -- no sentido de uma universaíização interdisciplinar da método científico em si mesmo, com a respectiva avaliação -- seria esta a opção mais viável, aquela cujos modelos já deram provas construídos dentro das condições disponíveis.

Como passo decisivo, haveria que reconhecer sinceramente a inadequação da sistema actual, totalmente falho na preparação e motivação para os anos adiantados, tanto quanto o é na autonomização do futuro licenciado, seja ele professor do Secundário (e é isso que aqui nos trouxe) ou investigador/docente universitário: mais, seria fundamental remover as barreiras fictícias interpostas entre departamentos ou entre laboratórios; finalmente, e não menos, teria de se dar verdadeiro corpo ao plano prático da licenciatura, conferindo-lhe designadamente uma continuidade intrínseca.

4 - Os estudantes podiam ser muito mais construtivos na animação da vida da faculdade. A institucionalização de actividades científicas circunscolares, orientadas de preferência pelo corpo docente, constituindo um importante complemento ao mesmo tempo lúdico e formativo para que os estudantes tirassem o melhor partido da sua passagem pela faculdade. Visitas de estudo extracurriculares, jornadas e intercâmbios com estudantes ou professores doutra universidade, "semanas" ou "cicios" temáticos, tarefas de serviço à faculdade (nomeadamente as que teimam em não se cumprir pelas tradicionais deficiências de verba, de tempo, de pessoal, de material, etc.) não são iniciativas inéditas, seria inédito era institucionalizá-ias como já o estão a "queima das fitas", ou as festas-convívio, por exemplo; entendidos como meio de mais generalizadamente se fomentar o desenvolvimento da hábito de iniciativa, estímulo para o contacto e associação espontânea, abertura do campo da experiência e do conhecimento, estreitamente com o corpo docente e com a instituição, motivação para certas áreas de estudo... E, consequentemente, quando futuros profissionais, professores do Ensino Secundário ou não, não deixariam os hoje estudantes de querer repetir essas (e outras) iniciativas.

III

Recordaram-se aqui diversos aspectos que, especificamente a bem da formação universitária dos futuros professores do Ensino Secundário - mas não só afinal - todos desejariam ver devidamente ajustados. A propósito, é um dever dos que já são professores preocuparem-se com o que se passa nas faculdades onde estudaram, fazendo com que estas, fechadas sobre si mesmas como sempre tenderam a encontrar-se, se sintam na necessidade de rever os seus processos. Todos os saídos das respectivas faculdades com um diploma de licenciatura deveriam a elas continuar assiduamente ligados, constituindo um canal de "feed-back", alimentado pela sua experiência profissional, interveniente no contínuo ajustamento do ensino universitário às necessidades reais sempre em mutação. Este direito de intervenção é também um dever para com as faculdades, que por certo não deixariam de aspirar à contra-partida lógica para os seus esforços auto-renovadores, isto é, a uma melhor motivação e preparação científica dos "caloiros" em geral (fruto dum Ensino Secundário cada vez mais adequado), mais aptos a oferecer rendimento e dotados dum mais rico e estimulmador sentido crítico.

Tudo isto daria muito que fazer, não é? Mas quem, no fundo, perde por assim não ser é Portugal, somos todos. Ou não estivesse tudo ligado. Só faltaria saber quantos gramas nos pesa a consciência.

Escrito em Setembro de 1987