Título: Porque se ensina Evolução nas escolas
 

Os criacionistas, repudiando o conceito biológico da espécie humana segundo o qual esta em nada escapa às leis comuns a todo o Mundo Vivo têm-se manifestado muito activamente com o intuito de lançar a dúvida sobre certas conquistas do conhecimento, nomeadamente no domínio da Biologia, e mesmo sobre a validade dos métodos da Ciência em geral.
 

É curioso notar o facto de tal corrente, de inspiração religiosa ou humanista, não receber o apoio aberto da Igreja Católica, a qual aprendeu a reconhecer, desde a experiência com Galileu, o erro de tentar abafar os argumentos científicos. Que interesses servem os criacionistas? Em minha opinião, certamente os mesmos que, apoiando-se na ignorância, se podem tornar uma ameaça às sociedades tolerantes; as suas afirmações são pois motivo mais que suficiente para a Ciência se envolver num debate: não pelo mérito dos seus argumentos - falhos de substância ou construtividade - mas pelo silêncio, de quem é acusado, parecer suspeito aos olhos duma opinião pública não esclarecida.
 

A Evolução não é um dogma
 

A aquisição do conceito de mutabilidade das espécies, e do papel gerador da diversidade no Mundo Vivo que desempenha, não é algum capricho ou teimosia dos cientistas. Estes, sendo por sinal gente muito difícil de convencer, têm acima de tudo uma grande virtude: não são dogmáticos! Uma teoria que lhes seja apresentada com argumentos lógicos e bem fundamentados merece sempre a sua atenção; se essa teoria lhes conferir o melhor quadro conhecido para o esclarecimento de certos problemas, acabarão mesmo por adoptá-la, até que outra apareça, nas mesmas condições, que lhes permita aperfeiçoar esse esclarecimento.
 

Por outro lado, é falso que os cientistas se dividam entre teorias da Evolução contraditórias. Possuem uma só, que herdaram da discussão sobre a plausibilidade da selecção natural, o primeiro mecanismo para o processo evolutivo proposto num artigo conjunto de Darwin e Wallace em 1858. A partir daí, uma vez ultrapassada a turbulência de tal discussão, o trabalho dos cientistas concentra-se no seu enriquecimento, pela descoberta de outros mecanismos evolutívos, complementares à selecção natural. A discussão nesta área versa hoje, essencialmente, o papel relativo desses mecanismos nos processos evolutivos pontuais em que se possam conjugar. A questão do "evolucionismo" encontra-se ultrapassada, pois ascendeu ao estatuto de teoria -- teoria da Evolução -- e é como tal que constitui um dos pilares fundamentais da Biologia.
 

É a Ciência que avança e o dogma que recua: colocar a problemática da Evolução no domínio dos dogmas é meramente um ardil para a fazer recuar.
 

A teoria da Evolução nasce dos factos e adapta-se a eles
 

Mesmo o criacionista mais honestamente zeloso pelo rigor cai na retórica descabida, não talvez por má-fe, mas por confusões criadas supostamente pelas deturpações tantas vezes feitas, por simplismo, em obras de divulgação que praticamente nada têm a haver com os círculos realmente científicos mas, infelizmente, conhecem grande expansão. Impõe-se por isso a reposição das coisas no seu lugar.
 

Antes de mais, a teoria da Evolução constrói-se, como aliás qualquer teoria cientificamente válida, sobre o objectivo; ela nasce da observação dos factos da Natureza. Trata-se de um conjunto de pressupostos, de um esquema mental centrado no conceito de mutabilidade das espécies, que visa explicar os dados que se vão obtendo: não faz sentido, portanto, exigir a sua demonstração.
 

Para concretizar isso vou recorrer ao seguinte exemplo: há 200 milhões de anos, numa altura em que os dinossáurios se encontravam em expansão e dominavam os ambientes terrestres, já havia mamíferos mas, ao contrário do panorama actual -- que inclui, para além do Homem, animais como o coelho, o golfinho, o cavalo, a girafa, o cão, o rato, o gorila, o elefante, a foca ou o morcego - apenas se pôde detectar, no registo fóssil dessa época, a de uns minúsculos insectívoros (animais aparentados com a toupeira actual). 135 milhões de anos depois, porém, com os dinossáurios já em franco declínio, começam a surgir, a par dos mamíferos primitivos, outras espécies apresentando como eles pelagem e outros caracteres comuns, mas com adaptações novas, estas constituindo indícios da adopção de hábitos completamente diferentes dos daqueles insectívoros. Em tempos mais recentes vai-se assistindo a uma sucessão de cenários que parecem progredir para o que presentemente povoa a Terra, cada um apresentando espécies que parecem substituir outras semelhantes que as antecederam.
 

Como explicar tudo isto?
 

Na perspectiva da teoria da Evolução, os mamíferos primitivos, debaixo do domínio dos dinossáurios, tinham de se resumir ao discreto papel daqueles insectívoros; só com o declínio desses répteis se terá retirado tal jugo, abrindo espaços naturais a serem explorados por novas espécies que os reocupassem; estas novas espécies resultariam da progressiva modificação, por conjugação de mecanismos evolutivos, que incluiriam os que a Ciência actualmente conhece, de populações pré-existentes. A "corrida" aos espaços ecológicos deixados vagos pelos dinossáurios foi ganha pelos mamíferos em vários campos, o que justifica o domínio que hoje exercem sobre os ecossistemas naturais.
 

A credibilidade da teoria da Evolução é conferida pelo conhecimento de mecanismos com incidência genética cujos efeitos se podem prolongar e até intensificar mutuamente no decurso das gerações -- como a selecção natural, o efeito das migrações, a deriva génica, as mutações, etc., e estes, sim, são demonstráveis, na teoria e na prática.
 

Ela é ainda reforçada pelo facto de, a par das transformações que admite ocorrerem, se conservarem intactos certos elos de continuidade -- de que são excelentes exemplos a incidência de pelagem e do aleitamento no primeiro período pós-natal em todos os mamíferos -- que indiciam a derivação das novas espécies, por modificação de populações antes existentes. Esta continuidade entre as espécies, corolário do preceito da sua mutabilidade, permite, por outro lado, compreender a realidade das árvores filogenéticas, pois com o seu traçado estas tentam reflectir o percurso da História Natural.
 

A extrapolação para a espécie humana é legítima
 

Até agora não se fez referência explícita à espécie humana. A teoria da Evolução foi feita para o Mundo Vivo em geral e os mais importantes dados concretos que a validam vêm de muitas espécies e situações diferentes. Para os cientistas, reconhecida que é a unidade do Mundo Vivo na estrutura, na função e na reprodução, é concebível extrapolar muitas dessas observações sem forçar a sua confirmação caso a caso. Muitos dos progressos científicos sobre o Homem, aos quais aliás devemos aplicações extraordinárias (como no caso da Medicina) se baseiam em tais extrapolações: é sabido que a utilização de indivíduos da nossa espécie em observações de carácter científico, experimentais ou não, tem limitações técnicas e éticas implacáveis, daí o recurso à extrapolação, perfeitamente legítimo dentro de certas regras e quando avalizado por uma ampla discussão nos círculos científicos competentes. São estes círculos os primeiros e mais duros críticos, à espreita da eventualidade de um resultado ou interpretação viciada: não aceitam uma proposta qualquer.
 

Não existindo qualquer argumento científico que exceptue a aplicação de tal método à espécie humana, os cientistas não hesitam em servir-se do registo fóssil de populações humanas do passado e da observação directa das actuais para 1º confirmar a aplicabilidade à nossa espécie de mecanismos evolutivos reconhecidos noutras espécies, 2º colher dados sobre a linha filogenética que terá conduzido à forma actual de que fazemos parte.
 

Se os cientistas não dão ouvidos aos criacioniostas, é porque estes nunca souberam apresentar uma teoria que por mera hipótese suplantasse a da Evolução. Mesmo assim há que alertar para o facto de terem marcado pontos muito importantes, como o silenciamento da teoria da Evolução em muitos estabelecimentos de ensino, impondo deste modo as suas posições na prática. Será que isso é justo?
 


Nota: em 7 de Março de 1987, a propósito da publicação em Português do livro "O polegar do Panda" de Stephen Jay Gould, Gradiva, apareceu no Expresso uma carta ao director intitulada "O Panda sem polegar ou as fraudes da Ciência". Este artigo foi enviado em 2 de Abril como resposta, mas não foi publicado, talvez porque a crise dos deputados que foram à Estónia o inviabilizasse, nunca o saberei...