Sobre o Homo floresiensis

Estudei um pouco a questão (recomendo, se ainda disponíveis, os endereços de Pharyngula, da revista Nature e dum jornalista científico) e não vejo nada de paradoxal nas características dessa descoberta, nem na sua datação; mas lá está, para isso é preciso ter uma base de conhecimentos sobre Evolução que poucos têm — e ainda menos não deturpam.

O parentesco mais próximo ao Homem das Flores é com o grupo dos Homo erectus, mais coisa menos coisa (por exemplo o Homem de Java, que vivia ali ao lado); e isso implica que divergiram da espécie humana actual há muito tempo, na ordem das centenas de milhar de anos (alguns diriam 2 milhões de anos, enfim, não estou tão certo disso, mas o que interessa é que é há muito mais de 20000 anos). Ora bem: qualquer população de organismos vivos tende a auto-perpetuar-se, desde que para isso encontre as condições de sobrevivência — por isso ainda hoje se encontram "fósseis vivos" que, na aparência, se assemelham a formas de vida com muitos milhões de anos, caso dos lírios do mar, da Ginkgo biloba, das baratas... Por isso não é de admirar que, esta população de Homo erectus, isolados de qualquer contacto na ilha das Flores, conseguissem sobreviver até muito mais tarde que os seus coevos de origem.

Diz a Teoria da Evolução que o isolamento entre populações propicia à diferenciação acelerada entre elas. É provável que a população primitiva que colonizou aquela ilha tivesse uma distribuição mais vasta, facilitada nos períodos glaciares pelo recuo dos oceanos, não sendo de excluir que desde a Samatra até para lá da ilha das Flores se pudesse passar a pé (veja-se num mapa as profundidades oceânicas na região). Com o aumento da temperatura deu-se o isolamento entre o que são hoje as ilhas da Indonésia, e os homens que ficaram na ilha das Flores teriam diminuindo no tamanho do corpo, geração após geração — na espécie humana actual há exemplos análogos, também facilitados pelo isolamento, por exemplo os Pigmeus, embora sobre esses não haja dúvidas que são uma variante do homem moderno. É ainda de presumir que essa diminuição fosse uma adaptação às condições locais, pois entre outras razões um corpo menor gasta menos energia. Resumindo, é perfeitamente possível que se desse, até com relativa rapidez em número de gerações, uma redução do tamanho do corpo.

Então o Homem das Flores conseguiu sobreviver até aos 20000 anos pelo menos, mas porque não até hoje? Pela mesma razão que não existe actualmente nenhum outro hominídeo além da espécie Homo sapiens. Num tempo qualquer entre os 20000 anos e a época histórica, outros povos tiveram a capacidade tecnológica de chegar à ilha das Flores e explorá-la, e "naturalmente" exterminaram-nos.

Onde o Homem das Flores se torna problemático, não é tanto pela explicação que a Biologia tem para as aparentes perplexidades que provocará em alguns espíritos, a qual me parece relativamente simples e tentei dar à minha maneira, mas pode investigar-se nos endereços da World Wide Web fornecidos acima ou noutras fontes bem informadas (isto é, dignas do qualificativo de Ciência); torna-se problemático por constituir pretexto para mais uma tentativa de aproveitamento, abusiva como sempre, que uma corrente de opinião conhecida como criacionismo tenta fazer. O pior é que entre os criacionistas se contam cientistas, que não conseguem aceitar a Teoria da Evolução, assim lhes sendo possível vestir duma retórica científica as suas argumentações. Mas, por detrás da retórica, esconde-se a ignorância sobre a Teoria que atacam; aliás, se a conhecessem suficientemente bem, duvido que tivessem a desonestidade de serem criacionistas (diga-se, de passagem, que sou daqueles que vêem a mesma desonestidade, e consequente esterilidade, dos discursos radicalizados para o extremo oposto, como os da pseudodisciplina "Sociobiologia", do livro "O gene egoísta" e outras intervenções de Richard Dawkins, etc.).

Curiosamente, os criacionistas ainda continuam a agitar o exemplo de há quase 100 anos, em que antropólogos eminentes se deixaram ludibriar por uma fabricação colocada em Piltdown por — como se insinua em "O polegar do Panda" — um padre, Claude Lévi-Strauss, fundador duma disciplina chamada Antropologia Cultural, cuja exclusão ostensiva da explicação evolutiva leva a muitos erros de interpretação. É só o que os criacionistas têm para fornecer como "prova" da falsidade do registo fóssil? Ou já não insistem quanto aos dinossáurios mas, quando se trata de "relíquias" como o Homem das Flores ou outros Hominídeos, encontram novo alento?

Junto a citação dum contemporâneo de Darwin, que reputo de muito importante para quem se preocupa com possíveis contradições entre a Religião e avanços da Ciência como é a Teoria da Evolução: «... é uma tão nobre concepção de Deus o acreditar que Ele criou formas primordiais capazes de se desenvolverem em todos os seres necessários, pro tempore e pro loco (isto é, bem adaptados às condições), como a supor que lhe foi necessária uma nova intervenção para preencher lacunas que Ele mesmo deixou passar. Pergunto a mim próprio se a primeira concepção não é mais elevada que a segunda.»

O preconceito eclesiástico — note-se que não digo religioso — em relação à Evolução traz muitos problemas aos biólogos, porque tende a isolá-los da sociedade, e a isolar esta duma teoria fecunda, sem a qual o nosso conhecimento do mundo físico fica a perder, e não pouco. Lutar contra este isolamento mútuo é muito importante, para todos os que prezam o avanço do conhecimento.

Paulo de Oliveira, Janeiro de 2005