A armadilha da ideologia

Imagine no possessions
I wonder if you can

John Lennon, 1971

Na União Sovética de Gorbatchev, mas já com Ieltsin aos comandos da Câmara de Moscovo e preparando-se para subir ao tejadilho de um chaimite para o substituir, fiquei a saber a noção que o povo russo tinha, à altura, de direita e esquerda: o Partido Comunista (PCUS), que Gorbatchev procurava reformar nessa Perestroica que, fora do papel, ninguém deve ter percebido o que era, esse representava a direita; Ieltsin e todos os que se afirmavam democratas à ocidental, etc., eram de esquerda. Que será que fez os comunistas serem apelidados de direita? Não andariam os russos com os lados trocados? Pois bem, para eles esquerda era o que podia melhorar a situação, e direita eram os que resistiam à mudança; era esta a distinção de esquerda e direita para eles. Ironia da História esta, que no entanto tem uma lógica tremenda: "direita" é quem está instalado, "esquerda" é quem se quer instalar. Nos países de rotativismo democrático morreram as ideologias, dizem -- porque afinal cada partido é de direita e de esquerda, à vez.

E os anarquistas, que por definição estão fora do baralho, serão de "esquerda"? Não podem ser! Para um anarquista não há diferença entre PS e PSD, protagonistas Castor/Pollux da posse do poder em Portugal, ou entre o PCP e o PP, franjas dessa mesma posse, ou entre o PPM, as esquerdas pretensamente unidas, o PCTP, etc., que valem pelo algum chiste que acrescentam ao folclore da distribuição de votos. Para o anarquista as diferenças entre esses partidos estão no seu grau de comprometimento com o Estado e com clientelas, o que vale o mesmo que dizer: no menor ou maior grau de "esquerdismo" que os anima em cada circunstância: o PS e o PSD à direita de todos, e por aí fora. Por muito que o esquerdista Dr. Louçã insista na sua promessa de irreverência, ele mais não faz que pelar-se por uma migalhinha lisboeta do poder do Estado, e logo que a obtivesse só faria os seus eleitores arrependerem-se de mais um voto para o cano de esgoto desse mesmo Estado. Atente-se no comportamento de um Engº Hermínio Martinho após a implosão do PRD, ou no esvaziamento do PSN ("Projecto Sérgio Nopoleiro"), ou ainda na morte do PP -- já anunciada -- desde que o seu mentor, Dr. Manuel Monteiro, se fez deputado; são pequenas amostras do enfeudamento ao poder e da inutilidade de votar na "esquerda", qualquer que seja o seu discurso.

Se houvesse uma consciência cívica em todos os eleitores que os levasse a traduzir a sua indecisão ou indiferença, não em "voto útil" ou abstenção mas em votos brancos e nulos, então teríamos uma larga expressão desses eleitores e um verdadeiro abalo na encenação democrática. Mas não sei de um só exemplo em que este meio de protesto, legítimo e poderoso (com o requinte de vir servido em duas modalidades para os diversos gostos, voto branco e voto nulo...), tenha sido usado.

Mas o que me interessa mais é analisar a posição dos anarquistas face à paleta esquerda-direita que fazem parecer incontornável. Se os anarquistas vêem no Estado (e eu acho que bem, ora pois!) a matriz opressora dos povos sem a qual o capitalismo não consegue (por enquanto) operar, o mesmo Estado é o alvo a abater, ou pelo menos a minar. Se assim é, os anarquistas não aspiram a poleiros de espécie alguma e por isso não têm "cor política". Nada de paletas, portanto.

Sobre se o seu ideal (não lhe chamo ideologia) é uma utopia, não sei com que fundamento isso é dito por alguns anarquistas. Face ao que vemos hoje e o que nos parece ser o futuro próximo, será sim senhor uma utopia, coisa de santos ou de equivocados que não pode chegar a ter dimensão social que ponha o Estado em respeito (bom, acaba por ser cómodo passar-se por inofensivo...). Mas quem sabe o que realmente nos espera? Baralhadas as cartas da sociedade, o jogo pode ser outro e o que era utopia deixar de sê-lo.

Uma pequena alfinetada anarquista (à minha maneira): avante com a regionalização! Em vez de nos preocuparmos com a região onde vai ficar este ou aquele concelho, sobre qual o número de regiões ou sobre quantos votos de uma futura região entraram no quadradinho do partido tal ou tal (ainda por cima porque amanhã não é ontem, não mais que alhos serem bugalhos), alegremo-nos antes com a expectativa de um carnaval politiqueiro divertido... não, não julguem que o digo irresponsavelmente: aquilo que eu também prevejo com a regionalização é uma implacável machadada no centralismo lisboeta que vai ao encontro do federalismo europeu e contra as teias de aranha do nacionalismo. A regionalização de Portugal não pode, nos tempos que correm, partir de baixo, é antes comandada de cima -- duvido que o tão celebrado (à esquerda e à direita) municipalismo tenha qualquer papel a desempenhar nesse esquema, talvez porque numa certa acepção se aproxima de formas anarquistas. As forças que estão em campo são o proprietarismo do Estado, herdado da monarquia, contra a construção de um novo império de futuro duvidoso. As movimentações que se vão desenrolar entre estes dois pólos, das quais o pretenso debate sobre a regionalização em Portugal dão um pálido vislumbre, vão colocar um sério dilema, pois antes de se dissolverem os Estados terá de consolidar-se esse império; mas este está recheado de paradoxos e não pára de expandir-se territorialmente. A "ameaça" de anarquia pode não ser tão utópica como isso!

Paulo de Oliveira