Ler para obedecer

Diversos são os exemplos, na iconografia do catolicismo, de santos que são representados com ou junto a um livro. Esse livro é a Sagrada Escritura, e o que essa representação significa é que tais homens (e mulheres) do passado se notabilizaram na transmissão das mensagens e valores nele contidos. Eram gente excepcional, sem dúvida, não só porque estavam entre os raros que sabiam ler, como tinham a iluminação de compreender, de tornar inteligível, e provavelmente de dar um exemplo vivo desses valores.

Não sei se foi a ilusão de multiplicar o número de candidatos a santos que levou muitos espíritos a lutar pela alfabetização dos povos. Qualquer que fosse a (boa) intenção desses promotores da igualdade no conhecimento, tenho a certeza que se hoje viessem ver no que deu abanavam a cabeça desiludidos.

Não tanto por terem aberto uma espécie de caixa de Pandora, que tem constituído a história do jornalismo nestes dois séculos; ainda menos pela extraordinária intersecção de culturas e ideias que, com o alargamento da alfabetização, se produziu como manifestação progressiva da multiplicidade de interesses e pontos de vista que passavam a ter uma expressão alargada. Isso é o lado positivo, sem dúvida alguma, mas duvido que alguém entre eles pudesse antever as suas dimensões...

No fundo, foi mais um dos grandes equívocos da História: é que, "antes", o "saber" (mesmo entre campos ideológicos opostos) era transacionado num círculo restrito de pares, com origens, valores e preocupações semelhantes. Ao pretender-se iluminar os espíritos de povos inteiros através da alfabetização, trazendo-lhes essas preocupações e esses valores (as origens é que não seriam as mesmas...), abriu-se o caminho para um movimento de sinal contrário: a apropriação da palavra escrita por matérias banais, nutrindo uma subcultura que foi ganhando terreno para acabar por tornar-se aliada do Poder. A alfabetização acabou por desembocar numa mais eficaz submissão dos povos: o Tio Patinhas, a novela pornográfica, os diários desportivos "aí estão" (o PSL também). As ideias, a cultura, continuam a não passar do interesse de minorias, só que estas hoje já não são elites -- são aberrações.

Se a alfabetização visava abrir os horizontes e continha o germe da subversão, o Poder tratou de condicionar esses horizontes, para tornar a subversão uma espécie de loucura aos olhos da maioria e ao mesmo tempo ter um controlo mais directo das consciências. É talvez por isso que Agostinho da Silva dizia ter a maior veneração pelos analfabetos e pelas crianças. E até pergunto porque é que um dos maiores evangelistas da Idade Média, Santo António, é representado com uma criança em lugar de um livro...