APONTAMENTOS PARA UM MANIFESTO
Paulo de Oliveira
Com o avento da APB começamos a reconhecer-nos como classe intelectual e a ter a ambição de formar um círculo próprio, para troca de ideias e lançamento de acções onde não fosse necessário nem desejável intervirem entidades ou elementos afiliados a outras classes. Por afins que sejam, não pertencem ao nosso círculo -- quer dizer, decidiu-se que era a hora de passar a fazer como os outros...
A APB é uma ideia que, felizmente, pegou. Em 1990, já é um motivo de orgulho. E à sua existência não é estranha a realização do nosso primeiro congresso. Os louros para Aveiro, pela iniciativa; para os biólogos os frutos da mesma, que sejam muitos e bons.
Parece-me oportuno sugerir a urgência de uma identificação dos biólogos. Não só dentro do tal círculo que estamos a aprender a formar, mas também em relação ao resto da sociedade. O debate destas questões há-de revelar, sem dúvida, não haver à partida uma definição mínima sobre elas; e as estatísticas que se obtenham de quantos são professores, investigadores, bolseiros, empregados de escritório, técnicos, estudantes, informáticos, jornalistas, cineastas, ou de quantos trabalham nas escolas secundárias, faculdades e institutos (e em quais) do País, quantos o fazem no estrangeiro, quantos dependem de outros biólogos mas quantos, também, de bioquímicos, farmacêuticos, médicos, veterinários, agrónomos, engenheiros diversos etc. -- mesmo que ulteriormente completadas, ficarão longe de dizer o mais importante: são inestimáveis os testemunhos que possam vir de todos os sectores.
Estou certo que a identificação dos biólogos portugueses não só é precedência para o equacionamento dos problemas que temos a resolver, porque também o será para um mais eficaz e espontâneo recrutamento dos recursos da nossa associação -- estes mesmos biólogos!
Habituados à apatia e subaproveitamento sociais, desmembrados como sempre estivemos, iremos ou não, no lugar privilegiado que para nós se instituiu com a APB, descobrir o nosso valor?
Os anos passados no santuário universitário impregnaram-nos de algo que tem o potencial de nos unir, mas ainda não o fez; porque ainda não dissemos o que somos, o que parecemos.
1990 Boletim-l0-APB
APONTAMENTO PARA UM MANIFESTO II
Paulo de Oliveira
Há temas científicos, sobretudo na Física e na Biologia, cuja enunciação se afronta com muitos sectores da sociedade. Um exemplo a que nós, biólogos, devemos ser particulannente sensíveis, é a questão da Origem do Homem. Talvez a julguemos obsoleta, mas persiste, bem viva, "cá fora". E, se considerarmos:
i) a desatenção da maior parte dos cientistas sobre a consistência atingida (ou não) pelo património científico, nos diversos estratos culturais;
ii) o pernicioso sentido de vulgação -- simplista, precipitado e até oportunista - a que uma obcecação da "linguagem jomalística" leva, em artigos de jornal como em livros de pseudo-divulgação, infelizmente muito lidos;
iü) a crescente curiosidade do "cidadão médio" por "novos conhecimentos", mesmo quando estes contradizem o que é veiculado pela escola.
Poderemos reconhecer as oportunidades que são continuamente oferecidas a um enxame de seitas e grupos -- uns ditos "criacionistas", outros "terceira-via" gnóstico-ateísta -- que agem para o descrédito dos cientistas e das suas actividades aos olhos da sociedade. Se estivermos a esquecer as significativas doses de estranheza, temor, ou mesmo cinismo, que em diversos graus acompanham a admiração da sociedade pelo progresso científico, sujeitamo-nos ao aproveitamento que disso tiram esses grupos. Apesar da falta de espaço disponível, não resisto a referir o facto de poder optar-se, nos Estados Unidos da América, por programas de ensino que escamoteiam ou mesmo renegam os postulados científicos da Origem do Homem.
Concorre um segundo problema, se bem que revista menor gravidade, saliente nas repeúdas incursões de cientistas não biólogos em assuntos - geralmente interpretações da teoria da Evolução - para os quais evidenciam preparação insuficiente. Seja a analisar populações humanas, o funcionamento de sistemas celulares ou orgânicos, a evolução pré-biótica, homologias a nível molecular, modelos ecológicos parasita-hospedeiro, etc. (tantos etc.), frequentes são as alocuções ou textos (nomeadamente em revistas científicas e livros) que, das mais diversas maneiras, carecem de rigor ou até de fundamento. Parece, nestes casos, que a teoria da Evolução se reduz a umas opiniões, ditadas mais pela intuição individual do que por uma verdadeira escola de valores científicos, apenas fornecendo cobertura relativamente indiferente ao que se ache por bem afirmar, caso a caso.
O "evolucionismo" não existe, há uma teoria da Evolução, cujo conhecimento crítico é indispensável a todos quantos, biólogos ou não, tenham de lidar com os seus temas.
Aos biólogos foi oferecida a constatarão sistemática da diversidade do Mundo Vivo. Sabemos muito bem como daí decorreu a teoria da Evolução, na sua génese como no seu aprefeiçoatnento. Este traço de união fundamental, esta nossa identidade, é também o que marca a especificidade do nosso estatuto intelectual. Detemos, na sua mais correcta acepção (junto com os paleontologistas), o modelo interpretativo da História da Vida sobre a Terra -- no que isso melhor nos permite, sendo História,compreender a actualidade.
Parece-me que nos falta zelar por esse património científico, não "vindo a terreiro", em todas as frentes, proclamar o que é incorrecto. Aprender a rebater os argumentos com que nos contestarem e demonstrar, como sempre foi demonstrado, que a Ciência deve a sua superioridade à solidez dos seus fundamentos. Vigiar todas as manifestações de relaxamento do rigor, que possam ser vistas como prejudiciais ao prestígio da Biologia e da Ciência. Educar mais, dentro da Escola e depois dela. Enfim, o palco chama-nos: à Universidade, à comunicação social, aos encontros interdisciplinares, cursos, reuniões de especialistas, sessões públicas ou privadas, às mesas do café...
APONTAMENTOS PARA UM MANIFESTO III
Paulo de Oliveira
Campeão da bioquímica da replicação do ADN, laureado com o prémio Nobel, Arthur Kornberg enuncia num escrito recente valores de grande relevância para a investigação científica, sob o título "Porquê purificar enzimas?" (Methods in Enzymology 182, pp.1-5, 1990). Com uma eloquência notável, a base metodológica dos estudos bioquímicos é referenciada ao requisito absoluto de isolar, da complicada "sopa" de constituintes orgânicos inicialmente presente num homogenato, a entidade molecular -- enzimática -- de interesse. Kornberg consagra (duas vezes) a lapidar frase, atribuída a outra figura eminente, Efraim Racker: "não desperdicem raciocínios limpos em enzimas sujos". E recomenda: o trabalho de purificação até à quase-homogeneidade do enzima que se quer estudar é como a escalada de uma alta montanha, em que cada dia de trabalho à bancada (de marcha) deve ser terminado da maneira conveniente -- observando o estádio de purificação atingido (montando um acampamento). E, uma vez atingido o cume, "gozar as vistas" e aproveitar a descida para planear novas escaladas, novos enzimas que serão purificados para depois caracterizar.
Porém, da mesma maneira que Kornberg ironiza o espanto dos químicos perante a frase "todas as reacções químicas dentro da célula são catalizadas por enzimas", com que marca a especificidade dos sistemas biológicos, também os Biólogos saberão ver as limitações do discurso absolutista que ele desenvolve quando se trata dos métodos bioquímicos. Com estes métodos visa-se reconstituir num tubo de ensaio, com ingredientes definidos, as actividades enzimáticas em estudo. No entanto, há sistemas enzimáticos de regulação complexa, como a muito estudada fosfofructoquinase, em que essa reconstituição nunca atingiu os níveis quantitativos observados in vivo. Podem adicionar-se estes ou aqueles ingredientes, e falta sempre "qualquer coisa". Talvez falte a célula intacta, quem sabe?
As abordagens, não bioquímicas, que procuram preservar as estruturas supra-moleculares, e que Kornberg compara (um pouco apressadamente, talvez) com o vitalismo dos tempos de Pasteur, têm a ver com dois pilares que me parecem fundamentais na matriz conceptual dos Biólogos: que os sistemas vivos têm uma hierarquia estrutural, e que têm um passado. Assim, aprendemos a reconhecer que os métodos de observação são diferentes consoante se estudam enzimas, fracções celulares, células, órgãos e por aí fora, pelo que as respostas obtidas dentro de cada um desses níveis são limitadas pelos métodos empregados -- coerentes dentro dos protocolos experimentais seguidos, mas carecendo de uma compreensão nos outros níveis. Muitos dos parâmetros caracterizados no tubo de ensaio podem ou não modificar-se por integração do enzima em estruturas celulares e processos fisiológicos! Uma pergunta para os Bioquímicos que tentam conhecer a replicação do ADN em "todos" os pormenores, seria deste modo: como se reportam tais pormenores às exigências de regeneração celular, à embriogénese e morfogénese, à resposta imunitária, à conquista de um patamar melhor iluminado numa floresta?
Ainda, ficámos com a noção que as formas de vida, mais complexas ou mais simples, dotadas de maior ou menor sofisticação, são, pelo imperativo da sobrevivência de cada nicho ecológico, "perfeitas". Perfeitas pela integração específica de constituintes e mecanismos (modelados na passagem por implacáveis provas ao longo de eras de Evolução Biológica), que habilita a um lugar próprio nos ecossistemas, desse modo enriquecendo-os. Os enzimas são uma parte muito importante dessa herança, os protagonistas desses mecanismos; contudo, são apenas peças de um "xadrez biológico" que adquire maior significado através dos sucessivos níveis de integração orgânica. A sua própria perfeição não se resume à que é avaliada no tubo de ensaio: encontra-se também no "quando", "onde", "quanto" e "como" das suas actividades catalíticas.
Estes dois "pilares" permitem-nos apreciar da melhor maneira os limites como o extraordinário valor do contributo dos Bioquímicos ao longo de todo o século XX, e não só: vejo neles elementos importantes para um processo de identificação dos Biólogos como classe intelectual, que julgo urgente ir-se elaborando no nosso País.