PREVERSÕES DA BIOTECNOLOGIA

"Milho genético", esse termo inventado à pressa para a cobertura das notícias da importação de materiais geneticamente modificados e para os alertas feitos pelo Green Peace -- afinal do que se trata?

É a realização do sonho de muitas pessoas envolvidas no "melhoramento" de produtos alimentares através do enxerto de genes em espécies domesticadas. As aspas derivam do conceito a meu ver preverso que essas pessoas têm de melhoramento, mas já lá iremos.

Nos finais dos anos 70, uma substância do nosso corpo chamada interferão gama (IFN-g), fundamental para a protecção imunitária contra patogénios, tinha ainda de ser purificada a partir de enormes quantidades de plasma humano -- um material de risco, como se sabe -- para ser utilizável em terapêutica. Demasiado caro, excessivamente falível, pouco limpo, moroso. Então veio o IFN-g recombinante: o gene humano dessa substância, uma vez introduzido numa bactéria (aquilo a que se chama cloning ou, em tradução afrancesada, clonagem), com o crescimento dessa bactéria podia ser isolado e multiplicado as vezes que se quisesse, que essa bactéria se encarregaria de fabricar IFN-g humano que passou a ser barato, sem falhas, limpo e muito conveniente para todos (incluindo as farmacêuticas). Foi este um dos primeiros grandes sucessos da tecnologia recombinante, cujas utilizações se têm diversificado sem parar até hoje, à medida dos genes que se vão isolando em clones bacterianos, das necessidades que existem, etc..

Não tardou muito que se pensasse em produzir plantas cultivadas, ou animais domésticos, com genes introduzidos por um processo análogo ao que se fazia nas bactérias -- tal começou por ser feito em ratos de laboratório e drosófilas (moscas da fruta) durante os anos 80, e contribuiu muito para o avanço do conhecimento científico. Assim, depois de isolado qualquer que fosse o gene numa bactéria, esse gene era transferido para células que serviriam de ponto de partida para a regeneração de um organismo completo, animal ou planta. Por exemplo, enxertava-se um gene num dos cromossomas de um ovo recém-fecundado, e inventavam-se organismos "com um gene a mais", que são conhecidos como organismos transgénicos. O dito milho constitui um exemplo disso, notável pela engenharia mas duvidoso em tudo o resto.

Desde 1992 que a Biotecnologia tem inventado novas plantas transgénicas com "interesse" agronómico. Novamente as aspas, e desta vez para avançar com a questão, verdadeiramente preocupante a cada passo, sobre os organismos transgénicos: em nome de quê se escolhem os genes a serem introduzidos nas plantas, pois a trabalheira que dá produzirem-se os transgénicos não é pequena?

Os exemplos recentes mostram que não é nada tranquilizadora a utilização desta tecnologia em plantas cultivadas: no caso do milho transgénico, a Ciba-Geigy introduziu-lhe um gene que dota a planta, creio que em todas as suas células, de uma toxina considerada inócua para o ser humano mas mortífera para os insectos (presumo ser a de uma bactéria chamada Bacillus thuringensis); isto porque há insectos que vêem nas extensas monoculturas de milho um banquete sem restrições mas o Homem não os quer lá, assim toca de transformar o milho em veneno para eles. Agora, se pensarmos que estados como o Iowa são uns bons 98% cobertos de milho, se esta variedade transgénica se tornar preponderante em áreas dessa ordem de grandeza corre-se o risco da elminação dos insectos, todos, dessas regiões. Imagine-se o impacto que tal iria significar, sabendo que há em todos os ecossistemas insectos benéficos (que caçam insectos que devoram as plantas, por exemplo) e assim podem estar indirectamente a ser eliminados (ou envenenados, ou à fome); e as consequências sobre a fauna do solo resultantes da acumulação desta toxina nas raízes do milho, fauna já de si depauperada pelo efeito conjugado da monocultura e da aplicação selvática de fertilizantes e pesticidas? Para empresas como a Ciba-Geigy, os cifrões não se compadecem com a biodiversidade, e quanto à saúde do planeta logo se verá.

A soja transgénica é ainda mais chocante. A firma Monsanto inventou um pesticida total, Roundup de sua graça, que mata tudo, mesmo tudo... para quê, pergunto eu? Mas essa mesma Monsanto, continuando numa pérfida criação de coisas desnecessárias, inventou soja com um gene de resistência ao dito Roundup. Que paisagem é que isto dá? Um campo morto onde apenas cresce aquela soja?

Estes dois exemplos mostram bem como a agricultura convencional, agressiva para o meio ambiente (e para a saúde de quem come os seus produtos), poluente e destruidora da paisagem natural, não tem limites na sua sanha de lucro sem escrúpulos, sem concessões. Organismos transgénicos como este milho e esta soja são a consequência lógica de uma estratégia que interliga intimamente as produtoras de químicos e a agricultura extensiva. Estas plantas transgénicas não são para qualquer um: é tão dispendioso desenvolver cada variedade transgénica que só rende comprá-las em grandes quantidades, e assim irão cobrir-se vastidões no lugar das variedades anteriormente existentes. Não admira pois que o movimento Green Peace dê tanta importância a esta questão.

Como em tudo na vida, um engenho depende sempre de quem o utiliza. A Biotecnologia podia servir a Humanidade sem causar quaisquer conflitos, mas quem anda mais depressa, investe mais e paga melhor é quem nutre objectivos que nos prejudicam gravemente. Num Ocidente semi-destruído ecologicamente e com excedentes de produção alimentar, transgénicos daqueles deveriam ser inconcebíveis. Onde é que o absurdo vai parar?

Antes usar parte da terra para fins não-alimentares, como seja a produção de fármacos para a clínica médica (sem dúvida que sairiam mais baratos, mas à Ciba-Geigy isso talvez não interesse) ou a recuperação de solos degradados (por exemplo das regiões mineiras abandonadas), então haveria muito de bom a esperar das transgénicas...

Perante isto, não me entra na cabeça como as comissões de peritos consultadas àcerca do milho e da soja transgénicos se tenham limitado a afirmar que "não se sabe o efeito que estes novos alimentos teriam sobre a saúde do consumidor". Como se isso fosse o único alarme! E mesmo com esse argumento, os seus pareceres foram ignorados por Bruxelas. Estamos bem entregues, não haja dúvida...

O principal problema da Biotecnologia é o de ser quase exclusivamente apoiada pela indústria química, que tem nas mãos médicos, agricultores e governos. Mas os cientistas não se podem dar ao luxo da objecção de consciência, pois no meio em que subsistem e sem verdadeiras alternativas ou colaboram com o poder do dinheiro ou são pura e simplesmente "dispensados", desperdício (mais um) do capitalismo por ousarem não lhe aderir.

Dói-me sentir que o génio científico, sujeito como sempre às decisões políticas, desonestamente políticas, sobre aquilo a que se há-de dedicar, não tenha outro remédio senão envolver-se nos absurdos biotecnológicos da nada escrupulosa lógica da indústria. Seria bom que se formassem em todo o Mundo grupos de suporte à investigação laboratorial que ao mesmo tempo resguardem as universidades e os institutos dessas orientações, e pelo contrário a levem a encontrar soluções alternativas, até com as mesmas tecnologias, para melhorar a qualidade de vida no planeta. Senão, não haverá meio de contrabalançar as violências que se fazem contra os recursos naturais.

Paulo de Oliveira