O POLíTlCO, O MORDOMO, E A HUMANIDADE

Algumas pessoas mais ou menos interessadas hão-de ter assistido ao filme "Despojos do Dia", recentemente divulgado entre nós, dessas; tenho a certeza que nenhuma terá esquecido a perturbante cena em que um político convidado do lorde Darlington interpela o mordomo deste último sobre "foreign affajrs", apenas para demonstrar que os "common people" são indignos do poder que têm, pelo voto, sobre os destinos políticos de um estado.

Se eu fosse ao mordomo, e fosse capaz de ultrapassar a estupefacção de ser interrogado sobre coisas que nunca me atingiram directamente, a melhor resposta seria interrogar esse político sobre o que é que ele fazia para melhorar a minha própria condição social, o meu disfrute da vida. Mas responder a urna pergunta com uma pergunta era demasiado indelicado para o personagem que Hopkins tão bem interpretou.

Esta alegoria política não se aplica somente àquela fase da história, que teve os seus políticos, os seus mordomos, e os seus problemas (guerras nomeadamente). O tempo apaga-os a todos. Ao pó também regressaram D. Afonso Henriques, Camões, Padre António Vieira, Egas Moniz ou Agostinho da Silva; aquilo que ocupou cada um foi próprio dos seus tempos e espaços, e só nos chega como simbólico pano de fundo. Contudo, o Homem é um problema de todas as épocas e regiões, e quando a expressão anarquista promove a solidariedade e o respeito mútuo não posso deixar de me sentir envolvido.

Somos fracos por natureza, cedemos perante hábitos que se tomam vícios, e que por sua vez permitem a outros ter poder sobre nós. Assim, para um toxico-dependente atrair outra pessoa para o consumo é uma compensação, porque irá tomá-la como ele escrava do vício; quando uma viúva anda a espreitar sucessivos pares de amantes para os poder denunciar, não só vai revivendo melhores momentos do seu próprio passado espiando-os, como se desforra da sua condição actual castigando os "pecadores"; a mania do futebol é uma maneira de tentar viver as glórias e misérias dos outros como se fossem as próprias; alguém que só pensa em casar rico (escolham a vossa telenovela) arrasta consigo uma série de gente numa senda de mentiras; o vício do jogo intelectual é uma mera continuação do jogo de recompensas fúteis dos tempos da escola, que por exemplo levam uma pessoa a julgar-se melhor que os que a rodeiam. Tudo isto, e muito mais, se repete com variantes em todas as gerações e envenena as existências.

Com o poder é a mesma coisa. Cavaco Silva (e Jacques Delors, a outro nível) julgam ter muito poder nas suas mãos porque conseguem fazer muita gente obedecer-lhes. Para eles, a perda desse mando era a destruição. Por isso não são livres eles próprios. São protagonistas ocasionais de infernais máquinas que absorvem os interesses temporários de milhões de escravos como eles.

O grande erro é julgarmos que nos podemos servir dos outros. Mesmo quando alguém se submete a outrém, está inconscientemente a servir-se deste último. A resposta está na verdadeira solidariedade, a que nos leva a deitar fora todo esse lixo de ilusões e nos faz sentirmo-nos irmãos e ajudarmo-nos realmente. Este problema fundamental do Homem não foi resolvido, e talvez nunca o seja nos moldes da sociedade em que vivemos. Provavelmente, em moldes nenhuns, pois o maior obstáculo está em tentar submeter os indivíduos a sistemas.

Mesmo os sistemas que foram idealizados com a honesta intenção de libertar os indivíduos acabaram por se tornar parasitas daqueles que proclamavam libertar. Não encontro melhor exemplo disso que o da Igreja. Jesus Cristo teve a mensagem mais libertadora, e graças a Deus temos os Evangelhos por Seu testemunho, mas ao longo dos quase 2000 anos de História que decorreram, bem vimos como a mensagem divina foi usurpada em favor dos interesses de momento, em que todos nascíamos iguais perante Deus, mas uns mais iguais do que outros perante os eclesiásticos.

Erros humanos de uma Igreja humana, a meu ver. Se nos tempos áureos do anarquismo a prática da hierarquia eclesiástica apontava-a como inimiga do ideal libertário, a situação tende hoje a ser outra; temos muitas vezes a oportunidade de ver que é na Igreja precisamente que se vai encontrando uma voz realmente independente, inspirada pela contemplação da Eternidade ou, em termos mais "palpáveis", pela necessidade de infundir humildade e solidariedade na vida dos homens. Serei um ingénuo? Talvez. Ou talvez que estas constatações não entrem nos "sistemas" mentais de alguns. A expressão cristã é, na sua essência, uma expressão anarquista. E, pessoalmente, acredito que a resposta para o problema do Homem começará por um reencontro com o "Caminho, Verdade e Vida" que Jesus nos propõe.

Conhecendo o que vai pelos chamados países civilizados vai-se compreendendo como é urgente realizar esse reencontro, e como em Portugal, especialmente nas zonas mais "atrasadas", nos encontramos menos longe de o realizannos. Acompanho este pensamento com uma homenagem ao recenntemente falecido Agostinho da Silva, que no seu próprio discurso foi um anarquista autêntico.