Carta a Nuno Rogeiro

Porto, 12 de Setembro de 1992

revisto em Lisboa, 13 e 17 de Setembro

(...) A "conversa em família" com Vasco Pulido Valente torna a série promissora. Mas o entrevistado disse coisas!... Se o Nuno Rogeiro tiver a oportunidade, diga-lhe que, com a idade que tem, ele já tinha a obrigação de remover as "palas" que o estatuto social e intelectual lhe conferem, e sobretudo que era tempo de rever a influência britânica no seu pensamento. Então a mestiçagem dos portugueses com tudo quanto era povo que encontraram denota a nossa inferioridade? Isso é o que os ingleses gostam de pensar e, claro, fazer pensar os "estrangeiros" que lhes ficam a dever diplomas.

É que os ingleses sempre se julgaram superiores, e tudo o que eles fazem é por eles assumido como marca dessa superioridade. Mas é uma questão de ponto de vista. A mestiçagem, no exemplo português, é em minha opinião um dos maiores motivos de orgulho para nós. E, se o Reino Unido teve maior influência sobre os destinos do Mundo tal como o vemos hoje, e certamente maior poder e mais vitórias, por isso também não deixou de fazer correr mais sangue, e ser mais odiado. São destinos históricos diferentes, é como comparar laranjas e limões: ­ Qual deles é o mais doce? ­ Qual deles é o mais ácido? É o tipo de pergunta de fácil resposta. Mas, ­ qual deles é o mais importante? A perspectiva aparentemente agnóstica de V. P. Valente impede-o de considerar uma tal questão sem a analisar sob facetas que melhor lhe convêm. Não é raro.

Aproveito para lhe dar os parabéns pela sua frase «um combate dos povos da Europa contra os governos da Europa». Certíssimo no que devia ser, mas afinal não acontece. Todos os impérios se fizeram à custa dos povos, mas os tempos de hoje requerem que se dê um assentimento popular mais ou menos explícito aos caminhos para esses impérios. Por outras palavras, a votação legitima o jugo a que se pretendem submeter os povos ­ afinal, «foram eles que autorizaram!». Se formos a ver quais os motivos que levam os indivíduos a "julgar que" não, percebe-se imediatamente como as manipulações que se fazem nas campanhas acabam por "dobrar" as intenções de voto. A Democracia talvez funcione em termos de eleger indivíduos, porém em termos de questões abstractas ­ União Europeia ­ torna-se obrigatório conhecer das consequências, dos textos, pois as figuras que aparecem a defender os diversos campos nessas questões não servem de critério. E o Povo não gosta de decidir nessa base. Muita gente vota num ou noutro sentido de uma maneira irresponsável, não tem real significado.

Quando as multidões surgem a protestar, é na melhor perspectiva um grito de desespero, o partir da corda que estava a ser esticada em demasia. No caso da União Europeia, o povo não tem muito porque protestar ­ até talvez pelo contrário ­ por enquanto, mas o que eu temo é que venha a fazê-lo daqui a uns anos, desesperado com as usurpações e tiranias que hoje adivinhamos. A já consciência das imposições da CE sobre a produção agrícola é incipiente e nunca levaria, no espaço de tempo de um referendo, à conscência da "factura" que Alemães e Franceses nos irão fazer pagar mais tarde. É por isso que não acredito no referendo: o referendo interessa tanto a certos políticos como é temido pelos outros políticos e pelos homens de negócios. Aliás, continuo a achar que a presente condição de progresso é dirigida das CEs, não é intrínseca, e desse modo será travada a seu bel-prazer quando e ao nível que lhes convir.

Vasco Pulido Valente tem razão, ao colocar o interesse alemão na União Europeia numa perspectiva de um revisitado Drang nach Osten".

Alguém já se deu ao trabalho de enumerar as subversões do espírito do Tratado de Roma necessárias à sua realização institucional actual? Isto já não falando na actualidade (possível?) desse espírito. A Utopia é necessária, é um elemento crucial do destino da Humanidade, mas a realização das utopias é impossível, é quanto muito aproximativa, pela via da circunstância, da imposição do particular ao universal.

A Utopia dos Portugueses não se expressa em modelos ou sistemas, expressa-se na Poesia, no Sagrado, na Herança. No dia-a-dia são elementos imperceptíveis, principalmente para o mundo dos homens que se distraem com modelos importados, com as utopias de empréstimo, tais como Vasco Pulido Valente ­ duvido que ele conheça o Meridional de Cesário Verde, ou aprecie os músicos da Sé de Évora no tempo dos Filipes, ou o povo brasileiro a que Manuel Gama se refere frequentemente.

Nuno Rogeiro, tenho uma sugestão para uma "Conversa em Família": o Sr. Agostinhoo da Silva. Gostava que discutisse com ele porque escolheu dividir o Mundo por oceanos, situando-lhes as capitais em ilhas colonizadas por Portugal; ou que o fizesse discorrer sobre o Culto do Espírito Santo, ou sobre o desaparecimento dos impérios. É uma bênção poder ainda falar com aquele homem já quase com 80 anos (referência: "Jornal de Notícias", 10 de Setembro de 1992).(...)