Introdução ao texto e notas sobre a tradução
O original na World Wide Web
Estrutura do texto

A sociedade industrial e o seu futuro

(excertos)

O processo de afirmação pessoal

33. Os seres humanos têm necessidade (provavelmente biológica) daquilo a que chamaremos o "processo de afirmação pessoal". Embora esteja intimamente ligado à necessidade de poder (que é geralmente reconhecida), não é propriamente a mesma coisa. O processo de afirmação pessoal tem quatro elementos. Há três melhor definidos que chamamos ter um objectivo, esforçar-se para alcançá-lo e atingi-lo. (Todos precisam de ter objectivos que para serem atingidos requerem esforço, e precisam de conseguir atingir pelo menos alguns desses objectivos.) O quarto elemento é mais difícil de definir e pode não ser uma necessidade para toda a gente. Chamamos-lhe autonomia e será discutido mais à frente [...].

34. Considere-se o exemplo hipotético de alguém que passa a ter tudo o que quiser sem esforço. Embora tenha poder, essa pessoa há-de ficar com problemas psicológicos graves. De início irá divertir-se muito, mas aos poucos sentir-se-á fortemente aborrecida e desmoralizada. Acabará até por ficar clinicamente deprimida. A História demonstra que as aristocracias desocupadas tenderam a tornar-se decadentes [...] por não terem a necessidade de aplicar-se em nada geralmente aborreciam-se, tornavam-se hedonísticas e desmoralizadas, mesmo que detendo o poder. Isto mostra que o poder por si só não é suficiente. É necessário objectivos que orientem o exercício desse poder.

35. Todos têm objectivos; se não for para mais nada, pelo menos para satisfazer as necessidades vitais: comida, água, e roupas e abrigos de acordo com o clima. [...]

36. A não-realização de objectivos importantes resulta na morte se os objectivos forem necessidades vitais, e em frustração se a não-realização dos objectivos é compatível com a sobrevivência. A falha em realizar objectivos ao longo da vida resulta neste caso em derrotismo, fraca auto-estima ou depressão.

37. Assim, para obviar problemas psicológicos graves, os seres humanos precisam de ter objectivos cuja realização exija empenhamento, e de terem uma certa taxa de sucesso nessa realização.

38. [...] Quando as pessoas não tenham de aplicar-se para satisfazerem as suas necessidades vitais é frequente estabelecerem objectivos artificiais por si próprias. Em muitos casos acabam por esforçar-se com a mesma energia e envolvimento emocionais que teriam posto para a satisfação de necessidades vitais. [...]

39. Usamos o termo "actividade de substituição" para designar actividades orientadas por objectivos artificiais e que as pessoas estabelecem por si próprias meramente para terem uma razão para se esforçarem, ou seja, meramente pela "realização" que resulta de tentarem atingir esses objectivos. Eis uma maneira de identificar actividades de substituição. No caso de uma pessoa que devota muito tempo e energia para atingir um objectivo X, se em vez disso tivesse de orientar a maior parte do seu tempo e energia para a satisfação das suas necessidades biológicas, com o empenho dos seus recursos físicos e mentais de uma maneira variada e interessante, será que essa pessoa se sentiria gravemente carenciada por não atingir o objectivo X? Se se vir que a resposta é não, então o esforço dessa pessoa para realizar o objectivo X é uma actividade de substituição. [...] Por outro lado, a obtenção de sexo e amor (por exemplo) não é uma actividade de substituição, porque a maior parte das pessoas, mesmo que as suas existências fossem de resto satisfatórias, se sentiriam carenciadas se passassem por esta vida sem alguma vez terem tido uma relação desta natureza. (Mas a busca de uma actividade sexual excessiva, para além do que seriam as necessidades, pode já ser uma actividade de substituição.)

40. Nas sociedades industriais modernas o esforço necessário para satisfazer as necessidades vitais é mínimo. Basta em princípio que se passe por uma fase de aprendizagem para atingir uma capacidade técnica pouco exigente, depois que se compareça ao emprego dentro dos horários e se exerça um modesto esforço para não perdê-lo. Os requisitos são apenas alguma inteligência, e acima de tudo, simples OBEDIÊNCIA. Para quem os tiver, a sociedade oferece a segurança do berço à cova. (Sim, há os marginalizados que não têm garantias de satisfazer as suas necessidades vitais, mas aqui focam-se apenas as classes sociais comuns.) Assim, não é surpresa que as sociedades estejam cheias de actividades de substituição. Estas incluem o trabalho científico, os êxitos desportivos, o trabalho humanitário, a criação artística e literária, a promoção nas hierarquias empresariais, a acumulação de dinheiro e bens materiais muito para além do ponto em que deixam de acrescentar satisfação de necessidades vitais, e activismo social dirigido a assuntos que não são importantes para os próprios activistas [...]. Nem sempre se trata de actividades puramente de substituição, pois para muitos elas podem ser motivadas em parte por outras necessidades que não sejam apenas a necessidade de ter objectivos. O trabalho científico pode ser em parte motivado pelo desejo de prestígio, a criação artística pela necessidade de expressar sentimentos, o activismo social militante por hostilidade. Mas para a maior parte daqueles que se dedicam a elas, trata-se principalmente de actividades de substituição. Por exemplo, a maior parte dos cientistas concordariam provavelmente que a "realização" que têm com o seu trabalho é mais importante que o dinheiro e prestígio que este lhes pode conferir.

41. Para muitos senão a maior parte, as actividades de substituição são menos satisfatórias que o esforço para atingir verdadeiros objectivos (isto é, objectivos que continuariam a valer a pena mesmo que a sua necessidade de atravessar o processo de afirmação pessoal já estivesse satisfeita). Uma indicação disto mesmo é o facto de em muitos casos ou a maior parte, as pessoas que estão profundamente envolvidas em actividades de substituição nunca estarem satisfeitas, nunca descansarem. Por exemplo, o indivíduo que ganha muito dinheiro continua a querer acumular mais e mais riqueza; o cientista mal acaba de resolver um problema e já está a passar para outro; [...] Muitas pessoas que exercem actividades de substituição hão-de dizer que têm muito maior realização com estas actividades do que com a ocupação "mundana" de satisfazer as suas necessidades vitais, mas isto é porque na nossa sociedade o esforço requerido para satisfazê-las é trivial. E, o que é mais importante, não as satisfazem AUTONOMAMENTE, antes fazendo parte de uma máquina social imensa. Em contraste, as pessoas têm bastante autonomia na prossecução das suas actividades de substituição.

42. A autonomia, como parte do processo de afirmação pessoal, pode não ser necessária para todos os indivíduos. Mas a maior parte, a trabalhar para os seus objectivos, precisa de autonomia em maior ou menor grau. Os seus esforços têm de ser empreendidos por sua própria iniciativa e têm de manter-se sob o seu comando e controlo. No entanto, a maior parte das pessoas não precisam de exercer esta iniciativa, comando e controlo como indivíduos, cada um por seu lado. Basta que o façam como membros de um grupo PEQUENO. Assim, se meia dúzia de pessoas discutem um objectivo entre si e o realizam com sucesso através de um esforço conjunto, isto serve para a sua necessidade do processo de afirmação pessoal. Se pelo contrário trabalharem sob ordens rígidas vindas de cima, que não lhes deixem espaço para decisões e inciativas autónomas, então não serve para a sua necessidade do processo de afirmação pessoal. O mesmo se aplica quando as decisões são tomadas colectivamente por um grupo tão grande que o papel de cada indivíduo é insignificante [nota 5].

43. É um facto que alguns indivíduos parecem ter uma fraca necessidade de autonomia. Pode dever-se isso a uma falta de desejo de poder ou à satisafação do mesmo identificando-se com alguma organização poderosa a que pertençam [...]

44. Mas para a maior parte das pessoas é através do processo de afirmação pessoal – ter um objectivo, fazer um esforço AUTÓNOMO e atingir esse objectivo – que se adquirem a auto-estima, a auto-confiança e uma sensação de poder. Quando não tenham a oportunidade de atravessarem o processo de afirmação pessoal as consequências são (dependendo do indivíduo e da maneira pela qual o processo de afirmação pessoal lhe é bloqueado): aborrecimento, desmoralização, fraca auto-estima, sentimentos de inferioridade, derrotismo, depressão, ansiedade, culpa, frustração, hostilidade, opressão/ agressão dos companheiros ou dos filhos, hedonismo insaciável, comportamento sexual fora do normal, perturbações do sono, problemas alimentares, etc. [nota 6]

Causa dos problemas sociais

46. Atribuimos os problemas sociais e psicológicos das sociedades modernas à exigência imposta aos indvíduos de viverem em condições radicalmente diferentes daquelas em que a espécie humana evoluiu e de comportarem-se em conflito com os padrões de comportamento que foram desenvolvidos nessas condições ancestrais. Ficou claro pelo exposto anteriormente que consideramos a falta de oportunidade de viver plenamente o processo de afirmação pessoal, entre as condições anormais a que as sociedades modernas sujeitam as pessoas, como a mais importante de todas. Mas não é a única. Antes de analisar-se o bloqueamento do processo de afirmação pessoal como causa de problemas sociais é necessário discutir algumas das outras causas.

47. Entre as condições anormais que caracterizam as sociedades industriais modernas contam-se a excessiva densidade populacional, o isolamento do Homem da natureza, o excesso de rapidez nas mutações sociais e o desaparecimento das pequenas comunidades naturais como o clã, a aldeia ou a tribo.

48. [...] O grau de povoamento que vê hoje e o isolamento do Homem da natureza são consequências do progresso tecnológico. Todas as sociedades pré-industriais eram predominantemente rurais. A Revolução Industrial aumentou enormemente o tamanho das cidades e a proporção da população que nelas vive, e a tecnologia agrícola moderna tornou possível obter da terra o necessário para manter uma densidade populacional como nunca houve anteriormente. [...]

49. Para as sociedades primitivas o mundo natural (que em geral só muda lentamente) constituía uma referência estável e por isso inspirava um sentimento de segurança. No mundo moderno é a actividade humana que domina a natureza e não o contrário, e as sociedades modernas mudam muito rapidamente devido às mudanças tecnológicas. Não existe uma referência estável.

50. Os conservadores iludem-se: enquanto se queixam da perda progressiva dos valores tradicionais, apoiam entusiasticamente o progresso e o crescimento da economia. Aparentemente nunca lhes ocorreu que não se pode mudar rápida e drasticamente a tecnologia e a economia da sociedade sem também causar mudanças rápidas em todos os outros aspectos da sociedade, e que tais mudanças acabam inevitavelmente por sacrificar os valores tradicionais.

51. A perda dos valores tradicionais implica de certa maneira a quebra dos elos que unem os pequenos agrupamentos tradicionais. A desintegração destes grupos também é promovida pelo facto de as pessoas, nas condições modernas, terem frequentemente de mudar-se (por exigência ou tentação) para outras terras, separando-se das suas comunidades. Além disso, uma sociedade tecnológica TEM DE enfraquecer os laços familiares e as comunidades locais para poder funcionar eficientemente. Nas sociedades modernas a lealdade de cada indivíduo tem de ser primeiro ao sistema e só secundariamente à pequena comunidade, porque se as lealdades internas das pequenas comunidades fossem mais fortes do que a lealdade ao sistema, essas comunidades actuariam para se favorecerem à custa do sistema.

54. Algumas cidades pré-industriais foram grandes e densamente povoadas, e no entanto os seus habitantes não parecem ter sofrido de problemas psicológicos como se verifica nas sociedades modernas. Hoje nos EUA ainda se encontram áreas rurais pouco povoadas, nas quais se vêem os mesmos problemas que nas áeras urbanas – embora menos agudamente nas áreas rurais. Isto para dizer que o sobrepovoamento não parece ser um factor decisivo.

55. Enquanto a fronteira dos EUA ia avançando durante o século XIX, é provável que a mobilidade da população tenha feito desaparecer as pequenas comunidades de então pelo menos tanto como hoje acontece. Na realidade, até houve famílias que escolheram viver em isolamento, sem vizinhos num raio de várias milhas, nem pertencendo a comunidade alguma, e não consta que tenham desenvolvido problemas em resultado disso.

56. Mais ainda, as sociedades fronteiriças de então mudavam muito rápida e profundamente. Um homem podia ter nascido e ser criado numa cabana de madeira, longe da alçada da lei e de qualquer forma de organização, e alimentado com carne de animais selvagens; esse mesmo homem, quando chegasse a uma idade avançada, encontrar-se-ia a trabalhar num emprego regular, vivendo numa comunidade organizada e com aplicação das leis. Sendo uma mudança mais profunda do que ocorre tipicamente na vida de um indivíduo moderno, não consta que tenha acarretado problemas psicológicos. Na verdade, a sociedade norte-americana do século XIX era optimista e auto-confiante, bem ao contrário da sociedade que lhe sucede hoje. [...]

57. A diferença, na nossa opinião, é que o indivíduo moderno tem a sensação (e com razão) que a mudança lhe é IMPOSTA, quando o habitante fronteiriço do século XIX tinha um sentimento (também justificado) que era ele a criar a mudança, por sua própria decisão. [...] O agricultor pioneiro participava como membro de um grupo relativamente pequeno na criação de uma nova comunidade organizada. Pode questionar-se se a criação desta comunidade era uma melhoria, mas em todo o caso isso satisfazia a necessidade desse pioneiro do seu processo de afirmação pessoal.

58. [...] Mantemos que a mais importante causa dos problemas sociais e psicológicos nas sociedades modernas reside no facto das pessoas não terem oportunidades suficientes para experimentarem o processo de afirmação pessoal de maneira normal. Não queremos com isto dizer que as sociedades modernas são as únicas nas quais o processo de afirmação pessoal é bloqueado. Provavelmente a maior parte senão todas as sociedades civilizadas interferem com o processo de afirmação pessoal em maior ou menor grau. Mas nas sociedades industriais o problema tornou-se especialmente gritante. [...]

59. Dividimos as aspirações humanas em três grupos: (1) as que podem ser satisfeitas com esforço mínimo; (2) as que podem ser satisfeitas, mas só à custa de esforço considerável; (3) as que não podem ser satisfeitas adequadamente, seja qual for o esforço que se faça para consegui-lo. O processo de afirmação pessoal é um processo de satisfação de necessidades do segundo grupo. Quanto mais as houver no terceiro grupo, maior será a frustração, a raiva, e por fim o derrotismo, a depressão, etc..

60. Nas sociedades industrializadas modernas as aspirações humanas naturais confinam-se aos primeiro e terceiro grupos, enquanto o segundo grupo tende cada vez mais a consistir de aspirações criadas artificialmente.

61. Nas sociedades primitivas, as necessidades físicas recaem em geral no grupo 2: podem ser obtidas, mas só com esforço considerável. Mas as sociedades modernas tendem a garantir as necessidades físicas de todos [nota 9] à custa de esforço mínimo, ou seja as necessidades físicas são relegadas para o grupo 1. (Pode haver algum desacordo sobre se o esforço necessário para aguentar um emprego é "mínimo"; mas é usual, nos empregos das classes médias a baixas, o esforço que se exige ser apenas o da obediência. [...] Raramente alguém tem de aplicar-se a sério, e mesmo assim praticamente não se tem autonomia no trabalho, daí que este nunca sirva para desenvolver um processo de afirmação pessoal.)

62. É frequente as necessidades sociais, como o sexo, o amor e o status, ficarem no grupo 2 em sociedades modernas, dependendo da situação do indivíduo. [nota 10] Mas, à excepção dos indivíduos que têm uma particularmente forte aspiração ao status, o esforço requerido para satisfazer as aspirações sociais é insuficiente para satisfazer a necessidade do processo de afirmação pessoal.

63. Assim, criaram-se certas necessidades artificiais que encaixam no grupo 2, que assim servem para a necessidade do processo de afirmação pessoal. Desenvolveram-se técnicas de publicidade e marketing que fazem muitas pessoas sentir que necessitam de coisas que os seus avós nunca desejaram ou com as quais nem sonharam sequer. Sendo preciso considerável esforço para ganhar o dinheiro suficiente para satisfazer estas necessidades artificiais, elas são do grupo 2. [...] Em larga medida, o homem moderno tem de satisfazer a sua necessidade do processo de afirmação pessoal pela busca de necessidades artificiais criadas pelas indústrias de publicidade e marketing [nota 11], e por actividades de substituição.

64. Parece que para muita gente, talvez a maioria, estas formas artificiais do processo de afirmação pessoal não chegam. Um tema recorrente nos escritos dos observadores sociais da segunda metade do século XX é a sensação de falta de objectivos de que sofre muita gente nas sociedades modernas. [...] Sugerimos que aquilo a que se chama "crise de identidade" é na verdade uma busca de um rumo, frequentemente traduzida na dedicação a uma actividade de substituição. Pode ser que o existencialismo seja em grande parte uma reacção à falta de objectivos da vida moderna. [...] Prevalece muito nas sociedades modernas a busca de "realização". Mas pensamos que para a maioria das pessoas uma actividade cujo objectivo principal é a realização (isto é, uma actividade de substituição) acaba por não trazer realização completamente satisfatória. Por outras palavras, não satisfaz completamente a necessidade do processo de afirmação pessoal. (ver parágrafo 41.) Essa necessidade pode ser satisfeita apenas através de actividades que tenham algum objectivo exterior, como por exemplo as necessidades físicas, sexo, amor, status, vingança, etc..

65. Além disso, onde para atingir metas passe por ganhar dinheiro, subir na escala do status ou funcionando como parte do sistema de alguma outra maneira, a maior parte das pessoas não estão em condições de dedicar-se a atingi-las AUTONOMAMENTE. A maior parte dos trabalhadores são empregados de outrém pois [...] têm de passar os seus dias fazendo aquilo que lhes dizem para fazerem e da maneira que lhes é dito para o fazerem. Até a maior parte das pessoas que trabalham em negócios por conta própria têm uma autonomia limitada. Uma queixa crónica dos pequenos negociantes e empresários é que sentem as mãos atadas com a excessiva regulamentação governamental. Alguns desses regulamentos são sem dúvida desnecessários, mas na maior parte [...] são partes essenciais e inevitáveis das sociedades extremamente complexas em que vivemos. [...]

66. Hoje em dia as pessoas vivem mais em função do que o sistema faz PARA elas, ou do que o sistema LHES faz, do que em função do que fazem por si próprias. E o que fazem por si próprias é cada vez mais condicionado às vias estabelecidas pelo sistema. As oportunidades tendem a ser aquelas que o sistema abre, e têm de ser aproveitadas de acordo com regras e regulamentos [nota 13], e têm de seguir-se métodos prescritos por peritos para ter-se alguma hipótese de sucesso.

67. Portanto, o processo de afirmação pessoal é impedido na nossa sociedade por uma falta de reais objectivos assim como uma falta de autonomia na dedicação aos objectivos. Mas também o é por causa das aspirações humanas que pertencem ao grupo 3: aquelas que não se podem satisfazer adequadamente independentemente dos esforços que se façam nesse sentido. Uma delas refere-se à necessidade de segurança. As nossas vidas dependem de decisões feitas por outras pessoas; não podemos controlar essas decisões e geralmente nem sequer conhecemos as pessoas que as tomam. [...] As nossas vidas dependem da manutenção dos padrões de segurança de uma central nuclear; de quanto pesticida chega à nossa alimentação ou quanta poluição ao ar que respiramos; ou da competência do nosso médico; se perdemos um emprego ou o conseguimos pode depender de decisões feitas por economistas a trabalharem para o governo ou por gestores de empresas; e por aí fora. A maior parte dos indivíduos conseguem proteger-se destas ameaças só muito limitadamente. A procura de segurança pelo indivíduo é por isso frustrada, do que resulta uma sensação de impotência.

68. Pode objectar-se que os homens primitivos estão fisicamente menos seguros que o homem moderno, como demonstra a sua menor esperança de vida; [...] mas a segurança psicológica não corresponde bem à segurança física. O que nos faz SENTIR seguros não é tanto uma segurança objectiva mas uma sensação de confiança na capacidade que temos de tomarmos conta de nós próprios. O homem primitivo, sob a ameaça de um animal feroz, ou da fome, pode lutar em sua própria defesa ou deslocar-se em busca de comida. Não tem a certeza de ter sucesso nestes esforços, mas em todo o caso não se considera indefeso contra as coisas que o ameaçam. Por seu lado, o homem moderno é ameaçado por muitas coisas em relação às quais está indefeso; acidentes nucleares, carcinogénios na comida, poluição ambiental, guerras, aumento dos impostos, violação da sua privacidade por parte de grandes organizações, fenómenos sociais ou sócio-económicos à escala nacional que podem pôr em causa o seu modo de vida.

69. [...] o homem primitivo [...] pode aceitar o risco de doença estoicamente. Faz parte da natureza das coisas, não é culpa de ninguém [...]. Mas as ameaças ao indivíduo moderno tendem a ser PRODUZIDAS PELO HOMEM. Não são produto do acaso, são-lhe IMPOSTAS por outras pessoas cujas decisões ele é, como indivíduo, incapaz de influenciar. Por conseguinte sente-se frustrado, humilhado e indignado.

70. Portanto, o homem primitivo tem uma grande parte da sua segurança nas mãos (como indivíduo ou como membro de um grupo PEQUENO) enquanto a segurança do homem moderno está nas mãos de pessoas ou organizações que são demasiado remotas ou demasiado grandes para que possa influenciá-las pessoalmente. Assim a aspiração do homem moderno à segurança tende a recair nos grupos 1 e 3; nalgumas áreas (comida, abrigo, etc.) a sua segurança é garantida meramente à custa de um esforço trivial, enquanto noutras áreas NÃO PODE alcançar segurança. (Embora simplifique grandemente as situações reais, esta comparação indica grosseira e globalmente como as condições de vida do homem moderno diferem das dos homem primitivo.)

72. A sociedade moderna é em certos aspectos extremamente permissiva. Naquilo que seja irrelevante para o funcionamento do sistema podemos em geral fazer o que nos apetecer. [...] Mas em tudo aquilo que for IMPORTANTE o sistema tende cada vez mais a regular o nosso comportamento.

73. O comportamento não é só regulado por regras explícitas ou pelo governo. O controlo é muitas vezes exercido através de coerção indirecta, ou através de pressão psicológica ou manipulação, e por organizações que não o governo, ou pelo sistema como um todo. A maior parte das organizações usa alguma forma de propaganda [nota 14] para manipular as atitudes públicas ou o comportamento. A propaganda não se limita à "publicidade" e anúncios, às vezes nem sequer as pessoas que os concebem pretendem conscientemente que o sejam. Por exemplo, o conteúdo da programação de entretenimento é uma forma poderosa de propaganda. [...]

75. Nas sociedades primitivas a vida é uma sucessão de fases. Estando as necessidades e os propósitos de uma fase satisfeitos, não há relutância em passar-se à fase seguinte. Um rapaz atravessa o processo de afirmação pessoal tornando-se um caçador, caçando não por desporto ou para realizar-se mas para conseguir carne para comer. [...] Passada esta fase, o rapaz não tem relutância em fixar-se às responsabilidades de criar uma família. (Em contraste, alguns indivíduos das sociedades modernas adiam indefinidamente terem filhos porque estão muito ocupados na demanda de alguma forma de "realização". Sugerimos que a realização de que precisam é a experiência de um processo de afirmação pessoal adequado – com objectivos verdadeiros em vez dos objectivos artificiais das actividades de substituição.) Novamente, tendo criado com sucesso os seus descendentes, atravessando o processo de afirmação pessoal de assegurar-lhes as necessidades físicas, o homem primitivo sente que já completou a sua tarefa e está preparado para aceitar a velhice (se lá chegar) e a morte. Da outra parte, muitas pessoas modernas sentem-se perturbadas pela pesrpectiva da morte, como demonstra a quantidade de esforço que investem na manutenção da boa forma física, aparência e saúde. Argumentamos que isto se deve à insatisfação por nunca se terem servido das suas capacidades físicas, isto é, nunca passaram pelo processo de afirmação pessoal usando empenhadamente os seus corpos. Não é o homem primitivo, que utilizou o seu corpo diariamente em tarefas práticas, quem receia a deterioração da idade, mas sim o homem moderno, que nunca fez um uso prático do seu corpo para além de deslocar-se do seu carro para a casa. É o homem cuja necessidade do processo de afirmação pessoal foi satisfeita durante a sua vida que está melhor preparado para aceitar o fim dessa vida.

76. [...] alguém dirá "a sociedade tem de encontrar maneira de dar a todos a oportunidade de atravessar o processo de afirmação pessoal". O valor da oportunidade seria assim destruído pelo próprio facto da sociedade a assegurar. O que as pessoas precisam é de encontrar ou criar as oportunidades para si próprias. Enquanto seja o sistema a DAR-lhes as oportunidades acaba por ter as pessoas por uma trela. Para conseguirem autonomia têm de escapar dessa trela.

77. [...] Discutamos algumas razões pelas quais há diferenças tão pronunciadas na maneira como as pessoas reagem às sociedades modernas.

79. Há pessoas que podem ter alguma aspiração excepcional cuja obtenção lhes satisfaça a sua necessidade para o processo de afirmação pessoal. Por exemplo, aqueles que têm uma ânsia invulgar de status social podem passar as suas vidas a escalarem os degraus sociais sem que alguma vez se aborreçam com esse jogo.

83. Algumas pessoas satisfazem a sua necessidade de afirmação identificando-se com alguma organização poderosa ou um movimento de massas. Um indivíduo sem objectivos ou poder adere a um movimento ou a uma organização, adopta-lhe os objectivos como sendo seus, e depois esforça-se para o alcançar desses objectivos. Uma vez atingidos, esse indivíduo, mesmo que o seu contributo pessoal fosse insignificante, sente-se [...] como se tivesse atravessado o processo de afirmação pessoal. Este fenómeno foi aproveitado por fascistas, nazis e comunistas. A nossa sociedade também o faz, se bem que menos declaradamente. [...] É um fenómeno que se vê nos exércitos, grandes empresas, partidos políticos, organizações humanitárias, movimentos religiosos ou ideológicos. [...] Mas, para a maior parte, a identificação com uma grande organização ou um movimento de massas não chega para satisfazer a necessidade de afirmação pessoal.

84. Outra maneira de satifazê-la é através de actividades de substituição. [...] Por exemplo, não há motivação prática para desenvolver músculos enormes, mandar uma pequena bolinha para dentro de um buraco ou adquirir uma série completa de selos de correio. No entanto muita gente [...] devota-se com paixão ao culturismo, ao golfe ou à filatelia. Algumas pessoas actuam muito em função dos outros, e por isso facilmente darão importância a uma actividade de substituição apenas porque as pessoas à sua volta a consideram importante, ou porque a sociedade lhes diz que é importante. É por isso que certas pessoas levam tão a peito actividades triviais na sua essência, como são os desportos, o bridge, o xadrez, ou questões académicas abstrusas, em constraste com outras que vêm com maior clareza que estas coisas não passam de actividades de substiuição, e em consequência disso nunca lhes dão importância suficiente para chegarem a achar que tais actividades lhes servem para satisfazer as suas necessidades de afirmação pessoal. Resta apenas dizer que em muitos casos o próprio ganha-pão é também uma actividade de substituição. Não PURAMENTE uma actividade de substituição, visto que parte da motivação por essa actividade é assegurar as necessidades físicas e (para alguns) um status social, assim como os luxos que a propaganda lhes faz quererem alcançar. Mas muita gente põe no seu trabalho muito mais esforço do que é necessário para ganharem o dinheiro e status que pretendem, e este esforço extra constitui uma actividade de substituição. Esse esforço extra, e o investimento emocional que o acompanha, é uma das forças mais potentes actuando a favor do contínuo desenvolvimento e aperfeiçoamento do sistema, de consequências negativas para a liberdade pessoal (ver parágrafo 131). Em particular para a maior parte dos cientistas e engenheiros criativos, o trabalho é na prática uma actividade de substituição. Este ponto é tão importante que merecerá discussão em separado (parágrafos 87 a 92).

85. [...] explicámos como muitas pessoas satisfazem a sua necessidade do processo de afirmação pessoal em maior ou menor grau. Mas pensamos que para a maioria das pessoas a necessidade do processo de afirmação pessoal não está plenamente satisfeita. Em primeiro lugar, porque aqueles que têm um apetite insaciável pelo status, ou que se "agarram" firmemente a uma actividade de substituição, ou que se identificam fortemente com um movimento ou organização para satisfazerem através deles a sua necessidade de poder, são personalidades excepcionais. Para as restantes isso não chega [...]. Em segundo lugar, porque o sistema impõe demasiado controlo, através de regulamentos ou da colectivização, resultando num défice de autonomia, e na frustração da impossibilidade de alcançar certos objectivos e necessitar refrear demasiados impulsos.

87. A ciência e a tecnologia dão-nos os mais importantes exemplos de actividades de substituição. Há cientistas que se dizem motivados pela "curiosidade", uma noção simplesmente absurda. A maior parte dos cientistas trabalham sobre problemas altamente especializados que não são objecto de nenhuma curiosidade normal. Por exemplo, terão astrónomos, matemáticos ou entomólogos curiosidade sobre as propriedades do isopropiltrimetilmetano? Claro que não. Só um químico a terá por tal coisa, e isso apenas porque a química é a sua actividade de substituição. [...] Suponha-se que a falta de financiamento para a educação pós-graduada levasse o químico a tornar-se um mediador de seguros em vez de um químico. Nesse caso ele interessar-se-ia muito por assuntos de seguros mas nem se preocuparia com o isopropiltrimetilmetano. Seja de que maneira for, não é normal que se ponha tanto tempo e esforço, como os cientistas fazem no seu trabalho, pela satisfação de mera curiosidade. A explicação da "curiosidade" para a motivação dos cientistas cai por terra.

88. A explicação do "benefício da humanidade" também não serve. [...] Certas áreas científicas criam possibilidades evidentemente perigosas. No entanto os cientistas nestas áreas são tão entusiásticos acerca dos seus trabalhos como aqueles que desenvolvem vacinas ou estudam a poluição do ar. Olhe-se o caso do Dr. Edward Teller e o seu evidente envolvimento emocional na promoção de centrais nucleares. [...] Tal como muitos outros grandes feitos científicos, é muito questionável se as centrais nucleares realmente beneficiam a humanidade. Será que a electricidade mais barata consegue contrabalançar a acumulação de desperdício radioactivo e o risco de acidentes? O Dr. Teller via apenas um lado da questão. É claro que o seu envolvimento emocional com a energia nuclear não partia de um desejo de "beneficiar a humanidade" mas de uma satisfação pessoal com o seu trabalho e com vê-lo ser posto em prática.

89. O mesmo se aplica aos cientistas em geral. Com raras excepções sempre possíveis, a sua motivação não é nem curiosidade nem um desejo de beneficiar a humanidade, mas uma necessidade de atravessar um processo de afirmação pessoal: ter um objectivo (um problema científico por resolver), desenvolver um esforço (investigação) e alcançar o objectivo (solução do problema). A ciência é uma actividade de substituição porque os cientistas trabalham principalmente para a realização que retiram do próprio trabalho.

90. É claro que não é assim tão simples. Há outras motivações com importância para muitos cientistas. Por exemplo dinheiro e status. Alguns cientistas serão pessoas do tipo com um apetite insaciável pelo status (ver parágrafo 79) e isso pode assegurar-lhes muita da motivação para o trabalho. Nem é de ter dúvidas acerca da maior ou menor susceptibilidade da maioria dos cientistas, como da maior parte da população em geral, à publicidade e às técnicas de marketing, por isso precisam de dinheiro para satisfazerem a sua ânsia de mercadorias e serviços. Assim, a ciência não é PURAMENTE uma actividade de substituição. Mas é-o em grande medida.

91. A ciência e a tecnologia constituem além disso um movimento de massas, e muitos cientistas preenchem a sua necessidade de poder pela identificação com este movimento de massas (ver parágrafo 83).

Da natureza da liberdade

Acção

Notas do texto original

[5, parágrafo 42] Pode argumentar-se que as pessoas, na maioria, não querem tomar as decisões por si próprias e preferem que os chefes pensem por elas. Há um elemento de veracidade nisto. As pessoas gostam de tomar as decisões por si próprias em pequenos assuntos, mas tomar decisões sobre questões difíceis, fundamentais, requer que se lide com conflitos psicológicos, e a maior parte detesta isso. Daí que tendam a encostar-se a outros na tomada de decisões difíceis. A maior parte das pessoas é formada por seguidores e não por chefes, mas gostam de ter acesso directo aos seus chefes e participarem até certo ponto na tomada de decisões difíceis. Pelo menos até este ponto precisam de autonomia.

[6, parágrafo 44] Alguns dos sintomas mencionados são semelhantes aos que se observam em animais enjaulados. [...]

[9, parágrafo 61] Não considerando os marginalizados. [...]

[10, parágrafo 62] Alguns sociólogos, pedagogos, profissionais de "saúde mental" e semelhantes fazem o melhor que podem para colocarem as aspirações sociais no grupo 1, tentando garantir que todos têm uma vida social satisfatória.

[11, parágrafo 63] Será que a ânsia de incessante aquisição de bens materiais é uma criação artificial da indústria publicitária e do marketing? [...] não podemos afirmar que a cultura de hoje, orientada para o consumo, seja exclusivamente uma criação da indústria publicitária e o marketing. Mas é claro que a indústria publicitária e o marketing tiveram um papel importante na criação desta cultura. As grandes empresas que gastam milhões em publicidade não iriam gastá-los sem terem provas sólidas que os iriam reaver com vendas aumentadas. Um membro de FC conheceu há anos um gestor de vendas que teve a franqueza de lhe dizer "o nosso papel é fazer as pessoas comprarem coisas que não querem nem precisam". Descreveu a seguir como um novato sem treino não vendia nada a tentar apresentar com factos certo produto aos potenciais compradores, enquanto um vendedor experiente vendeu muito do mesmo e às mesmas pessoas. [...]

[13, parágrafo 66] Os esforços dos conservadores para que se reduza a regulamentação governamental trazem poucos benefícios ao cidadão comum. Para já, apenas uma fracção dos regulamentos pode ser eliminada porque a maior parte deles são necessários. Depois, a maior parte da desregulamentação afecta os negócios e não o indivíduo médio, por isso o efeito será o de retirar poder ao governo para passá-lo para as grandes empresas. Para o cidadão médio isto significa a substituição da interferência do governo na sua vida pela interferência das grandes empresas, as quais podem por exemplo passar a poder descarregar mais químicos para a água que se bebe, provocando mais cancro. Os conservadores tomam o cidadão comum por parvo, aproveitando o seu ressentimento do Grande Estado para promoverem o poder do Grande Capital.

[14, parágrafo 73] Quando alguém aprova os fins a que se destina uma determinada campanha, em geral chama-lhe "educação" ou aplica-lhe eufemismo semelhante. Mas propaganda é propaganda, não importa o propósito para que é usada.


Introdução ao texto e notas sobre a tradução
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