Razões para escolher a vida

Nota pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa, Lisboa, 19 de Outubro de 2006

Aviso

Sou católico e compreendo perfeitamente as razões aqui expostas, que são uma exposição muito bem feita do que deve ser a posição eclesiástica sobre a interrupção voluntária da gravidez no seu todo, não apenas o que está em discussão para o referendo de Fevereiro de 2007. Mais, concordo com os princípios espirituais sobre os quais se funda esta argumentação. Contudo, vou votar "sim", pelas razões que já em 1998 me levaram a fazê-lo, as quais explicava num texto da época. Esta aparente contradição tento resolvê-la através dos comentários à nota pastoral. Que não seja vista como desrespeito, mas como uma expressão livre do que me parece em consciência ser o melhor caminho numa sociedade que se afirma laica, e na presente situação.
Paulo de Oliveira
    Referências:
  1. Texto desta nota pastoral, no site da Agência Ecclesia
  2. Nota pastoral Meditação sobre a vida (2004), do mesmo site
  3. Encíclica de João Paulo II Evangelium vitae (1995)

1. A Assembleia da República decidiu sujeitar, mais uma vez, a referendo popular o alargamento das condições legais para a interrupção voluntária da gravidez, acto vulgarmente designado por aborto voluntário. Esta proposta já foi rejeitada em referendo anterior, embora a percentagem de opiniões expressas não tivesse sido suficiente para tornar a escolha do eleitorado constitucionalmente irreversível, o que foi aproveitado pelos defensores do alargamento legal do aborto voluntário.

Não é exacto: nada nesta matéria é irreversível, pois o resultado dum referendo pode ser colocado em causa nas sessões legislativas seguintes (mal seria...); está-se talvez a fazer confusão entre carácter irreversível e carácter vinculativo. Por esta afirmação da Conferência Episcopal Portuguesa fica a ideia de haver um receio de que a sociedade civil, uma vez vendo em prática o aborto voluntário liberalizado, vire definitivamente costas aos argumentos morais da Igreja Católica (no domínio espiritual compartilho-os, note-se).
Outro aspecto a realçar é o desperdício pelo eleitorado português do tão aguardado instrumento do referendo. Não parece haver consciência do poder que lhe é de direito ao ser consultado em referendo, e a classe política bem teme esse poder e por isso não o incentiva. Só mesmo para limpar as mãos à parede em assuntos onde não consegue decidir-se.

Nós, Bispos Católicos, sentimos perplexidade acerca desta situação. Antes de mais porque acreditamos, como o fez a Igreja desde os primeiros séculos, que a vida humana, com toda a sua dignidade, existe desde o primeiro momento da concepção. Porque consideramos a vida humana um valor absoluto, a defender e a promover em todas as circunstâncias, achamos que ela não é referendável e que nenhuma lei permissiva respeita os valores éticos fundamentais acerca da Vida, o que se aplica também à Lei já aprovada. Uma hipotética vitória do "não" no próximo referendo não significa a nossa concordância com a Lei vigente.

Entre as afirmações absolutas e a realidade há sempre situações difíceis de avaliar, por exemplo quando a gravidez coloca a mãe em risco de vida essa aplicação absoluta acabaria por matá-la (e talvez ao filho)1. De qualquer maneira, não é o direito à vida que está a ser referendado, pois isso seria inconstitucional. A posição da Conferência Episcopal Portuguesa é correcta e coerente quando diz que a actual lei já o coloca em causa. Porém, nunca dei por haver pressões na sociedade para que ela seja anulada, o que a mim deixa perplexo.
O referendo de agora trata de liberalizar uma prática já corrente, nada mais. Só se vai perguntar se o que é hoje praticado clandestinamente, e em condições que a sociedade por isso se recusa a melhorar, passa a ser feito às claras, e por isso com um compromisso social de que seja feito em condições adequadas. Sobre isso também se fala mais adiante.

2. Para os fiéis católicos o aborto provocado é um pecado grave porque é uma violação do 5º Mandamento da Lei de Deus, "não matarás", e é-o mesmo quando legalmente permitido. Mas este mandamento limita-se a exprimir um valor da lei natural, fundamento de uma ética universal. O aborto não é, pois, uma questão exclusivamente de moral religiosa; ele agride valores universais de respeito pela vida. Para os crentes acresce o facto de, na Sua Lei, Deus ter confirmado que esse valor universal é Sua vontade.
Não podemos, pois, deixar de dizer aos fiéis católicos que devem votar "não" e ajudar a esclarecer outras pessoas sobre a dignidade da vida humana, desde o seu primeiro momento.
O período de debate e esclarecimento que antecede o referendo não é uma qualquer campanha política, mas sim um período de esclarecimento das consciências. A escolha no dia do referendo é uma opção de consciência, que não deve ser influenciada por políticas e correntes de opinião. Nós, os Bispos, não entramos em campanhas de tipo político, mas não podemos deixar de contribuir para o esclarecimento das consciências. Pensamos particularmente nos jovens, muitos dos quais votam pela primeira vez e para quem a vida é uma paixão e tem de ser uma descoberta.

Se queremos ser rigorosos no esclarecimento, então cite-se a fórmula completa do 5º mandamento: não matar, nem causar outro dano no corpo, ou na alma, a si mesmo ou ao próximo. Todos concordamos que mesmo uma bofetada, por mais justificada que seja, é um pecado. Mas será que pode a sociedade perseguir todos os que pecam desta maneira? Tenho para mim que compete à sociedade, através dos seus representantes mais esclarecidos ou, como é neste caso, por referendo devidamente participado, quem deve traçar a linha divisória entre o crime e a tolerância; sem rigidez dogmática, mas não deixando de ter em atenção os valores morais, e designadamente os do Cristianismo.

Assim enunciamos, de modo simples, as razões para votar "não" e escolher a Vida:

Como é muito bem expresso no primeiro ponto desta nota pastoral, votar "não" não é 'escolher a Vida', no sentido que aqui vem sendo dado. Votar "não" é, por enquanto, manter uma lei que é permissiva em certos aspectos e com a qual a Conferência Episcopal Portuguesa não concorda. Mas votar "não" deverá também abrir o caminho para uma tentativa de anular essa lei? Não é o que se tem visto desde 1998.

1ª. O ser humano está todo presente desde o início da vida, quando ela é apenas embrião. E esta é hoje uma certeza confirmada pela Ciência: todas as características e potencialidades do ser humano estão presentes no embrião. A vida é, a partir desse momento, um processo de desenvolvimento e realização progressiva, que só acabará na morte natural. O aborto provocado, sejam quais forem as razões que levam a ele, é sempre uma violência injusta contra um ser humano, que nenhuma razão justifica eticamente.

De notar o cuidado de não precisar o dito "momento" o que, com a redacção aqui utilizada, se aplica mesmo ao próprio ovo fecundado. E é verdade (a pílula do dia seguinte é por isso uma forma de aborto provocado) excepto que não há um "início" mas sim uma continuidade de vida, mediada por óvulo e espermatozóide.

2ª. A legalização não é o caminho adequado para resolver o drama do "aborto clandestino", que acrescenta aos traumas espirituais no coração da mulher-mãe que interrompe a sua gravidez, os riscos de saúde inerentes à precariedade das situações em que se consuma esse acto. Não somos insensíveis a esse drama; na confidencialidade do nosso ministério conhecemos-lhe dimensões que mais ninguém conhece. A luta contra este drama social deve empenhar todos e passa por um planeamento equilibrado da fecundidade, por um apoio decisivo às mulheres para quem a maternidade é difícil, pela dissuasão de todos os que intervêm lateralmente no processo, frequentemente com meros fins lucrativos.

A tragédia (mais do que drama) do aborto clandestino conhecem-na melhor que ninguém... não são insensíveis... e será que fazem o suficiente para travar a sua procura? Qual a parte que os Bispos devem assumir da culpa por não haver melhorias neste campo? Ou não será melhor assumirem a realidade da impotência de combater as causas? Planeamento equilibrado, apoio decisivo, dissuasão, são palavras bem escolhidas, mas vazias de actos para tantos casos de aborto clandestino.
É nesta matéria que tenho uma divergência fundamental com a posição da Conferência Episcopal Portuguesa, pois a precariedade e o vício do lucro são o que tornam a interrupção da gravidez um problema social grave. Mas a esta 'razão' que nos é transmitida, respondo apenas: resolva-se primeiro o problema nas suas causas e então as mulheres dispensarão o aborto como medida de recurso, pois na sua esmagadora maioria são 'pró-Vida'.

3ª. Não se trata de uma mera "despenalização", mas sim de uma "liberalização legalizada", pois cria-se um direito cívico, de recurso às instituições públicas de saúde, preparadas para defender a vida e pagas com dinheiro de todos os cidadãos.
"Penalizar" ou "despenalizar" o aborto clandestino, é uma questão de Direito Penal. Nunca fizemos disso uma prioridade na nossa defesa da vida, porque pensamos que as mulheres que passam por essa provação precisam mais de um tratamento social do que penal. Elas precisam de ser ajudadas e não condenadas; foi a atitude de Jesus perante a mulher surpreendida em adultério: alguém te condenou?... Eu também não te condeno. Vai e doravante não tornes a pecar".
Mas nem todas as mulheres que abortam estão nas mesmas circunstâncias e há outros intervenientes no aborto que merecem ser julgados. É que tirar a vida a um ser humano é, em si mesmo, criminoso.

Palavras justas. Só que eu não vejo mal nenhum pela nossa sociedade canalizar os seus recursos para um acto de solidariedade que é salvar as mulheres da clandestinidade. Mais ainda, ao ser feito às claras podem criar-se mecanismos de dissuasão ao nível da consulta médica: o médico tem por dever deontológico informar, aconselhar, escutar o drama da mulher grávida. E também objectar, nos casos em que verifique que a mulher abusa dum direito social de interromper a gravidez. Se aqueles que são contra a interrupção da gravidez se incomodam muito com os impostos que pagam irem para comparticipar nesse acto de solidariedade, fica tudo dito sobre a sua noção de solidariedade. Por muitas obras de caridade em que participem.

4ª. O aborto não é um direito da mulher. Ninguém tem o direito de decidir se um ser humano vive ou não vive, mesmo que seja a mãe que o acolheu no seu ventre. A mulher tem o direito de decidir se concebe ou não. Mas desde que uma vida foi gerada no seu seio, é outro ser humano, em relação ao qual tem particular obrigação de o proteger e defender.

Não é dela, de facto, é a sociedade que por lei toma em suas mãos esse direito. E é de esperar que a sociedade, em função disso, acabe por empenhar-se a sério no combate às causas. Não sei se nos países onde foi liberalizada a interrupção da gravidez houve esse impacto no empenhamento, mas é uma dedução lógica que vale tanto quanto a presunção que a mulher consegue decidir se vai conceber ou não. Isso de só engravidar quem quer não é o que a realidade mostra.

5ª. O aborto não é uma questão política, mas de direitos fundamentais. O respeito pela vida é o principal fundamento da ética, e está profundamente impresso na nossa cultura. É função das leis promoverem a prática desse respeito pela vida. A lei sobre a qual os portugueses vão ser consultados em referendo, a ser aprovada, significa a degenerescência da própria lei. Seria mais um caso em que aquilo que é legal não é moral.

É absurdo excluir os direitos fundamentais da pessoa humana do âmbito da política. E não faz mal nenhum lembrar que, em Democracia, não há contradição entre legal e imoral, pois o que não for proibido é por inerência autorizado. O que está em causa é a moralidade da proibição, e eu encontro-me entre os que a consideram imoral. Não é à toa que este problema continua a arrastar-se na nossa sociedade, pois seja num extremo, seja no outro, e mais ainda nas meias-tintas políticas da actualidade, há sempre algo de imoral na Lei.

3. Pedimos a todos os fiéis católicos e a quantos partilham connosco esta visão da vida, que se empenhem neste esclarecimento das consciências. Espero ter contribuído significativamente para tal. Façam-no com serenidade, com respeito e com um grande amor à vida. E encorajamos as pessoas e instituições que já se dedicam generosamente às mães em dificuldade e às próprias crianças que conseguiram nascer.


1 Há um filme ('Steel Magnolias') que nos mostra uma mulher que sabe desse risco e mesmo assim leva a gravidez até ao fim, e morre por isso, um belíssimo filme por sinal. Não é também aqui um crime contra a vida? E será de esperar-se que tal sentido de abnegação se aplique em todas as situações análogas?