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Interacções entre loci

Todo o fenótipo resulta da acção de uma série de genes envolvidos no seu desenvolvimento; se dizemos que um determinado indivíduo é mono-híbrido ou di-híbrido, é apenas porque a variação genotípica que ele contém, correspondente às diferenças entre os seus progenitores, envolve um ou dois loci, respectivamente. Por isso há muitas experiências em que a variação num único fenótipo em estudo resulta de mais de um par de genes alelos, podendo neste caso detectarem-se interacções entre os genes não-alélicos, portanto entre diferentes loci; nesses casos, a relação um locus ↔ um fenótipo (por exemplo um locus determinando a cor dos cotilédones e outro a forma da semente, como Mendel verificou) não se aplica, e ainda assim as duas leis de Mendel são verdadeiras: as ditas leis referem-se unicamente à transmissão dos genes pelos gâmetas, não às relações que estes estabelecem entre si para estabelecerem os fenótipos.

Em certos caracteres, ditos poligénicos (cf. "variação contínua"), o hibridismo envolve tantos loci que a individualização de classes fenotípicas atribuíveis a determinado(s) genótipo(s), na segregação a partir dos híbridos, se torna impossível, obrigando à análise estatística das populações segregantes.

As situações em que dois ou mais loci determinam em conjunto um único fenótipo só merecem designação especial quando os genes de loci diferentes tenham modos de interacção que implicam o agrupamento de genótipos, donde uma distribuição por classes na F2 (tanto a partir do selfing como ainda a partir do testcross) diferente do que já foi caracterizado na secção anterior. Descobriram-se logo a partir da 1ª década do século XX, em fenótipos cuja variação era determinada por mais de um locus, vários tipos de interacções entre loci, a que muitos autores apelidam colectivamente de epistasia, se bem que seja uma designação que só se aplica em rigor a alguns. Seguem-se exemplos no caso mais simples, que é o de dois loci de segregação independente, com dominância completa dos genes A e B.

Se os genes A e B tiverem o mesmo efeito fenotípico, sendo indiferente estar presente um ou o outro, ou até os dois, dizem-se redundantes ou duplicados, e a segregação na F2 é de 15 : 1 (selfing) ou 3 : 1 (testcross). Nilsson-Ehle (Escandinávia, 1909) apresentou um exemplo destes no cruzamento entre trigo de grão vermelho e grão branco: na F2 (F1 × F1, em que a F1 tinha grão vermelho), apenas 1/64 dos grãos eram brancos, correspondendo provavelmente a um genótipo do tipo aabbcc (redundância entre os genes dominantes A, B e C).

Se os genes A e B só produzem um efeito fenotípico quando presentes em conjunto, dizem-se complementares ou sinergísticos, obtendo-se uma segregação na F2 de 9 : 7 (selfing) ou 1 : 3 (testcross).

Uma situação duplamente de redundância e de complementaridade corresponde a quando os genes A e B, isolados, produzem um efeito fenotípico igual, formando-se uma classe reunindo os genótipos das classes A-bb e aaB-, mas diferente da classe A-B-, onde eles se complementam (9 : 6 : 1 no selfing, 1 : 2 : 1 no testcross).

A epistasia define, ao contrário das anteriores, uma hierarquia entre os dois loci: quando um certo genótipo de um locus estabelece por si só o fenótipo, independentemente do genótipo no outro locus, diz-se que o primeiro é epistático sobre o segundo, sendo o que fica "mascarado" hipostático. Considerando ainda o caso mais simples, existem duas possibilidades:

i)o efeito epistático resulta da presença de um gene dominante (digamos que é o A): resultam três classes, A---, aaB- e aabb, em que a variação no locus B/ b só é aparente na ausência do gene epistático A (12 : 3 : 1 no selfing, 2 : 1 : 1 no testcross; variante: quando o fenótipo de A--- é igual ao de aabb, produzindo duas classes fenotípicas apenas nas proporções de 13 : 3 e 3 : 1 respectivamente).

ii)o efeito epistático deriva de um gene recessivo (digamos que é o a): resultam três classes, A-B-, A-bb, e aa--, em que a variação no locus B/ b só é aparente na presença do gene dominante A no locus epistático (9 : 3 : 4 no selfing, 1 : 1 : 2 no testcross).

Exemplo

Em certos casos, através da dedução dos genótipos pela análise das populações segregantes, é possível estabelecer uma correspondência entre um determinado fenótipo e os passos do metabolismo necessários ao seu desenvolvimento. Por exemplo, considere-se a síntese dos pigmentos das pétalas resultante de uma determinada via metabólica cujos catalizadores enzimáticos são a expressão directa de genes que segregam para variações da cor das pétalas: a partir de um substrato incolor tínhamos o seguinte conjunto de reacções:

via metabólica hipotética

Figura 2 — Via metabólica hipotética de bio-síntese da pigmentação de uma flor. Cada reacção é catalizada por um de quatro enzimas (A–D), mas encontra-se bloqueada em plantas homozigóticas recessivas para o locus correspondente (por exemplo, todas as flores de genótipo aa são incolores). Seguem-se alguns exemplos de genótipos de plantas di-híbridas e os resultados que se esperariam do selfing em cada uma (com segregação independente dos 4 loci), e a sua interpretação:

Genótipo
Fenótipo
Segregação após selfing
Interpretação genética
AABbCcdd
roxo
9 roxo : 3 violeta : 3 azul : 1 incolor
sem interacção aparente
AABbCCDd
roxo
15 roxo : 1 violeta
B e D redundantes
AabbCcDD
roxo
9 roxo : 7 incolor
A e C complementares
AABbCcDD
roxo
12 roxo : 3 azul : 1 incolor
C epistático sobre B/b
AabbCCDd
roxo
9 roxo : 3 violeta : 4 incolor
a epistático sobre D/d

Note-se como, neste exemplo, os dois híbridos BbCc exemplificados podem mostrar ou não um efeito epistático dependendo do genótipo num terceiro locus (D/d): as proporções obtidas entre as classes fenotípicas podem ou não denunciar interacções de acordo com os backgrounds genéticos prevalecentes (cf. "efeitos do ambiente").

Muitos autores utilizam o termo epistasia num sentido lato para expressar qualquer tipo de interacção não-alélica, se bem que ao fazerem-no para interacções como a de redundância e de complementaridade tenham de dizer que os dois loci são epistáticos um sobre o outro, com isso não respeitando o significado etimológico do termo, que implica hierarquia entre eles.

Apesar das inúmeras incertezas que podem estar associadas a este aspecto da análise genética, foi a partir do estudo das interacções genéticas, em modelos microbiológicos como o fungo Neurospora crassa, que a partir dos anos 50 se deu um grande impulso ao desvendamento das complexas vias metabólicas das células dos eucariotas; os fenótipos correspondiam à capacidade dos micélios crescerem ou não na ausência de um determinado aminoácido, cofactor enzimático, nucleótido, etc.: os que cresciam em meio mínimo tinham todos os enzimas necessários à síntese autónoma desse composto (prototrofos); os que o requeriam para crescer (auxotrofos) eram deficientes em pelo menos um passo do metabolismo que precedia a formação desse composto nas suas células, isto porque nem todos os enzimas eram capazes de promover os respectivos passos da catálise; verificou-se que na base desses defeitos estavam mutações nos genes que os codificavam.

Acontece que o mesmo fenótipo auxotrófico pode resultar da mutação em diferentes loci, isto é, afectando diferentes passos da via metabólica respectiva. Uma das maneiras de o demonstrar consiste no cruzamento entre dois auxotrofos e obter, em proporções previstas pelas leis de Mendel, recombinantes prototróficos; por exemplo cruzando um auxotrofo Ab com um auxotrofo aB (a expressão fenotípica nos fungos é na fase haplóide), se houver segregação independente entre os dois loci a probabilidade de produzir-se na geração seguinte um haplóide AB, prototrófico, é ¼ (exactamente como no testcross, na situação em que A e B são complementares). A este resultado dá-se o nome de complementação (entre duas mutações diferentes, não-funcionais, para produzirem um fenótipo funcional)

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