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Modelo genético da variação contínua

Do empirismo experimental à capacidade de fazer previsões tem de passar-se por um desenvolvimento teórico. Os modelos genéticos para a variação contínua assumem que um número indeterminado de loci se encontram em segregação na meiose, sendo o contributo da variação alélica em cada locus relativamente pequeno em relação ao desvio-padrão da distribuição fenotípica. Diz-se assim que a hereditariedade neste tipo de distribuições é poligénica.

A partir das leis de Mendel pode deduzir-se a contribuição genética dos progenitores para os fenótipos da descendência, isto é, constroem-se modelos genéticos explicativos das respostas à selecção e/ou regressões, assim como a outros resultados experimentais com características de variação contínua. No modelo que irá ser desenvolvido aqui, assume-se que cada um desses loci segrega apenas dois alelos, por exemplo A1/A2, B1/B2, etc.; a cada um dos três genótipos, e para cada locus, corresponde um desvio positivo ou negativo referenciável ao valor intermédio entre os dois homozigóticos (cf. figura 1, "relações de dominância"):

As grandezas a e d são, junto com as frequências p (de A1) e q (de A2), os parâmetros genotípicos e populacionais que servem para descrever o efeito do locus A1/A2 na variação dos valores genotípicos G. Note-se que se atribui a frequência p ao alelo cujo homozigótico tem maior valor na escala fenotípica; é uma convenção que não implica ser esse um alelo dominante. O ponto de referência de valor 0 tem, na generalidade dos casos, um interesse meramente teórico e não é, senão em casos particulares, a média da distribuição fenotípica (M). Esta obtém-se como

M = p2a + 2pqd – q2a

ou, após rearranjo,

M = (p – q)a + 2pqd

(ainda por uma questão de simplicidade, considera-se que a população se encontra em equilíbrio de Hardy-Weinberg, e assume-se que a distribuição dos efeitos ambientais tem média 0, isto é, que a média fenotípica é igual à média dos valores genotípicos)

Alguns casos particulares:

ausência de interacção entre os alelos
d = 0
M = (1 – 2q)a
   = –(1 – 2p)a
dominância completa
d = +a
M = (1 – 2q2)a
d = –a
M = –(1 – 2p2)a
F2 de linhas puras
p = q
(d = 0)
M = 0
(d = +a)
M = ½d
(d = –a)
M = ½d
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Valores melhoradores

Dentro da população, continuando neste modelo, há dois tipos de gâmetas por locus segregante. Assim, os genótipos que os gâmetas contendo A1 produzem na geração seguinte não são exactamente os mesmos que os dos restantes gâmetas (contendo A2), resultando descendências diferentes em função duns e doutros:


 
gâmeta frequência descendência que produz valor genotípico médio da descendência
A1 p pA1A1 + qA1A2 pa + qd
A2 q pA1A2 + qA2A2 pd – qa

Imaginando uma situação em que apenas pólen de tipo A1 fosse participar na reprodução, esperar-se-ia que o M da geração seguinte fosse diferente do original. É assim que, subtraindo-se à coluna da direita a fórmula de M acima, se obtém o efeito médio (símbolo α) de cada um dos alelos:

αA1 = pa + qd – M = q[a + (q – p)d] = qα

αA2 = pd – qa – M = –p[a + (q – p)d] = –pα

O termo no parêntesis recto, α = αA1αA2, designa-se por efeito médio de substituição de um alelo pelo outro alelo, em qualquer direcção. O efeito máximo de substituir um gene pelo outro é quando o gene que entra a substituir for raro (é outra maneira de dizer que o efeito da substituição de, por exemplo, A2 por A1, αA1 = qα, é proporcional a q, o valor da frequência do gene substituído). Assim, se pela selecção estivermos a aumentar a frequência de um alelo à custa da frequência do outro alelo, a média da descendência vai reflectir essa alteração numa fracção de α, isto é: a resposta à selecção é uma função do efeito médio de substituição. Somando os efeitos médios dos genes de cada genótipo progenitor, encontram-se os respectivos valores melhoradores:

Genótipo
A1A1 A1A2 A2A2
Valor melhorador (A)
1 = 2qα α1 + α2 = (q – p)α 2 = –2pα

Por causa de adicionarem-se os efeitos médios dos dois genes de cada indivíduo se diz que o valor melhorador de cada genótipo é a componente aditiva (A) do valor genotípico G. A diferença entre G e A é o chamado desvio de dominância D (que é definido em termos populacionais, portanto diferente do parâmetro d). A seguinte tabela resume estas três componentes, uniformizando-as todas em função da média da distribuição fenotípica, M:

Genótipo
A1A1 A1A2 A2A2
Valor genotípico (G)
a – M = 2q(a – qd) d – M = (q – p)a + 2pqd a – M = –2p(a + pd)
Valor melhorador (A)
2qα (q – p)α –2pα
Desvio de dominância (D)
–2q2d 2pqd 2p2d

Note-se que os valores de D não dependem de a. Se o parâmetro d for nulo (ausência de interacção entre alelos), então G = A (variação genotípica "aditiva") e α = a.

Esta dedução não se aplica em rigor quando se trate de séries alélicas, pois pode não haver um único valor de referência 0. A formulação matemática é muito diferente, mas verifica-se que os resultados, em termos de covariâncias genotípicas (ver adiante), são os mesmos. Quanto aos problemas da interacção entre loci e desvios em relação ao equilíbrio de Hardy-Weinberg (nomeadamente um coeficiente de consanguinidade F ≠ 0) serão tratados mais adiante. Em todo o caso, são numerosos os resultados experimentais que se conhecem a darem a indicação que, na prática, não existe um erro de maior em assumir para cada locus a formulação exposta.

Fazendo-se o somatório das contribuições de todo o conjunto de k loci segregando para o fenótipo em estudo, obtêm-se

e os valores de G = A + D para cada indivíduo. Como se desconhece o genótipo desse indivíduo e por isso em que loci se aplica a expressão 2qiαi, ou (qi – pii, ou –2piαi, a formulação exacta de A (assim como as de G e D) é sempre uma incógnita. Só empiricamente, pela média dos descendentes de diferentes indivíduos, se podem avaliar os valores de uns em relação aos outros.

Neste ponto importa sobretudo reter a noção que, dentro de uma distribuição fenotípica pode existir uma distribuição de valores melhoradores, os quais dependem dos parâmetros ai, di, pi e qi para cada locus i segregante nessa distribuição; a selecção entre diferentes valores de A é o princípio em que se baseia o melhoramento por selecção.

Interacções entre loci

Quando haja interacções entre os loci segregando para uma característica, sejam elas de complementaridade, redundância, epistasia, ou ainda ligação genética, o valor genotípico pode não ser exactamente A + D, definindo-se neste caso uma terceira componente do valor genotípico G, a componente de interaccção, I = G – (A + D).

Exemplo
(segundo Falconer e MacKay)

Recordando o exemplo da pigmentação em murganhos (cf. "genes pleiotrópicos"), suponhamos uma população em equilíbrio de Hardy-Weinberg com 40% de indivíduos de genótipo bb e 20% de genótipo cece:

Classes genotípicas
B–C– B–cece bbC– bbcece
nº médio de grânulos de melanina
95 38 90 34
tamanho médio dos grânulos
1,44 0,94 0,77 0,77

Designando o fenótipo número de grânulos de melanina por X e o tamanho médio desses grânulos por Y, e assumindo equilíbrio entre os loci, temos as médias globais

MX = 0,48×95 + 0,16×38 + 0,32×90 + 0,08×34 = 83,2

MY = 0,48×1,44 + 0,16×0,94 + (0,32+0,08)×0,77 = 1,112

e os valores genotípicos por cada classe fenotípica, em referência a essas médias,

Classes
B–C– B–cece bbC– bbcece
GX
95 – 83,2 = +11,8 –45,2 +6,8 –49,2
GY
1,44 – 1,112 = +0,328 –0,172 –0,342 –0,342

e através dos quais se podem obter os valores genotípicos em cada locus:

Classes
B–C– B–cece bbC– bbcece
GX
0,8×11,8 + 0,2× – 45,2 = +0,4 –4,4 0,6×11,8 + 0,4×6,8 = +9,8 –46,8
GY
0,8×0,328 + 0,2× – 0,172 = +0,228 –0,342 0,6×0,328 + 0,4×–0,342 = +0,060 –0,240

Os valores de A + D para cada classe (B–C–, etc.) são dados pela soma entre os correspondentes valores G por locus; a diferença para o valor G observado (G – (A + D)) constitui uma estimativa do valor I para cada classe:

Classes
B–C– B–cece bbC– bbcece
AX + DX
0,4 + 9,8 = +10,2 –46,4 +5,4 –51,2
GX
+11,8 –45,2 +6,8 –49,2
IX
+1,6 –1,2 +1,4 –2,0
% de MX
+1,9 –1,4 +1,7 –2,4
AY + DY
0,228 + 0,06 = +0,288 –0,012 –0,282 –0,582
GY
+0,328 –0,172 –0,342 –0,342
IY
+0,040 –0,160 –0,060 +0,240
% de MY
+3,6 –14,4 –5,4 +21,6

A comparação entre as variáveis X e Y mostra como a epistasia do genótipo bb para a expressão de Y se traduz num desvio de interacção apreciável, nas classes cece.

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Variância aditiva

Visto que a selecção depende da existência de diferentes valores melhoradores, a variância aditiva, VA, definida como a variância dos valores melhoradores A presentes numa distribuição, é uma medida do potencial avanço dessa selecção. Por referência a M, tem-se

VA = p2(AA1A1)2 + 2pq(AA1A2)2 + q2(AA2A2)2 = 2pqα2

assim como a variância de dominância

VD = p2(DA1A1)2 + 2pq(DA1A2)2 + q2(DA2A2)2 = (2pqd)2

Para os mesmos casos particulares:

ausência de interacção entre os alelos
d = 0
VA = 2pqa2
VD = 0
dominância completa
d = +a
VA = 8pq3a2
VD = 4p2q2a2
d = –a
VA = 8p3qa2
VD = 4p2q2a2
F2 de linhas puras
p = q
(a = a)
VA = ½a2
VD = ¼d2

Considerando que não há interacções entre os k loci segregantes, pode escrever-se para qualquer distribuição

e

e, dado que COVAD = 0, a variância dos valores genotípicos, VG, define-se como

VG = VA + VD

(assumindo VI = 0)

Exemplo

Voltando ao exemplo da pigmentação do pelo, os dados dos valores de G e I (cf. "valores melhoradores") permitem agora calcular as respectivas variâncias:

Para X:

VG = 0,48×11,82 + 0,16×–45,22 + 0,32×6,82 + 0,08×–49,22 = 602,17

VI = 0,48×1,62 + 0,16×–1,22 + 0,32×1,42 + 0,08×–2,02 = 2,41 (0,4% da VG)

Para Y:

VG = 0,48×0,3282 + 0,16×–0,1722 + 0,32×–0,3422 + 0,08×–0,3422 = 0,10316

VI = 0,48×0,042 + 0,16×–0,162 + 0,32×–0,062 + 0,08×0,242 = 0,01062 (10,3% da VG)

Covariâncias genotípicas

Considerem-se dois indivíduos, P e Q, com as seguintes genealogias:

Se entre eles houver algum parentesco, haverá uma covariância genotípica positiva, a qual (novamente assumindo que não há interacção entre os loci segregando para a característica em estudo) é dada pela fórmula

rVA + uVD

Numa população em equilíbrio de Hardy-Weinberg, r = 2fPQ e u = fACfBD + fADfBC, em que os f são coeficientes de parentesco (cf. "consanguinidade").

Exemplo

Entre irmãos (por exemplo, obtidos a partir de sementes provenientes de um mesmo cruzamento), temos A = C e B = D, donde se obtém (se os progenitores não forem aparentados)

r = 2fPQ = 2 × ¼(fAA + 2fAB + fBB) = 2 × ¼(½ + 0 + ½) = ½

u = fAAfBB + f 2AB = ¼ + 0 = ¼

A tabela seguinte dá os valores de r e de u correspondentes a vários parentescos entre P e Q:

Parâmetros da covariância genotípica com outro indivíduo
Tipo de parentesco
Exemplos
r u
Identidade
mesmo clone
1 1
1º grau
progenitor (selfing)
1 ½
um dos progenitores
½ 0
irmão
½ ¼
2º grau
meio-irmão; avô; tio
¼ 0
primo direito
¼ 1/8
3º grau
bisavô; meio primo
1/8 0

Estes valores (r nomeadamente) são importantes para estimar componentes da variância genotípica em diversas situações (cf. "designs ANOVA")

Se se considerarem os valores dos coeficientes de consanguinidade FP e FQ diferentes de 0, então tem-se de dividir 2fPQ pela raiz quadrada dos produtos entre 1 + FP e 1 + FQ:

Se a interacção entre loci for significativa, considera-se que ela só será importante entre loci dois a dois, definindo-se três componentes da variância de interacção tais que

VI = r2VAA + ruVAD + u2VDD

Referindo-se AA à interacção entre loci homozigóticos, DD entre heterozigóticos, etc.. Note-se que nos parentescos em que u = 0 só VAA contribui:

Componentes da VI na covariância genotípica com outro indivíduo
Tipo de parentesco
Exemplos
VI
Identidade
mesmo clone
VAA + VAD + VDD
1º grau
progenitor (selfing)
VAA + ½VAD + ¼VDD
um dos progenitores
¼VAA
irmão
¼VAA + 1/8VAD + 1/16VDD
2º grau
meio-irmão
1/16VAA

Por conseguinte, pelo menos a VAA será de ter em conta quando se suspeita da existência de interacções entre loci. Quanto à ligação cromossómica (que, em tratando-se da segregação de muitos loci, é forçoso que exista), demonstra-se que, na ausência de desequilíbrios de ligação, e na ausência de outras interacções entre os loci ligados, não afecta a fórmula das covariâncias dada acima.

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Heritabilidade

Para que se possa realizar a selecção com expectativas de uma resposta satisfatória, em função dos efeitos médios de substituição αi, é necessário saber qual a interdependência entre os valores fenotípicos P (indicadores de quais os indivíduos a seleccionar), dos indivíduos representados nessa distribuição, e os respectivos valores melhoradores A (indicadores dos reais efeitos a esperar na média da descendência). A medida estatística dessa interdependência (a correlação rAP), tem a seguinte solução algébrica, considerando P = A + NA + E (NA designa "genotípico não-aditivo", isto é, D + I):

Sendo COVAA = VA e admitindo que COVA,NA+E = 0, fica-se com rAP = VA/ , donde se obtém

O símbolo h2 é conhecido como heritabilidade, e como a fórmula indica define-se como a proporção da variância fenotípica (calculada a partir da distribuição dos fenótipos medidos) que corresponde à variância de valores melhoradores VA. Assim, qualquer variância fenotípica pode ser decomposta em variâncias parcelares atribuíveis às interferências ambientais (VE), aos desvios de dominância e de interacção (VD e VI respectivamente), e finalmente à variância aditiva, VA. Os valores mínimo e máximo para a heritabilidade são 0 e 1, sendo o valor 0 um indicativo de que não há variação nos valores melhoradores, ou seja VA = 0. Qualquer tentativa de selecção com base nos fenótipos só poderá dar resultados (isto é, produzir respostas) se a heritabilidade não for nula. Por isso a determinação da VA numa distribuição fenotípica constitui um passo fundamental para caracterizar geneticamente uma população para o fenótipo em causa.

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