Fitas de 2001
Fitas de 2002
Uma rapariga cheia de sonhos
Revolver
O pesadelo de Darwin
Máquina zero
Orgulho e preconceito
A descida

Saw II
Munique
Match Point
Dizem por aí
Colisão
Os três enterros de um homem

Walk the line
Pecado capital
O segredo de Brokeback Mountain
Boa noite, e boa sorte
Capote
Syriana

V de vingança
Casanova
O tigre e a neve
Infiltrado
Como despachar um encalhado
Uma história de violência

Eight Below
Freedomland
O Código Da Vinci
Modigliani
Stoned
Indian, o Grande Desafio
O rafeiro
No Limiar da Verdade
O Génio do Mal (The Omen)
O sabor da paixão
Brisa de mudança
Miami Vice
Romance e cigarros
Dias de azar
A trama
A dália negra
Os filhos do Homem
O guardião
Marie Antoinette
Entre inimigos
Corrigindo Beethoven
A rainha
007 – Casino Royale
Déjà Vu
O nascimento de Cristo
Fitas de 2007
Fitas de 2008
Fitas de 2009
Fitas de 2010
Fitas de 2011
Fitas de 2012
Fitas de 2013

01 Uma rapariga cheia de sonhos / Shopgirl

Uma estrela no firmamento

A rapariguinha do shopping (Claire Danes), como que escondida no recanto mais remoto onde se vendem luvas de senhora, será de quem a procura ou de quem a encontra? Entre um homem maduro (Steve Martin) que a procurou e que, com a sua segurança e poder, lhe parece dar tudo, e um rapaz ainda à procura dum caminho para si mesmo (Jason Schwartzmann), que a encontrou e não mais a quis perder de vista, há toda a diferença que se possa conceber. O primeiro tenta ser honesto, mas nunca se entrega realmente; o segundo é atabalhoado, mas ama (mesmo parecendo não ter a certeza).
E ela, habitando num humilde apartamento onde, tanto para entrar como para sair, é preciso subir para depois descer, acende uma luzinha no firmamento-reflexo de Los Angeles à noite, vista do céu. Depois que a encontraram, essa luz irá apagar-se, porque terá outra morada, e o filme dura enquanto essa luz se mantém acesa.
Baseado num livro de Steve Martin que imagino não ser especialmente interessante (são as personagens masculinas quem aparecem mais estereotipadas, por sinal, isto sem tirar valor ao trabalho dos actores, que é muito bom), o realizador Anand Tucker tem o mérito de dar-lhe a volta por cima, oferecendo-nos um filme do hoje, bastante realista, mas poético, optimista e encantador.

02 Revolver

Filme pesado mas intrigante

Disse Júlio César, quando ainda jovem, que o nosso maior inimigo se esconde exactamente onde nunca o iríamos procurar. A personagem central deste filme é um jogador profissional que esteve na cadeia 7 anos assumindo as culpas doutros. Numa versão muito curiosa do Conde de Monte Cristo, aprende segredos extraordinários com os vizinhos da solitária, e graças a esses ensinamentos constrói um pé de meia. Aí decide tirar uma desforra daqueles que o tramaram, para ser logo apanhado numa teia de ilusões onde vai ficar bode expiatório da fúria dum grande tubarão do crime, que ninguém vê mas todos temem. Nada é o que parece, nem para ele nem para nós.
Admiravelmente dirigido por Guy Ritchie (e com um desempenho dos actores estupendo), este filme sem genéricos é um monumental thriller psicológico, colocando-nos com muita crueza no centro do mundo do crime, onde não há dó nem piedade. Há cenas difíceis de digerir, no fundo é uma história tenebrosa sobre o medo, e o que nos rimos durante este filme é um riso algo nervoso. Vale a pena, para quem aguentar.

03 O pesadelo de Darwin / Darwin's Nightmare

Pesadelo no lago Victoria

O título deste filme deriva do que teria sido uma "experiência científica": introduzir um peixe altamente voraz (a perca do Nilo ou Lates niloticus) no lago Victoria, que actualmente é território do Uganda, Tanzania e Quénia mas na altura (finais dos anos 50) era colónia britânica. A realidade é que os cientistas conhecedores da riqueza biológica do lago, e da voracidade deste predador, se opuseram a esta ideia, e por isso a introdução foi feita clandestinamente por um funcionário colonial, e ao que parece também pelos governos africanos que se seguiram. Não tem nada a ver com Darwin: foi um projecto económico a longo prazo que hoje produz 500 mil toneladas por ano deste peixe, cuja parte melhor é diariamente transportada em aviões de carga da ex-União Soviética (daí a música que se ouve no genérico), os quais talvez não tenham que voltar vazios, mas com "presentes" para África. O filme documenta em parte o desastre ecológico que os cientistas previram, mas o seu valor maior, e o documento angustiante que constitui, reside no retrato incontornável do desastre humano e social que vive à sombra deste negócio.
O documentário é um género cinematográfico que opera num terreno ao mesmo tempo armadilhado e limitativo, mas quando controla bem estas condicionantes, como aqui parece ser conseguido, tem um impacto poderoso. No final da sessão não há sorrisos nem grandes conversas, nem sequer há pressa de ir embora: as realidades, tornadas ainda mais esmagadoras com os 10 anos de tempo desde a saída deste filme, em que os acontecimentos mundiais ajudam o espectador de país rico (é o que somos) a ter delas uma consciência mais precisa, são tudo menos "light". Não ver este filme é fazer como a avestruz.

04 Máquina zero / Jarhead

Guerra? Qual guerra?

Finalmente um filme de Hollywood sobre a Guerra do Golfo! E quem senão o realizador de "Beleza Americana" para dirigir uma obra desarmante? Baseado no relato dum ex-fuzileiro que aos 20 anos foi desembarcado num mar de secura, onde a guerra já não tinha nada a ver com as gloriosas cavalgadas à "Apocalypse Now" e ainda menos com os épicos da Guerra do Pacífico contra os japoneses. O filme é dominado pela frustração de quem foi treinado e doutrinado ("jarhead" significa cabeça de frasco, e na voz off sai o comentário: um frasco vazio) para algo que não iria acontecer, e que em troca encontrou aquilo para o qual não o prepararam: seis meses de espera sob a torreira do sol para um punhado de dias em que a guerra esteve ali ao lado, mas passou ao lado — e, pelas imagens terríveis que mesmo assim presenciam, os soldados até podem bem agradecer que assim tenha sido; a traição das mulheres ou namoradas lá em casa (uma das cenas é particularmente cruel, especialmente sendo verídica como se supõe que é); a loucura. Afinal, estes jovens alistaram-se para poderem matar, e tudo o que conseguiram foi um fogo de artifício de petardos, terem a sorte de não morrerem com fogo amigo, e descarregar as armas para o ar ao som dos Public Enemy.
Realmente, na altura ninguém percebeu o que se passou na Guerra do Golfo (muito menos o Artur Albarran e todos os outros jornalistas, que foram mantidos à distância). Mas com este filme percebem-se personagens como um certo Tim McVeigh que, 4 anos depois, esventrou um edifício federal em Oklahoma, assim matando imensa gente; o terror nas faces dos iraquianos que se rendiam; o estado de espírito dos soldados americanos hoje aquartelados no Iraque. E, comicamente, porque é que um árabe não pode saudar um soldado americano com a mão esquerda, entre outras consequências dos incontáveis mitos de caserna.

05 Orgulho e preconceito / Pride & Prejudice

Não liguem à história, mas sim ao cinema

É evidente que a Jane Austen está no princípio, no meio e no fim de todas as telenovelas. Mas aqui o que importa mesmo não é o romantismo da novela, é a arte de quem fez deste filme bom cinema. A coreografia das personagens, o sabor das frases rebuscadas, o rigor das roupagens e decorações (um excelente contraponto, em registo upper-class, ao Oliver Twist de Polanski), a fotografia que deve dar óscar, tudo isto e muito mais.
Com o cabelo moreno, Keira Knightley trata de lembrar-nos Winona Ryder, não lhe faltando qualidades como actriz, assim como todo o elenco, embora eu gostasse de destacar as aparições secundárias mas interessantíssimas de Donald Sutherland (o pai) e Tom Hollander (o primo pastor de almas).

06 A descida / The descent

Sim e sopas

Elas são modernas, activas, gostam da natureza e do radical, e juntam-se para explorarem uma gruta, ao mesmo tempo que para ajudarem uma delas a recuperar do trauma de ter perdido a família num acidente. E vão preparadas, são experientes, tudo vai correr bem. Mas quando as coisas começam a correr mal (e só podia, ao longo do filme percebe-se bem porque é que aquela gruta nunca tinha sido explorada) então começam os comportamentos a alterar-se. Muito bem arquitectado até cerca de metade, este filme consegue trazer um clima especial aproveitando o tema como deve ser.
Mas porquê só até metade? Porque depois disso já sabemos o que se passa de facto e tudo se banaliza. Uma pena. Todos sabemos que no género do terror/fantástico a imaginação é tudo, e por isso é que revelar os "monstros" no filme Sinais (o tal com Mel Gibson e Joaquim Phoenix) foi o borrão na pintura de Shyamalan, que ele tão bem soube emendar na sequela, A Vila. No fim até que ficamos aliviados pelo desfecho, afinal por pouco não se extinguia o que talvez fosse o derradeiro povoamento dos americanos primitivos (nota: não sei se foi de propósito, mas o título original, The Descent, também quer dizer a ascendência evolutiva...). Não podia ser!

07 Saw II

Sentido de sobrevivência, uma saga produtiva

O tema não muda em relação ao primeiro filme da série: um grupo de pessoas foram raptadas e acordam numa casa preparada para pô-las à prova, ao seu instinto de sobrevivência. Sabem que ao fim de 2 horas morrerão intoxicadas por gás Sarin, a não ser que encontrem um antídoto que lhes permita sobreviverem até que as portas da armadilha se abram para ficarem livres. Repetidamente lhes é dito que entre eles existe a solução para se salvarem, mas é precisamente para provar que nunca serão capazes de se juntarem, para a alcançar, que ali estão. E os comportamentos suicidas vão trazendo os mais variados desfechos para as "cobaias", não esquecendo um determinado membro da autoridade (bom desempenho de Donnie Wahlberg), atraído para a armadilha mais pela culpa do que pelo dever.
A revisita, na fase apoteótica, ao mesmo cenário do filme "Saw", que iniciou a saga, onde não falta o uso da serra num duelo David-Golias, é uma ideia excelente. E o facto de todos serem levados a pensar que a salvação está numa seringa é uma alegoria muito interessante. Tecnicamente o filme é bastante bem feito, e se há defeito a apontar é mesmo a cena inicial, irrelevante (nem sequer para tazer ligação com o primeiro filme da série) e até ineficaz.
Saw é uma série de terror cheia de originalidade, e sustentada em grandes dotes de imaginação (num dos poucos elos de ligação entre os dois filmes temos o segundo autor dos argumentos, Leigh Whannell). Este segundo filme deixa no final adivinhar Saw III, e quem sabe se mais. Pelos vistos, justificadamente. Esse final, se bem que surpreendente, não é forçado: afinal, não é evidente ao longo do filme que uma das "cobaias" já tinha tomado o antídoto antes de tudo começar?

08 Munique / Munich

As aparências iludem, o filme não desilude

História real, dum operacional da Mossad (a polícia secreta israelita) chamado para uma missão emotiva (uma espécie de "olho por olho" para eliminar os terroristas palestinianos que sequestraram parte da equipa israelita nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972), este filme transporta-nos ao longo dum processo de revelação, que essa personagem terá atravessado, de como era um ínfimo peixinho a ser arrastado pelas malhas da política. E no meio da sujidade mais vil.
Apropriadamente, quase tudo o que parece não é, apesar da genuína lealdade e o espírito de missão dos cinco homens lançados nesta vingança política. Spielberg, cujos filmes são sempre de grande nível, não se poupa nos pormenores desta trama política, denunciando subtilmente um complexo xadrez onde aqueles que arriscam a vida em nome de causas políticas não sabem afinal o que significam os seus actos e qual o valor do seu sacrifício (nisso vai bem mais longe do que no "Resgato do soldado Ryan"). Nós bem vemos que os alvos a abater não são as caras que vimos na reconstituição do sequestro de Munique.
Uma chave para este jogo de ilusões é o amadorismo da equipa israelita, totalmente inadequado para o relevo que deveria ter a sua missão. De tal maneira, que quando se tratou de eliminar uma das figuras de cúpula da organização Setembro Negro eles limitaram-se a ser espectadores dum comando à séria. No fundo, eles são apenas um meio de obter informações inacessíveis para governos. E para obtê-las, não falta dinheiro. Valha a possibilidade de comprar uma cozinha bem dimensionada e equipada para ter em Nova Iorque.
Para mim, o ponto de viragem do filme, e talvez o seu ponto culminante, é a conversa que o protagonista tem com o palestiniano Ali numa escada "segura" de Atenas. Ele e Ali são inimigos, mas este não o sabe, e discute abertamente a sua perspectiva do conflito com Israel. Mesmo que fictícia, é a conversa que israelitas e palestinianos deveriam poder ter mais vezes, pois a proximidade entre eles, a começar pela carência duma terra que possam chamar de sua, é como que uma revelação (para o protagonista, para o público talvez, sem dúvida que para Spielberg). Depois deste momento, a inépcia do comando israelita torna-o alvo daqueles que atingiu, e a única vingança que realmente executam, por causa da morte dum deles, é a única que os que organizaram a missão reprovam. No final, o herói é um anti-herói, e diz não. E ouve não em troca.
Eric Bana, no papel principal, consegue transmitir-nos o que a sua personagem tem de patético, no que de certeza deve ver-se o dedo da direcção artística de Spielberg, e também é de destacar mais uma presença primorosa de Geoffrey Rush, cuja versatilidade parece não ter limites.

09 Match Point

Inconfundível toque de Mestre

Declaradamente filosófico, este filme mostra-nos o papel da Sorte na vida das pessoas. A sorte de uns e o azar de outros. E fá-lo com uma mestria que enche a sala de profunda admiração. Não há palavras. É sem dúvida um dos melhores filmes de Woody Allen, desde sempre, e para o meu gosto pessoal a mais grandiosa fita desde "Dogville" de Lars von Trier.

10 Dizem por aí / Rumor has it...

Comédia inteligente

Para quem ache importante conhecer-se quem são as pessoas por detrás dum best-seller de "ficção", aqui está uma oportunidade de ver como a ficção fica sempre aquém da realidade, e por boas razões. Mulher moderna e com origens num dos bairros mais chiques da zona de Los Angeles, a protagonista (num desempenho convincente embora por vezes exagerado de Jennifer Aniston) resiste a "arrumar as botas" num casamento tardio, mas que parece ser finalmente o certo, enquanto se conforma com uma carreira profissional cinzenta que lhe assegure milhares de quilómetros de distância dessas origens. Ao reaproximar-se para estar presente no casamento da irmã mais nova, aproxima-se também duma possível realidade que seria muito dolorosa, mas que afinal é impossível, graças aos bons préstimos futebolísticos daquele que havia de vir a ser o verdadeiro pai dela. Divertida a valer, com Kevin Costner em boa forma e Shirley MacLaine maravilhosamente pindérica, é uma boa fita.

11 Colisão / Crash

Tragédia shakesperiana com temas actuais

Na linha de filmes como Magnolia, Amor Cão ou Traffic, este filme prossegue esse tipo de cinema sem personagem central, repartindo-se por uma multiplicidade de figuras e situações mais ou menos interligadas, enquanto se centra na tragédia das vidas de pessoas comuns. Um cinema sobre o fio da navalha, pois não é cómodo de ver para ninguém. A cena donde se extrai o cartaz do filme é particularmente emocionante: um comerciante americano de origem iraniana resolve desforrar-se dum técnico de fechaduras americano de etnia hispânica, a quem ele atribui as culpas por sido assaltada a sua loja, e no momento do disparo desaba sobre ele a realidade dele próprio se tornar um criminoso, ele que até conseguiu dar condições à filha para tornar-se uma médica nos Estados Unidos e por isso se julgava uma pessoa de bem.
É um filme complexo, mas tão habilmente articulado que se compreendem facilmente os enredos paralelos. O que conta aqui é a impressão que nos fica duma sociedade em enorme tensão. O tema mais aparente é a obsessão racial em Los Angeles, mas aquele que realmente une todas as situações é a raiva, ou, como diz a personagem de Sandra Bullock, "acordar todos os dias zangada" (por sinal, isso faz as suas "amigas" socialites virarem-lhe as costas). E o efeito ainda é mais dilacerante pois trata-se na esmagadora maioria de personagens "normais" e de boa consciência, isto é, gente como os espectadores na sala.
Mas mostra-nos também a possibilidade de reconciliação.
Não é necessário saber quem é o argumentista-realizador Paul Haggis para perceber-se que Colisão é uma obra-prima. Mas já agora, é alguém que decidiu um belo dia tentar limpar a imagem de criador da série de TV "Walker, Texas Ranger" mudando-se para o cinema. Criou o argumento de "Million Dollar Baby", e para além de "Crash" deve esperar-se muito mais de muito bom.

12 Os três enterros de um homem / The Three Burials of Melquiades Estrada

Outro Western alternativo

Um coiote foi alvejado e isso trouxe a morte a um homem, depois ao matarem outro coiote esse homem foi desenterrado. E para devolver o corpo à família tem de ser desenterrado outra vez. Daí o título, para uma ideia divertida que dá ainda o ensejo raro de vermos o que está para lá dos namoros de liceu na América, os tais que vemos nos filmes de adolescentes. Mas o motivo de maior interesse desta fita é o retrato que faz duma comunidade transfronteiriça, a dos vaqueiros texanos e chihuahanos, dentro da qual as fronteiras políticas, linguísticas e sociais são absolutamente secundárias. Mesmo na omnipresença das televisões que os fazem parecer obsoletos, o código que seguem tem a sua razão de ser numa paisagem agreste mas grandiosa, com ela partilhando um delicioso anacronismo. Esse, o melhor tributo do bem enraizado texano Tommy Lee Jones, numa bela interpretação e com seguro comando da realização.
Apesar do ritmo deste filme ser bastante desigual, há muitos e bons motivos para gostar de vê-lo. E depois, não se podem perder preciosidades como as duas beldades de gerações diferentes como que a verem-se ao espelho uma na outra, a ambiguidade das autoridades, ou esse extraordinário enigma do velhote solitário abster-se de pedir que o matassem — para não levar os guardas fronteiriços a ofender a Deus, ou porque eram guardas fronteiriços?

13 Walk the line

A linha da vida dum coração pintado de negro

Filme biográfico bem feito, estupendamente interpretado, acima de tudo com um tema apaixonante que foi esse artista invulgar, Johnny Cash. A música, o sucesso, a sociedade da época, todos devidamente retratados, porém a tónica é numa alma que tanto sofreu por não encontrar calor humano em casa, seja junto dos pais ou da mulher; é isso que torna este filme uma obra com grande profundidade dramática e um grande momento para os seus principais intérpretes.
Nem pela semelhança fisionómica nem pelo timbre da voz iria sequer imaginar-se que Joaquin Phoenix seria escolha convincente, mas um bom actor consegue toda a transfiguração que seja necessária, e esta é verdadeiramente espantosa. E talvez sejam muito raros os actores que consigam transmitir como ele toda a tragédia (apesar do final feliz) da personagem real que foi Johnny Cash. Magnífico.

14 Pecado capital / Derailed

Descarrilamento ou antes mudança de agulha

Começa por uma convencional história de facadinha no matrimónio para revelar-se uma intensa história de chantagem, com direito a final feliz. Mas algo amargo: a expressão irónica do protagonista na derradeira imagem que nos dá resume toda a amoralidade que envolve as personagens e as situações. Exceptua-se a única réstea de sentimento que chega a existir, por causa da foto da filha do "alvo". O argumento é muito hábil, concretizado através de uma eficaz realização, donde sai um filme com ritmo e personagens muito convincentes. Não sei como pode ser decepção para alguém! Na interpretação, destaque para um Vincent Cassel muito... bandido!

15 O segredo de Brokeback Mountain / Brokeback Mountain

Vinte anos de solidão

Notável vivência de uma relação homossexual encurralada por barreiras de toda a espécie. E, embora se trate de um par de vaqueiros (actualizados na versão de guardadores de ovelhas), o que devia realçar-se neste filme é a riqueza e elegância com que nos põe perante uma situação que, através dos contextos sociais e das épocas (apesar de hoje nos parecer que vivemos em maior tolerância, no essencial está tudo na mesma), é universal. O dito casal prolonga-se durante quase 20 anos, vivendo um segredo que tanto é uma ameaça como um refúgio. Já depois de atribuídos os Óscares, é fácil ver como de facto é uma realização magistral a de Ang Lee, mas a interpretação de Heather Ledger é uma das outras maravilhas deste filme-arte.

16 Boa noite, e boa sorte / Good night, and good luck

No tempo em que acontecia televisão

É-nos dado acesso aos bastidores do confronto entre a redacção da televisão CBS e o "senador júnior" MacCarthy, o tal da caça às bruxas nos anos 50. Não nos pode escapar um evidente paralelo com o clima de coacção ideológica que a presidência Bush achou justificado imprimir na sequência dos ataques de 11 de Setembro de 2001, mas o mais importante não é isso, nem sequer a crónica dos eventos: é a derrota que este confronto representou para a televisão como instrumento ao serviço das virtudes democráticas. O sistema de patrocínio em troca de publicidade comercial revela-se uma forma de pressionar para que a televisão, com todo o seu potencial de condicionamento, se reduza a um instrumento de promoção do consumo, e não há coisa mais indigesta para tal fim que a elevação das consciências. Esse tom de derrota transparece no protagonista logo na primeira cena.
Grande realização, desde logo afirmada no magnífico genérico, na mestria do preto-e-branco (onde infelizmente as legendas às vezes se dão mal) e nos jogos de profundidade de campo. Clooney sabe muito bem onde é melhor colocar as câmaras, e fá-lo de maneira imaginativa; se insiste nos grandes planos é para obter grandes resultados, e o principal intérprete, David Strathairn, vence brilhantemente esse desafio. É impressionante o constraste, entre a máscara de determinação e valentia que apresenta enquanto desenrola o seu discurso perante as câmaras de televisão, e o abatimento antes e depois de estar no ar, bem revelador não só dos riscos como da coragem que na vida real era necessária para enfrentá-los. Jornalistas como Ed Murrow eram talentosos artífices da palavra, articulados e conscientes, cientes do seu estatuto. Perante isso, nem é bom pensar nos pivots da actualidade...
Excelente a ideia de entremear as cenas com os interlúdios duma cantora de jazz bastante ao estilo de Ella Fitzgerald (trata-se de Dianne Reeves), ajudando a situar no tempo (como no uso universal do tabaco, que para os dias de hoje chega a parecer chocante - Murrow morreu de cancro de pulmão nos anos 60), dando um toque de requinte e também um escape da narrativa, comparável ao de ir beber uns uísques pela noite dentro, ao bar do costume, enquanto não sai a edição dos matutinos do dia seguinte.
Filme para adultos, esclarecidos e por esclarecer.

17 Capote

Ambiguidade, ambiguidade, ambiguidade

Truman Capote crê ter inventado com "In Cold Blood" o romance documental, no Inglês original "nonfictional novel". E todo ele — o escritor — é "non": através do filme "Capote" se vê o protagonista em permanente negação, exímio praticante duma "mentira sincera" que não só lhe permite ser coqueluche no rarefeito nimbo da vanguarda literária nova-iorquina, mas também insinuar-se numa remota comunidade rural do Kansas, assim como na intimidade dum marginal esquizofrénico.
O filme "Capote" mostra-nos insistentemente a teia de ambiguidades onde o protagonista vivia enredado para sobreviver. Típico produto de um mundo decadente que se alimenta da luz dos flashes fotográficos e outras formas de aplauso, e que não se atreve a sair para outros mundos, Truman Capote pagou alto preço por ter-se atrevido, e este filme mostra-o. E é aqui, ao que parece muito mais do que na prosa "sincera" de "In Cold Blood", que se dá uma dimensão humana aos condenados, deixando-nos espreitar para lá das aparências para assim, mais uma vez, podermos lembrar que a pena de morte, consagrada na Lei, torna assassinos todos os que se julgam do lado do Bem. Especialmente quando transvestem a vingança, ou o final dum livro ambicioso, de justiça.
Ironicamente, o filme "Capote" é ele próprio um romance documental dos bastidores da escrita de "In Cold Blood". Como que "making of"a servir de pretexto para um estudo penetrante (nada apologético) da personalidade do escritor vivendo o momento culminante da sua vida, cinco anos e cinco meses cara a cara com o seu próprio destino, vividos para além da realidade. Esta vivência é o aspecto em comum entre todos os grandes criadores, no meio de todas as diferenças que os distinguem: Leonardo e a "Gioconda", Nijinskii e a "Sagração da Primavera", Fernando Pessoa e o díptico "O guardador de rebanhos"/"Ode triunfal", Chaplin e "O garoto de Charlot", Beethoven e a sinfonia "Heróica", Darwin e a viagem do Beagle...
Ressalve-se que, antes de Truman Capote ter inventado o romance documental, o mesmo já existia: pelo menos Hitchcock o tinha feito em cinema ("The Wrong Man" de 1956, com Henry Fonda, Vera Miles e Anthony Quayle), com muito menos alarido e sem ter queimado as asas no processo.
Os mais vivos aplausos para o transfigurado Philip Seymour Hoffman no protagonista, não esquecendo Clifton Collins Jr. no seu alter-ego, o argumento (adaptado) e a realização.

18 Syriana

Actual, verídico, algo deprimente

Tráfico de armas facilitado pela CIA, investigação sobre uma fusão estratégica entre duas empresas de exploração petrolífera, a sucessão num emirato do Golfo Pérsico, personagens deslocadas seja pela emigração (trabalhadores paquistaneses), pelo desfasamento (um agente da CIA que não vê como as expectativas mudaram quanto à sua acção), ou pelo lado errado da barricada (um consultor financeiro que debita incessantes tiradas sobre as realidades do tráfico energético... a quem as sabe de cor), guerra das estrelas... E, no centro de tudo, uma legião de gente cinzenta que assegura o funcionamento das engrenagens, e onde o terrorismo financeiro, o terrorismo dos serviços secretos, ou o terrorismo de capa islâmica estão sempre presentes. Gente que não brinca em serviço.
Para quem tenha interesse pela temática, é filme a não perder. No entanto, peca pelo tom pessimista e por colar-se à estilística de "Traffic". É certo que também há uma droga envolvida, a que nos agarra ao automóvel, à luz eléctrica, aos plásticos, mas como se não bastassem os realizadores que se plagiam a si mesmos, sai-nos agora um que o faz ao seu produtor executivo!

19 V de vingança / V for Vendetta

A fantasia dos Wachowski em formato Shakespeare

Lindo! E divertido, e sobretudo com a verve dos argumentistas, de novo no seu melhor com um texto subversivo de todas as submissões, riquíssimo desfiar de ideias, sugestões, desafios à consciência.
Apenas um ponto fraco: o fogo de artifício final. Não devia consumar-se, pelo menos não vejo no decurso do filme justificação para tal. Tinha de ser melhor preparado, mas melhor teria sido sublimar-se essa parte da vingança com a poesia do texto. E isso daria outra dimensão de grandiosidade a esta tragédia futurista da sempre presente culpa nossa de aceitarmos o inaceitável.

20 Casanova

Divertimento mais-que perfeito

A biografia do lendário Casanova fica para outra vez. Esta deliciosa comédia de equívocos, à base de identidades trocadas, num Veneza galante, mascarada e libertina, usa Casanova como pretexto para outras coisas. E tem a leveza de tudo o que é feito com a mais refinada elegância, sem cair na superficialidade.
Todos usamos máscaras, e até as personagens mais verdadeiras, talvez por o serem, têm necessidade de adoptarem uma (ou duas). A de Casanova cai, e Casanova deixa de ser Casanova. Então quem é (na vida real) o autor dos livros que assinou Casanova? Pouco importa, a personagem Casanova é que conta, é impessoal e intemporal. Por isso ela é importante.
A omnipresente alusão sonora a Vivaldi e as multifacetadas homenagens ao teatro são toques marcantes e acrescentam muita substância ao filme – que, repita-se, embora leve, é denso! Elenco excelente, onde a expressividade de Sienna Miller é em geral muito bem aproveitada.

21 O tigre e a neve / La Tigre e la Neve

Deslumbrante solo de Roberto Benigni

Sinceramente, receava uma espécie de "A vida é bela II", transposto para o Iraque dos primeiros tempos da queda de Saddam Hussein, portanto a continuar no registo de "libertação" onde o primeiro tinha acabado, mas nos dias de hoje. Felizmente, é um filme diferente. É a história dum poeta que larga tudo para estar junto da mulher dos seus sonhos, às portas da morte num teatro de guerra. As gargalhadas sucedem-se sem interrupção (realmente, Benigni é muito "Chaplinesque"), culminando na arma de destruição maciça que se mostrou tão útil junto ao vão de escada. É como se, num Iraque em caos ou numa Itália na paz dos bem-instalados, estar ao pé dele fosse um refúgio das misérias da vida.
Embora um furinho abaixo de "A vida é bela", "O tigre e a neve" é um filme muito bom, quase um filme a solo do seu inesgotável actor principal, que também é o realizador e co-argumentista, e tem a virtude de nos trazer, ao fim de apenas 3 anos, uma versão cinematográfica da ocupação do Iraque. Não esquecendo a referência aos génios anónimos que contribuem para operar milagres no meio da desolação.

22 Infiltrado / The Inside Man

Um herói chamado Steve

Irreverente como sempre, Spike Lee traz-nos um dos filmes com que por certo será melhor recordado, numa carreira já de si brilhante. Irreverente, pois trata-se do assalto pelo bom ladrão ao banco fundado pelo mau ladrão. A coisa é tão bem feita que as personagens chamadas para "resolver" o asssalto não só se rendem à mestria do bom ladrão como acabam por considerá-lo bom, sem mais nada, no final das contas. Tudo é relativo.
A narrativa é em flashback e no entanto somos levados a pensar que não. Spike Lee consegue deixar-nos a adivinhar (sem acertar) até ao fim, mas tal como o plano do bom ladrão, o seu traçou-o na perfeição. Mas até a perfeição precisa duma ponta de sorte: o pormenor do peito avantajado podia ter deitado tudo a perder (ao bom ladrão).
Ainda há pouco revi "Pânico a bordo/Flightplan", e na comparação percebe-se (mais uma vez) a enorme qualidade de Jodie Foster – personagens tão diferentes, tão bem assumidas, e ao mesmo tempo tão Jodie Foster! Denzel Washington nada maravilhosamente nas águas de Spike Lee, como sempre; mas o destaque, sem dúvida, vai para o duelo à distãncia entre o bom ladrão (Clive Owen, com um papel bem à maneira) e o mau ladrão (Christopher Plummer, intemporal e irrepreensível).
Que este enredo também nos lembre a importância que o nazismo teve para aqueles que dele beneficiaram. Tanta, que nunca se sabe se volta, só assim se percebem certas arcas encoiradas... à mercê da indiscrição de Steve, o infiltrado.

23 Como despachar um encalhado / Failure to Launch

Só de borla

McConaughey precisa de descolar-se dos papeis-tipo onde anda a repetir-se, a Kate Hudson é que é uma bela actriz (sublinho tanto o bela como o actriz), e se pensam que estou a falar do "Como perder o namorado em 10 dias", é quase. Nesta versão "encalhada" tudo se fica pelo quase, e só há uma desculpa para ver-se um filme destes: quando não haja outra escolha, por exemplo em casa dum amigo com menos discernimento, num expresso ou no avião. Aí ao menos está incluído no preço...

24 Uma história de violência / A History of Violence

Uma história bem contada

Joey, um sobrevivente do mundo do crime em Filadélfia, decidiu um dia retirar-se e levar uma vida normal, com família e trabalho honesto. Foi acolhido por Tom, homem pacato e respeitado, dono dum café e em cuja família se cultiva a não-violência. Até que um dia, ao fim de muitos anos, Joey tem de intervir para proteger Tom e a sua clientela dum pequeno gang de meia-tijela que calhou aparecer no café. A partir daí torna-se muito difícil para Tom continuar a ocultar Joey, e este sai da toca paa resolver os problemas que o perseguem desde o berço.
A famíla de Tom, que não sabia da existência de Joey, acabará por ser providencial: primeiro o filho, que em plena adolescência descobre o que há de Joey dentro de si; depois a mulher, uma advogada feita testemunha que se deixará possuir por Joey; e finalmente a filhota que sonha com monstros no escuro da noite, que dá as boas vindas a Joey no seu regresso.
Fita excelente, filmada um pouco na linha estética de "Mystic River", onde a direcção de actores é sublime e a concisão narrativa primorosa. Viggo Mortensen foi uma excelente escolha para protagonista, com aquele olho clarinho de anjo farsola. No restante elenco gostava de destacar Ashton Holmes no papel do filho de Tom.
Um dos melhores filmes de Cronenberg (talvez o melhor até agora), e a merecer de quem não costuma gostar deste autor algo variável o benefício da dúvida.

25 Antárctida - Da Sobrevivência ao Resgate / Eight Below

Amor e separação

A Walt Disney tem num filme como este (na linha de 'Hidalgo' da Touchstone) uma iniciativa que é cativante para adultos e crianças ao mesmo tempo, motivando para o contacto com as regiões quase virgens dos desertos da Terra (a Antárctida), focando a atenção sobre a importância da dependência do Homem do animal doméstico com quem se une por necessidade e até por amizade, acima de tudo pelo dever de leadade que os une. Vindo de quem sempre apostou nos animais domésticos (sintomaticamente, a começar por um ratinho), é no mínimo uma questão de coerência. E de militância, da que é de louvar — e continuar.
Duas notas de especial interesse: o espírito de grupo dos cães, com ocasiões abundantes para ver-se o que pode constituir um exemplo das atitudes que os humanos deveriam cultivar; e a maneira como se consegue envolver o espectador no amor aos animais, fazendo com que pelo menos alguns dos cães sejam reconhecidos pelos nomes — não como mero exercício duma mente científica treinada, mas como elo emocional.
Pode argumentar-se que a cena da disputa dos despojos duma baleia (orca) é um pouco dissonante. Mas não diria que ultrapassa os limites do aceitável, e justifica-se porque põe em relevo a necessidade de entreajuda para sobreviver na natureza. Escamotear os desafios e perigos não é, mesmo para crianças de 6 anos, a melhor ideia.

26 Freedomland – a cor do crime / Freedomland

Investigar nunca é fácil

Um garoto de 4 anos, branco, desaparecido. Isso é a realidade; se ele está morto, quem foi o culpado, onde se encontra, é o mundo de todas as especulações. E porque aconteceu em Armstrong Houses, bairro de New Jersey povoado por negros encaixado entre dois de brancos, essas especulações são explosivas. Samuel Jackson faz o papel dum polícia de investigação que pertence ao bairro, conhece todos dentro dele e tem alguma aceitação como agente da lei (afinal, são tudo boas famílias), e que vai tratar de descobrir a verdade neste caso. Recorda-me outro papel que desempenhou há anos, o do professor em '187', pela desesperante situação que representa tomar o partido da legalidade, do rigor na aplicação dos regulamentos, da ordem, da contenção e do diálogo. É como tentar fazer equilíbrio sobre a ponta dum lápis.
Junto com Julianne Moore (a mãe do miúdo desaparecido) e Edie Falco (quase irreconhecível em comparação com Mrs. Tony Soprano, a fazer de activista dum movimento cívico), e com uma excelente galeria doutros actores, Jackson tem mais uma presença brilhante. Mas foi a realização de Joe Roth (um conhecido produtor) que me impressionou mais: é um delírio acompanhar o trabalho com a iluminação, perceber o rasgo de originalidade na preparação da maior parte das cenas, onde apesar de escapar às convenções coordena os meios humanos ao seu dispor impecavelmente. Veja-se por exemplo a cena entre Jackson e Moore, a sós num quarto com vista para a repressão policial: tudo aquilo sabe a novo, tudo está feito com um profissionalismo e uma eficiência que deliciam.
Outro aspecto curioso deste filme é começar pelo caos, um caos que tanto é o das mentes das personagens como do colectivo do bairro marginalizado, e que aos poucos, à medida que a especulação se vai reduzindo, vai dando lugar à ordem.

27 O Código Da Vinci / The Da Vinci Code

Crer ou não crer não é a questão

Diz-se (eu não estou em condições de afirmá-lo por mim) que esta fita é muito fiel ao livro de Dan Brown. Nem podia fugir de sê-lo, tal é a quantidade de gente que o leu! Por isso, no que respeita ao argumento, é do livro polémico que lhe deu origem que se trata. E sem dúvida vê-se a capacidade literária de Dan Brown: é uma intriga bem arquitectada, e os sucessivos passos da "demanda" do Graal constituem uma fantasia entusiasmante.
Outra coisa, porém, é levar-se a sério o que é dito. Brown tira partido da nossa ignorância a um ponto que mal consigo imaginar. Aqui, diga-se, segue os passos da Igreja de Roma ao longo de séculos. Talvez por isso a hierarquia escolha, diplomaticamente, dar a ênfase ao papel que o livro teve em aumentar o interesse pela Bíblia. Mas se o consegue, e assim contribui para o esforço que os Católicos têm feito desde o Concílio Vaticano II, não deixa de ser através do que parece serem calúnias. Por exemplo, o que é dito sobre as causas da conversão do imperador Romano Constantino é pura aldrabice. Mas do resto, quanto é que engoli sem saber? O impacto das coisas que se dizem depende muito da ignorância de cada um.
Como puro entretenimento, mesmo assim, não é brilhante: depois de sairem de cena os maus da fita, esta torna-se bastante chata, e a música de fundo nessa fase só ajuda ao torpor. No fim, aposto que a generalidade dos espectadores sai com uma uniforme expressão de indiferença (teoria da conspiração: será que é isso que se pretende?)
O realizador Ron Howard não deixa de exercer a sua mestria, judicioso no posicionamento das câmaras, na criação de dramatismo, no equilíbrio dos encadeamentos narrativos, na direcção de actores. Mesmo assim, Tom Hanks e Jean Reno aparecem algo incaracterísticos, se bem que ao mesmo tempo Paul Bettany nos "entrega" um soberbo operacional da Opus Dei (brrr!).
O filme tem outra coisa muito boa: enche as salas de cinema, e isso dá gosto ver de vez em quando.

28 Modigliani

Loucura e arte

A primeira coisa que se lê é um aviso de que a fita apenas se baseia em factos históricos. Mas não é um filme histórico. Apesar disso, não deixa de fazer um belo esforço de realismo sobre o ambiente dos artistas de vanguarda no início do século XX (neste caso, entre 1918 e 1920, e especificamente os de Montparnase). As figuras históricas e o ambiente servem de pretexto para abordar a loucura ou, se se preferir, a alienação da realidade, neste meio. E o talvez mais excessivo de todos, Amadeu Modigliani (Andy Garcia), foi o escolhido para figura central.
A loucura e a arte formam um triângulo com a droga, seja ela haxixe e ópio, o vinho, ou a mais devastadora de todas, o absinto. A maneira como Modigliani viveu esse triângulo não o implica só a ele, mas também àqueles que o rodeavam e amavam, incluindo Jeanne Hébuterne, a mulher a quem se uniu (Elsa Zylberstein, tão central nesta fita como Garcia). À distância e literalmente uns degraus acima, o círculo que rodeia Pablo Picasso observa mas não se aproxima – à excepção do próprio Picasso, que consegue resguardar-se sem no entanto escapar ao fascínio pelos que vivem "do ar" como Modigliani, e nomeadamente por Modigliani, cuja arte não podia deixar de impressionar quem, como Picasso, tivesse olhos para ver. A relação amor-ódio entre eles, factual ou não, é em si mesma um motivo de grande interesse para ver esta fita.
O concurso, esse sim provavelmente fictício, é talvez o aspecto mais banal da fita. Mesmo assim, gostei da sequência em que se mostram os diversos concorrrentes durante a criação dos seus quadros. Apesar do seu gregarismo/ exibicionismo social, ali estão mesmo a sós consigo próprios.
Outros temas são abordados mais superificalmente, mas dignos de nota: o mercantilismo da arte (a maneira como os bens de Auguste Renoir são avaliados leva-nos miuto próximo da verdade derradeira), o anti-semitismo francês, a relação entre artista e modelo (a menina que gosta do retrato que Modigliani lhe fez, o tema dos olhos de Jeanne).
Andy Garcia faz um bom trabalho nesta fita, que remonta já a 2004. Artisticamente impecável, gostava de destacar nela a fotografia, tão texturada (é um prazer para os olhos). No lado negativo, o ter escolhido uma lógica de filme biográfico ('biopic'), pois é fazer batota, levando o espectador a deixar-se embalar pela suposta historicidade das cenas. O melhor reflexo dessa batota é a canção de Piaf, que tanto se pode ver como uma liberdade criativa como uma nota de rodapé a dizer: nada disto aconteceu. Salvo o tema da loucura e as vidas que o viveram, isso aconteceu e está magnificamente retratado.

29 Stones Anos loucos / Stoned

É uma pena que passe despercebido

Para quê um filme sobre o Rolling Stone Brian Jones? Poucos são os fãs dos Stones que sabem da sua existência, e ainda menos os que alcançam o seu significado. Olhando as fotos dos anos 60 do grupo, aquela cabeleira loira lá no meio é estranha para a maior parte, parece um intruso. Fora das ilhas britânicas, o apelo deste filme é bem capaz de ser diminuto; talvez por isso tenha sido concebido como um documento — centrado nos meses que antecederam a trágica morte do protagonista, motivado pela controvérsia sobre um crime que foi encoberto, mas pescando diversos episódios e flashes da sua vida que ilustram muito bem o que ele era como músico. Por isso é uma bela homenagem, também. Se alguém daqui a 30 anos ainda interessar-se por Brian Jones, este filme é um documento indispensável. Mas é preciso estar preparado para apreciá-lo.
Desde a fase em que baptizou o grupo com um título de Muddy Waters até às perspectivas de emparceirar com Jimi Hendrix (no que poderia ter sido a melhor solução para ambos, e uma produção musical gloriosa para todos nós), Brian Jones nunca deixou de ser um maravilhoso músico de blues. Antes dos Yardbirds, John Mayall e tudo o que no Reino Unido se seguiu no género, houve uns Rolling Stones que este filme tão bem faz reviver numa reconstituição de "Little Red Rooster", a tocarem ainda com colete e gravata, quando eram muito amigos dos recém-revelados Beatles. E como superar o solo de harmónica para o filme de Völker Schlondorff, por exemplo?
Mas os Stones aceitaram o desafio do seu produtor Andrew Loog Oldham, de se tornarem os "anti-Beatles", e com isso Brian Jones foi sendo marginalizado. Ficou para a posteridade, algo folcloricamente, a imagem dum músico que conseguia tocar qualquer instrumento para abrilhantar os arranjos das canções de Jagger e Richards, e é muito sintomático essa faceta ser ignorada neste filme, como se isso fosse algo exterior a Brian, uma tentativa de compromisso com um som que não era o dele. A sua existência fazia-se à margem da carreira dos Stones, enquanto mergulhava em todo o tipo de excessos. Teria sido assim se fosse essa carreira não tivesse sido assim "desviada"?
O golpe de misericórdia, vemo-lo na reunião em que o grupo (sintomaticamente, sem o baixista Bill Wyman) vai a sua casa dizer que o puseram fora. Objectivamente, o negócio da música não lhes deixava outra saída. E enquanto Brian se precipita de novo na "droga ilegal", os Stones seguiram em frente, tentando exorcisar o espectro do seu fundador. Se realmente o conseguiram... que o diga Mick Taylor, o exímio guitarrista de blues que o veio substituir! E, pelo menos neste filme, se deixa entrever o como isso foi doloroso para eles, especialmente para Keith Richards, cuja guitarra era o Yin da guitarra Yang de Brian Jones — não faltam os flashes com os dois a ensaiarem frente a frente o som que caracterizou o grupo nos primeiros anos, no apartamento em Londres onde passaram muita fome e frio. Depois de ver este filme, fica uma sensação bastante mais simpática sobre os Stones na sua relação com Brian Jones. Um bom trabalho, muito honesto a meu ver.
Dá para perguntar se Hendrix e Jones, se se tivessem entendido bem, se eles não teriam dado a volta por cima da indústria mafiosa que os devorou. Ambos, no espaço de pouco mais dum ano, desapareceram. E se sobre Brian Jones não há dúvidas de ter sido assassinado, no caso de Jimi Hendrix tem-se especulado sobre algo de parecido ter acontecido. Em contextos totalmente diferentes, um destino semelhante.
Falta falar sobre a personagem de Frank Thorogood, o empreiteiro contratado para fazer umas obras na casa de Brian Jones. Paddy Considine desempenha magnificamente o papel dum homem também ele marginalizado, que encontra em Brian uma porta de saída do aborrecimento em que vivia. Todos o desprezam, incluindo Brian, e quase se tornava inevitável a coisa ter dado para o torto.
Uma nota final: o facto dos actores serem fisionomicamente pouco semelhantes aos originais, o que, embora seja algo perturbador no caso do protagonista (Leo Gregory vai muito bem, assinale-se), parece ser uma opção consciente, a afastar esta fita dos 'biopics' típicos.

30 Indian, o Grande Desafio / The World's Fastest Indian

Diversão pura

Bater o recorde do mundo de velocidade numa moto de 1920, aos 70 anos, com angina de peito e sem se ter inscrito segundo as regras? O impossível pode acontecer, porque o sonho genuíno de fazer alguma coisa em grande é algo que mobiliza muitas boas vontades. A história da primeira participação de Burt Munro na semana de velocidade de Bonneville, em 1962, merecia ser contada. E merecia ter o sempre interessante Anthony Hopkins a interpretar o protagonista. E merece ser visto por muita gente, sobretudo porque nos faz bem, como terá feito a todos os que o fizeram com Munro na vida real, ter contacto com aquela jovialidade, inocência, sabedoria e desembaraço. E sempre a postos para a cortesia (e mais qualquer coisa) às senhoras. Munro sabia o que realmente contava mais na vida, e teve a felicidade de ser recompensado por isso. Fast but not furious!

31 O rafeiro / The Shaggy Dog

Canis-homem (boa curte!) Woof!

Em mais uma fantasia sobre transformações genéticas, Tim Allen descobre o que é ser cão (por vezes é muito bom!) mas também o que é ser-se visto como cão (bem pior!). Para quem desprezava os animais, é uma bem merecida e útil lição. Só à conta das cenas dele com os "mutantes" no laboratório e no carro, já vale a pena ver esta comédia.
Só é de criticar a imagem que passa dos cientistas a soldo de empresas privadas, coniventes com projectos inconfessáveis, abertos a qualquer proposta desonesta desde que pessoalmente lucrativa, desprezando qualquer escrúpulo deontológico. O risco de ficar-se a pensar que todos os cientistas são assim devia ser prevenido com uma contraponto eficaz.

32 No Limiar da Verdade / Half Light

Eles estão entre nós, mas é para nosso bem

Demi Moore numa história de suspense bem arquitectada, assumindo alguns riscos pela aparente falta de enredo e uma sensação de imobilidade até muito depois de metade que deve fazer muitos remexerem-se na cadeira, àparte os periódicos arrepios dalgumas cenas mais sobrenaturais.
Demi Moore numa personagem atraída para uma armadilha, que na sua complexidade de artista da escrita pode ser levada a pensar que está a ficar louca. Mas o sobrenatural, nem que seja nesse mundo de comunicação que são os sonhos, está de facto presente, e não só a surpreende a ela como também àqueles que lhe querem fazer mal.
Um aviso: a sequência inicial, que justifica quase tudo do desenrolar posterior da fita, parece tão mal feita que pode causar má impressão de início. Mas é de propósito: importante como inciador da acção e para não obrigar ao estafado uso do flashback, é importante que se dilua em relação ao que realmente vai ser o tema do filme. Daí o grito mudo, daí o óbvio e previsível acidente com a criança. Não é ali que está o filme, é no restante.
Boas interpretações, belas filmagens da Escócia Ulterior, mas sobretudo uma enorme habilidade narrativa que arrisca e por isso pode ser mal compreendida, mas não merece.

33 O Génio do Mal / The Omen

Às vezes mesmo-bom, às vezes sofrível

A subida do anti-Cristo à Casa Branca, apesar de todos os esforços e avisos (longamente ignorados) de quem sabia do que estava para vir. Como thriller, é preferível ao Código Brown, em cuja esteira se entretém; como produção, é bastante competente, sabe arrepiar, apesar de descambar no final para o gore primário; artisticamente, tem bons actores (embora aqui e além muito mal dirigidos), uma câmara ágil e uma montagem notável.
Mas o argumento... sinceramente, andamos a precisar dumas férias das fantasias mais ou menos bíblicas para consumo norte-americano. Já agora, Megiddo fica muito ao norte de Jerusualém, e Armageddon é que deriva desse nome e não o contrário.
http://www.tau.ac.il/humanities/archaeology/megiddo/

34O sabor da paixão / Mistress of Spices

Sabor da malagueta

Filme em parte indiano, em parte norte-americano, mas de estilo britânico na essência, tem por protagonista uma "mestre de especiarias", portadora duma cultura milenar com a qual as mais diversas especiarias têm simbolismos, ou antes, poderes. Para dominar esse poder ela tem de acatar regras espartanas que na prática a aprisionam à loja onde meio-mundo, sobretudo indianos, a procuram. Embora não seja uma obra-prima, esta fita tem uma bela actriz na protagonista, imagens muito bem trabalhadas (Shyamalan tem aqui um bom rival), e a estranha inovação de fazer das malaguetas fetiche de terror... quanto ao argumento, é uma história um pouco banal; mas enriquecida pela exploração psicológica dos dilemas inconfessáveis da protagonista e as perplexidades a que ela sujeita o homem que é objecto do seu desejo, e também pelo desafio aos tabus que lhe foram impostos.

35Brisa de mudança / The Wind that Shakes the Barley

Monumental, intenso, admirável

Numa comunidade rural da Irlanda, percorre-se o período da guerra de independência, e da subsequente guerra civil entre republicanos e tratadistas, centrando-se na vida dum jovem médico que encontrou o seu destino ao perceber que era mais urgente dar assistência a um empregado da estação de comboios do que apanhar o comboio onde seguiria para Londres. Este retrato da guerrilha irlandesa, longe dos grandes protagonistas políticos, é uma eficaz ilustração dos sofrimentos que implicou desafiar o Império Britânico. Não falta nada dos horrores duma guerra, é um filme que não se escusa a ser desagradável em nome da autenticidade. Nem todos gostarão de ir ao cinema para viver tanta crueldade, mas quem o vir vai de certeza reflectir muito sobre o que significam os Direitos Humanos que hoje se invocam por toda a parte. Apesar dos incómodos, também não deixarão de maravilhar-se com o rigor histórico, a qualidade artística, a excelência dum argumento que faz durar esta fita mais de duas horas sem que se sinta serem a mais.

36Miami Vice

Uma pena não ter soltado mais as amarras

Realização impecável, grandiosa, com abundância de imagens aéreas de estarrecer, excelente aproveitamento do carisma de Colin Farrell, um dos mais empolgantes tiroteios de que tenho memória. Mas... o argumento, apesar das inúmeras reviravoltas e alguma imprevisibilidade, não chega a ter profundidade, é como um episódio de televisão esticado, afinal traz a marca de nascimento da qual não se livrou. Apesar de toda a dimensão e brilho que o formato e a produção lhe dão, continua a ser televisão. É aqui que se nota a diferença em relação ao primeiro "Missão Impossível", por exemplo. Mas pode ser que o inevitável MV-2 ganhe mais asas, tenha mais ousadia. Há sempre uma segunda oportunidade para quem enche as cadeiras dos cinemas. E com mérito, acrescente-se.

37Romance e cigarros/ Romance & Cigarrettes

Music-hall fantasioso e divertido

Marido e mulher (James Gandolfini e Susan Sarandon) num casamento em crise, uma ruiva que debita ordinarices em sotaque Cockney e é o pretexto para a dita crise (Kate Winslet) e uma constelação de personagens à volta deles, sem esquecer o vício do cigarro que ajuda o primeiro a ganhar um sentido para a vida. Tudo isto, no bairro nova-iorquino de Queens, com intrusões constantes de trechos musicais cujas letras comentam o estado de espírito das personagens, ocasionalmente com coreografias, dá a este filme um ambiente leve e quase cómico, mas repleto de bom-gosto. Achei delicioso o texto quase metade feito de citações de canções e de resto salpicado de frases bem achadas. John Turturro, argumentista e realizador, tem à sua volta um painel de actores magnífico, e embora os secundários só tenham uma cena ou duas para brilharem cada um, brilham e de que maneira (Marie Louise Parker ao telefone, por exemplo). É um filme declaradamente diferente, desafio ganho por quem o fez, a favor de quem o há-de ver. Só pessoas irremediavelmente sérias não se divertem com ele.

38Dias de azar/ Lucky Number Slevin

Quase ninguém sai ileso

Prepare-se: morre quase tudo o que mexe neste filme! Mas isso é acessório, trata-se de ilustrar o ambiente em que vivem todas as personagens — menos duas, e só uma delas é boazinha (a improvável Lucy Liu); tal como é acessório o fétiche do realizador por papéis de parede fantasistas mas de bom gosto. Desde logo nos dizem que uma história muito antiga, de quase 30 anos atrás, move a trama. O jogo de ilusões, em que gato se transforma em rato e vice-versa, é fascinante (e os actores perfeitamente à altura do jogo, Josh Hartnett melhor que nunca, e Morgan Freeman, Bruce Willis e Ben Kingsley todos muito bem escolhidos e dirigidos), os diálogos são estonteantes, e toda a história é uma delícia. Vale a pena ver este filme.
O realizador de "Domingo Sangrento" vai além dos décors amalucados na demonstração da sua originalidade, especialmente pela montagem, que é de mestre. Também anda para trás e para a frente no tempo, à Tarantino, sem baralhar demasiado. Como senão, apenas os truques de computador (panorâmicas, etc.), acessórios (também) mas demasiado crus e metidos à força.

39A Trama / The Badge

Xerife no exílio

Este filme retrata a estupidez de (quase) todas as personagens. estupidez que se manifesta das mais diversas maneiras, não só pelos preconceitos em relação à transsexualidade e homossexualidade. Desde o xerife que distribui aquilo que não é dele até ao assassino que qualquer um de nós podemos ser, perpassa toda uma realidade vil, onde só a conjugação de esforços duma mulher que perdeu o homem que amava, e dum xerife que perdeu o seu cargo, permite descobrir como se deu a morte. Para todos os outros, um assunto essencialmente irrelevante. Filme cruel mas de grande interesse e bem realizado.

40A dália negra / The Black Dahlia

Beleza dilacerada, filme exangue

Brian de Palma e a sua lendária capacidade de brutalizar os nossos sentidos. Esta fita não é sobre um determinado crime, não é sobre os complicados jogos de espelhos e as cortinas de fumo sabiamente lançados aos detectives (que são dois pugilistas, Josh Hartnett para Mr. Ice e Aaron Eckhart para Mr. Fire), nem sobre a sordidez do underground de Hollywood versão 1946, ou os jogos mentais e deboches dos seus novos-ricos. Tudo isso está lá, e é já de si bastante indigesto. Mas esta fita existe para nos mostrar (evitando ser demasiado chocante, vá lá) um cadáver macabro. Ele domina a acção, e os protagonistas, de maneira obsessiva. A mestria de Brian de Palma, e do argumento, afundam-se também nesta obsessão. Só por isso senti-me algo desiludido, embora tenha de reconhecer o alto gabarito técnico e artístico daquilo tudo.
Também desiludiu por lembrar demasiado o "L. A. Confidential", onde é evidente que vai buscar inspirações, e ficar a perder na comparação. Sempre faz a sua diferença reunir Kevin Spacey, Russel Crowe e Kim Basinger, para darem as suas intensidades próprias. Em "A dália negra" há demasiado um estilo de banda desenhada nas personagens.

41Os filhos do Homem / Children of Men

Um valor universal — a Esperança

A primeira ficção futurista, desde o já longínquo "Strange Days", que nos mostra um mundo muito familiar e perturbadoramente realista, não obstante a quase garantida falibilidade dos detalhes. O tema condutor é o hiato de 18 anos, a partir de 2009, em que não houve quaisquer nascimentos humanos. Afecta todo o mundo por igual, enquanto continuam a nascer cães, gatos, etc.. É como uma maldição. Por isso, e no meio de toda a violência e tragédia à qual as personagens já são insensíveis (e nós...), a visão duma criança ainda tem o condão de emocionar. Profundamente. A longa sequência que nos mostra isso é poderosíssima.
Só pelo tema já vale pena ver esta fita, mesmo tendo em consideração que tem cenas "fortes" demais para o gosto de alguns. Alfonso Cuarón, cujo currículo o levara para a Inglatera, e depois para a direcção deste filme, dá-nos mais uma tacada de mestre (grande cinema, o dos modernos realizadores mexicanos), conseguindo aproveitar o que as produções Brit têm de melhor sem ceder aos tiques que geralmente borram a pintura. Por isso, também, é uma fita excelentíssima. Mas aquela marcha-funeral é um insulto aos muçulmanos.
Clive Owen faz de herói de acção relutante e forma um par muito convincente com Julianne Moore (só é pena termos pouco tempo com esta actriz), e preenche muito bem o filme no papel de protagonista. Michael Caine é adorável. A sua capacidade de ser Michael Caine fazendo-nos esquecer que é Michael Caine, é talvez o único ponto que Owen precisa de aperfeiçoar para si próprio.

42O guardião / The Guardian

Um filme que não faz ondas

Ora aqui está um exemplo de como uma interessante ideia de base — ilustrar a vida dos nadadores que vão para o meio do mar encapelado ajudar a salvar náufragos — é metida no mais convencional colete de forças que Hollywood consegue sacar. A maior parte do tempo é gasta nos sempre repetidos rituais de passagem do treino especializado, com a novidade de centrar-se no instrutor (Kevin Costner), e onde a previsibilidade das cenas é confrangedora. E se mostram as virtudes dum ensino heterodoxo orientado para a antecipação da realidade, logo nos dão a entender que vai tudo voltar à primeira forma, depois da passagem do "meteoro" que introduziu esse ensino.
O super-recruta em funções é um Ashton Kutcher com boa presença, competente dramaticamente, e Kevin Costner vai bastante bem. Já o mesmo não se pode dizer quanto ao tratamento das personagens femininas, mas o meu palpite é que o realizador Andrew Davis não sabe o que fazer com elas. A favor dele, porém, temos a impecável arte cinematográfica: ficar à espera do DVD para ver a fita é capaz de ser má ideia.
No fim, salva-se a ideia de base, e quem ficar para o genérico final é premiado com uma bela sequência de imagens ilustrando fases históricas destes nadadores.

43Marie Antoinette

Crespúsculo sobre Versalhes

Versalhes começou por ser a extravagância de Luís XIV, e durou como tal pouco mais de cem anos, esplendorosos anos. Contar a história de Maria Antonieta é introduzir-nos nessa redoma de sonho, da qual só tínhamos no cinema, recentemente, uns relances do início com o próprio Luís XIV ("O rei dança") e os pontos de vista duma certa aristocracia ("Ridículo") e outra aristocracia ("O caso do colar"), perto do fim. A fita de Sofia Coppola faz-lhe jus: os trajos, os repastos, os cerimoniais, tudo o que contribuiu para esse esplendor, está lá. Um colar de brilhantes a mais ou a menos, o que era isso, de facto?
Visto dali, o resto do mundo é um lugar irreal. E ninguém melhor que Kirsten Dunst, como sempre a rainha dos filmes de adolescentes, para vestir-se desta princesa austríaca que reinou numa casinha de bonecas — a cereja no alto do mais belo, aparatoso e frágil bolo que o Antigo Regime armou. Ela é magnífica.
Tirando isso, é uma fita que perde ritmo à medida que o tempo avança, mas no fundo que melhor maneira para nos mostrar o tédio daquilo tudo?

44Entre inimigos / The Departed

Filme da pesada

Houve "Taxi Driver", houve "Raging Bull", e com isso Martin Scorcese já seria um grande autor de cinema. Não muito regular e espaçando muito a sua produção (talvez não voluntariamente, não é impunemente que se realiza "A última tentação de Cristo"), parece ter ganho novo alento com "Aviator", mas é com este "The Departed" que os astros se voltam a conjugar para um Scorcese ao mais alto nível. E como é bem-vindo!
O tema é definido pelo formidável capanga personalizado por Jack Nicholson: onde está a diferença entre ser-se polícia ou ladrão, quando nos apontam uma arma carregada? A pertinência da questão vai-se materializando através dos inúmeros agentes duplos presentes nos dois lados demarcados pela lei, povoados por irlandeses de Boston, que só podem ser uma coisa ou a outra. Raramente o pavor (neste caso, o de ser desmascarado) foi tão poderosamente representado. As referências a Shakespeare não são gratuitas, pois esta fita tem a grandiosidade das tragédias do dramaturgo.
Só há dois pormenores de que não gostei: a ratazana no final, um detalhe fútil e banalizador, e a personagem da psicóloga, dada por uma Vera Farmiga nada à altura dos excelentes Leonardo diCaprio e Matt Damon com quem contracena. Tenho a certeza que Ashley Judd, Helen Hunt ou Julianne Moore, já para não pedir Jodie Foster, fariam desta personagem uma experiência muito mais empolgante. Não que tais pormenores cheguem para diminuir a genuína maravilha que é esta fita.

45Corrigindo Beethoven / Copying Beethoven

Entre o melhor e o pior

    Pontos altos desta fita:
  1. Ed Harris parece ter nascido para ser Beethoven no écan. Muito mais do que uma peruca e uma barriga, este tão subestimado actor norte-americano enverga uma personalidade e um carisma que muitos tentam e quase nenhum consegue. Magnífico.
  2. Toda a cena da estreia da Nona Sinfonia é uma autêntica proeza cinematográfica, em que a condensação do tempo não sacrifica, até evidencia o efeito avassalador que terá tido essa audição, para os abençoados por lá terem estado em 1824 — um acontecimento que ecoou por todo o século XIX na Europa. A obra é ouvida duma ponta à outra, mas de forma resumida por saltos muito bem calculados, e o pormenor da marcação do tempo pela copista pode parecer anedótico, mas é uma maneira brilhante de evitar que seja um mero concerto encravado dentro do filme, a continuidade é perfeita.
  3. O argumento (a chancela dos argumentistas de "Ali" e "Nixon" é aqui bem patente) oferece-nos uma interessante meditação sobre o que foi a actividade criativa do grande compositor naqueles últimos anos de vida — daí que o título original tenha um sentido mais amplo: a sombra do Beethoven clássico (como exemplificado pela lista de sonatas de piano) era de tal maneira omnipresente, que parecia impossível a todos, incluindo ao próprio, escapar-lhe. Aquele a quem chamavam o anti-Cristo da música criou obras livres dessa sombra para poder chegar mais perto do que ele próprio sentia como a presença divina através da música. E se não o compreendiam, era porque a expectativa era sempre a de uma nova cópia. Quem era surdo afinal?
  4. A música é interpretada impecavelmente.
Isto, para dizer que vale a pena ver esta fita, apesar de tudo. Pois é claramente deficiente em muitos aspectos, e ainda por cima há cenas confrangedoras (como a do ditado musical no leito da morte) que, para além de serem uma cópia (de "Amadeus"), são cópia adulterada. Tendo em conta a categoria dos argumentistas e da realizadora, será culpa da produção? Para mim, a melhor reconstituição com este compositor ainda é o telefilme inglês dum ensaio da sinfonia Bonaparte/Eroica (Eroica, 2003).

46A rainha / The Queen

Decifrem o veado

O famoso episódio das dúvidas protocolares que assaltaram a família real britânica por causa do funeral da ex-princesa Diana, contado quase como um diálogo à distância entre o PM Blair e a rainha. O extraordinário trabalho dos actores (e respectiva direcção, claro) justifica ver o filme. Nem Helen Mirren nem Michael Sheen nem James Cromwell nem Alex Jennings se parecem bastante com os seus representados, e no entanto...

47007 – Casino Royale / Casino Royale

Reiniciando o sistema com argumentos espectaculares

Muito movimento tem este filme! Uma história algo longa (mais de 2 horas) que não se arrasta, antes nos dá um fartote de espectáculo a todos os níveis. Excepto talvez na tecnologia, menos em evidência e ainda bem (transferências wireless, diagnósticos online, e pouco mais — é uma área tão volátil que é fácil tornar-se ridículo já quando sair em DVD, quanto mais...).
É claro que o argumento tem de ser superficial, apesar das engenhosas voltas e reviravoltas que desconfio terem o selo de Paul Haggis argumentista; e que Bond e os supervilões continuam a ser sobrehumanos; e que as Bond Girls (Eva Green e Caterine Murino) são lindas; e que o clima é muito West-cêntrico, no que aos poucos se vai tornando algo anacrónico. Mas o 'rebooting' da série, através dum actor (Daniel Craig) o mais possível contrastante com o antecessor imediato Pierce Brosnan, é muito bem sucedido, sem dúvida. O físico atlético condiz à perfeição com as correrias e pancadarias em que se envolve; não deixa de ter pontaria com armas, mas é mesmo numa de full-contact que Bond resolve muitos dos seus conflitos com os mauzões. São de antologia as cenas com supervilões afro (a perseguição acrobática nas Bahamas, o duelo na escada de serviço) e a do impedimento do atentado. E isto, a par da cena da tortura, mostra-nos um Bond que dá mas também leva que se farta; não é coisa para os estilizados Roger Moore ou Pierce Brosnan, de facto. Há quem diga que a descrição de Ian Fleming se aproxima mais deste Bond brigão, ao qual o smoking não fica mal mas não é uma segunda pele. Aliás, se há aspecto deste filme que não funciona tão bem, a meu ver, é o talento para as cartas: uma mente matemática não costuma vir na mesma encomenda que um físico preparado para a porrada (uma incongruência semelhante viu-se no Hugh Jackman de 'Swordfish').
O restante cast é excelente, com destaque para Eva Green (perfeita como contabilista, mas abusam um bocado do look anos 20 para ela, não é que fique mal mas...) e Mads Mikkelsen (o vilão das lágrimas de sangue). Falando mais propriamente de Craig, ele confirma as suas boas qualidades de actor, especialmente na sua expressão oral e também no domínio da expressão facial, aparte o recorte físico. Mas, antes de considerar-se a questão de ser louro de olhos claros (Roger Moore também é, mas ninguém se quer lembrar disso quando criticam a escolha de Craig), é o facies tipo eslavo que mais provoca alguma perplexidade com ele, se bem que o seu pedigree pessoal seja Brit de gema. Russel Crowe, na minha opinião, teria sido uma escolha bem melhor para este 'rebooting', mas talvez boa demais para a saga Bond (e de resto provém das colonies, experiência cujo precedente com George Lazemby não foi auspicioso).
Contudo, dentro das pretensões de puro entretenimento que a máquina Bond visa, o filme tem uma realização soberba e também por isso resulta bem; e é justo afirmar que no global Craig tem um excelente comportamento, valorizando a fita no seu todo; vale a pena ver como é que na continuação vai evoluir a série, através da caracterização que ele for fazendo nos próximos filmes.

48Déjà vu

Agarrar o passado

Um atentado terrorista em Nova Orleães (pós-Katrina), e uma mulher que apareceu morta talvez em ligação com o atentado, levam um investigador policial (Denzel Washington) a colaborar numa equipa que pretende identificar o terrorista (Jim Caviezel), tentando apanhá-lo em flagrante na sua preparação usando uma tecnologia avançada que consegue ver o passado em qualquer ponto da cidade. Os chefes (Val Kilmer e Bruce Greenwood) ficam satisfeitos com a identificação e detenção, mas o investigador quer levar a tecnologia mais longe: fazer com que o atentado e o assassínio da mulher (a bela Paula Patton) não aconteçam... melhor, não tivessem acontecido.
O tema da tentação de corrigir o passado já passou por vários filmes, mas este sabe ser diferente, sabe ser convincente, e tem cenas do mais perfeito suspense (e ouvir 'Don't Worry Baby' dos Beach Boys é cá um bónus...). Se os actores mais conhecidos estão apenas ao nível da competência, e se a fantasia tecnológica pode ser de gosto duvidoso para alguns, o que conta mais são as qualidades de realização, imaginativa e servida por uma fotografia soberba, e o brilhantismo do argumento, que lida quase "a brincar" com as complexidades da noção do tempo (há até uma cena em que presente e passado entram em simultâneo pelos olhos do investigador, é genial). Todo o processo de investigação está fantasticamente representado, com a natural progressão desde os indícios aparentemente desconexos até à revelação do seu significado — um puzzle reconstruído à Sherlock. E não pode deixar de mencionar-se o remorso do protagonista sobre o destino do seu colega de gabinete, na dúvida do que teria sido se não tivesse tentado salvar toda aquela gente (bem, a menina em particular), importante no contexto da mensagem de andar a "curvar" o passado.
Só não é de aplaudir a última cena, mesmo pelo contrário: um happy end totalmente despropositado, e mal amanhado ainda por cima. Mas é o menos. Vale a pena ir ver e aguentar até ao fim... ou quase até lá.

49O nascimento de Cristo / Nativity Story

A Palestina de há 2000 anos, tal e qual

Entre "A Última Tentação de Cristo"e "A Paixão de Cristo", houve 16 anos de quase ausência de filmes sobre a vida de Jesus, excepção feita apenas a dois duma série intitulada Visual Bible (Evangelho segundo Mateus, e segundo João). O primeiro levou ao extremo uma tendência fantasiosa que levou a incompreensões desnecessárias, apesar dos grandes méritos que tinha, enquanto o segundo trouxe ao de cima um gosto pelo rigor, quanto à letra do Novo Testamento assim com aos factos da História. A história da Natividade, que agora nos chega, é claramente nas linhas desse gosto.
No topo das qualidades desta fita coloco o cuidado em reconstituir a vida quotidiana nas aldeias da Galileia, algo que quase não se lê no Novo Testamento por talvez parecer demasiado óbvio a quem escrevia, apenas nos tendo ficado referências ao contexto de opressão e penúria que se vivia então. Aldeias perfeitamente normais, apenas perturbadas pela sombra dum rei-fantoche (Herodes, pelo grande Ciarán Hinds), e dum exército pagão ocupante. Com esta fita é-nos possível entender como, mesmo que sem negar a tradição judaica, a vinda de Jesus significou várias rupturas com costumes e modos de pensar, e logo desde a sua concepção. Só por isso, o filme é uma revelação.
Mas há a própria vivência de Maria e José, admiravelmente representada por um par de actores muito bem escolhidos e dirigidos (Keisha Castle-Hughes, Oscar Isaac). E há a cena do nascimento e da adoração pelos pastores e pelos Magos, uma visão — não há outro termo — plena de beleza e drama, transmitindo-nos ao mesmo tempo a humildade e a transcendência daquele momento.

Nazaré

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