Fitas de 2001
Fitas de 2002
Fitas de 2006
Babel
Apocalypto
As bandeiras dos nossos pais
Diamante de sangue
Bobby
A profecia celestina

O último rei da Escócia
Cartas de Iwo Jima
Assalto e intromissão
O bom pastor
Em busca da felicidade
O mundo encantado de Beatrix Potter

Hollywoodland
O véu pintado
Dreamgirls
La vie en rose
Ruptura
Zodiac

O labirinto do fauno
Ocean's 13
Teresa, o Corpo de Cristo
Die Hard 4.0
Bug
À prova de morte
 

Os Simpsons: o filme
Lady Chatterley
Golpe quase perfeito
Nem contigo nem sem ti
Alpha Dog
Os fantasmas de Goya
A face oculta de Mr. Brooks
Ratatui
Ultimato
A juventude de Jane
Estás Cada Vez Mais Frito, Meu!
Espírito indomável
Um Azar do Caraças
Corrupção
Gangster americano
Peões em jogo
A bússola dourada
Promessas perigosas
  Fitas de 2008
Fitas de 2009
Fitas de 2010
Fitas de 2011
Fitas de 2012
Fitas de 2013

1Babel

A globalização em filme

— Porque estamos a fugir, fizeste alguma coisa de mal?
— Não, mas eles julgam que fiz.
— Mas se não fizeste, é porque és má?
— Não, não sou má. Mas fiz uma coisa estúpida.
Este diálogo (reproduzido de memória), e a questão mais geral das barreiras de comunicação, resumem a temática nesta fita, aplicada em várias histórias que não são exactamente paralelas mas são contadas em paralelo, uma variante da salada Tarantino onde Iñárritu, o realizador, é mestre. Essas histórias ligam-se entre si por uma espingarda de caça, e as tragédias que se desenrolam não são apagadas com a destruição da espingarda, pois as armas de fogo existem em todo o lado e provocam tragédias onde quer que sejam usadas: a espingarda vêmo-la em Marrocos, mas tanto no Japão como no México há pistolas que também condicionam vidas. Este cariz da globalização lembra "Syriana", embora para melhor.
É interessante, bem feito e muito bem desempenhado, só não gostei dum certo arrastar das cenas na noite em Tóquio. Mas ainda tenho esperanças que Iñárritu nos leve mais longe. O episódio que ele incluiu em "11'09''01" ainda é um testemunho incomparável do génio deste realizador, e em toda a sua restante obra se revela com grandes ideias no campo estético, algo já raro nesta indústria.

2Apocalypto

Fuga e coragem

Duas aldeias no meio da selva junto ao Golfo do México são destruídas por traficantes de seres humanos, no que se sabe ter sido habitual nas civilizações pré-colombianas. Este filme começa por fazer uma citação onde se diz qualquer coisa como as civilizações terem primeiro de autodestruir-se para que possam ser conquistadas. A palavra do título é usada no sentido de "fim dos tempos", desaparecimento, sobrevivência só dos pequenos que apenas podem fazer perdurar alguns traços culturais. Em jeito de remate, os OFNIs da profecia.
Este filme de Gibson contrasta com os anteriores por ser algo pretensioso, e também por misturar em certos pormenores datas, locais, épocas e civilizações. Mas mantém em comum com eles o nível técnico e artístico elevadíssimo, o gosto pelo sangue, o uso de línguas inauditas (no caso do escocês antecedeu "Trainspotting"), e a simbiose entre o rigor documental e o poder dramático. Apesar de tornar-se um pouco alongado, de ter certas banalidades (o ajuste de contas em duelo à faroeste é tãão previsível), e de ter cenas bem cruéis, vale a pena ver.
Apocalipse quer dizer, na verdade, Revelação, e é uma das modalidades de mensagem bíblica. Depois de ver-se este filme, quem for ao México visitar aquelas pirâmides esquecidas no meio da selva mexicana já perceberá o que eram: locais da mais brutal e sanguinária bestialidade ritualizada. Quem sabe se o objectivo de Gibson também é mostrar-nos a importância do Cristianismo para os valores civilizacionais que hoje temos...

3As bandeiras dos nossos pais / Flags of Our Fathers

Um instante fixado em pedra

Baseado no livro do filho dum dos heróis da bandeira, centra-se em três soldados que combateram em Iwo Jima e viram tantos dos seus companheiros morrerem das mais diversas maneiras. Avaliar este filme sabendo que existe um correspondente visto pelo lado japonês é talvez prematuro, mas consegue-se apreciar o heroísmo colectivo de estar lá porque todos os outros companheiros precisavam; não os generais ou os políticos, mas os que ao lado deles arriscavam a vida.
É especialmente bem sucedida a intercalação entre as cenas de batalha e as da campanha de angariação de fundos, montagem excelente, contraste dramático soberbo.

4Diamante de sangue / Blood Diamond

Pantera cor-de-rosa do século XXI...

...ou como a nossa percepção do mundo mudou nestes mais de 40 anos.

Eis a tragédia africana, de ser politicamente independente para sofrer ainda mais pela cobiça das suas riquezas. A história situa-se nas vésperas do chamado Processo de Kimberley, nome da cidade sul-africana onde se acordou em 2000 um modo de acabar com o tráfico de diamantes e assim deixar de contribuir financeiramente para os conflitos armados, em África e no resto do mundo (Jonas Savimby não durou muito depois disso). São particularmente dolorosas as imagens das crianças-soldado, endurecidas num cenário de guerra que corta esses rapazes de todo o seu passado, inclusive da família, e lhes compromete o futuro que talvez pudessem conquistar se tivessem infâncias normais. Di Caprio faz um excelente papel de contrabandista de diamantes, também ele outrora uma criança-soldado fugida da sua terra-natal, o Zimbabwe: cínico, cheio de expedientes, sem casa, sem nada de seu. Mas o contacto com uma jornalista interessada em denunciar o tráfico (Jennifer Connely) e um pai que coloca a reunião da sua família acima até da própria vida (Djimon Hounsou) restitui-lhe alguma humanidade e a vontade de ir para além da mera sobrevivência. Ele bem sabe o valor que o diamante cor-de-rosa e as informações do seu caderninho têm para acabar com o tráfico onde, evidentemente, ele é participante porque a vida não lhe deu outra escolha.
Bom, mesmo bom filme, não só pela arte mas pela capacidade de nos despertar para a realidade da África "independente".

5Bobby

Um dia no hotel Ambassador

Na cozinha daquele hotel se juntaram os destinos de várias pessoas que foram testemunhas ou vítimas colaterais do assassínio de Robert Kennedy (Bobby). Intercalando as imagens da época e muitos, muitos discursos do então senador candidato a representante do Partido Democrático para as eleições presidenciais de 1968, é-nos dada uma galeria de actores muito conhecidos a fazerem os papéis de pessoas comuns que, por diferentíssimas razões, se encontravam ali. Ou não fossem colegas actores o realizador (Emílio Estevez) e um produtor executivo (Anthony Hopkins).
No entanto, o filme sabe a pouco em termos de dramatismo, quase é um documentário algo alongado e sensaborão. Mas merece a pena em três aspectos, na minha opinião: o interessantíssimo casal gerente-cabeleireira (Wlliam Macy e Sharon Stone), algumas cenas na cozinha ameio do dia (especialmente as tiradas de Lawrence Fishburne), e o discurso sobre a violência de Bobby que acompanha as imagens finais — ouvindo-o, não admira que o quisessem matar; como diz uma das personagens, depois de Bobby já não ficou ninguém. O pormenor da jornalista checoslovaca serve ainda para lembrar-nos como a esperança depositada em Bobby ia além do quintal norte-americano, coisa que é muito invulgar no cinema de Hollywood.

6A profecia celestina / The Celestine Prophecy

Filme desajeitado

O tema até que é interessante, é como se fosse um livro de auto-ajuda (aliás, deriva dum que foi um best-seller nos anos 90, ver em celestinevision.com). Uma espécie de gnose que permitiria sentir para além do que se convenciona ser real, inclusivamente para além dos limites do tempo. Misticismos àparte, sabendo transpor-se para a vida pessoal as "revelações", estão ali verdadeiros tesouros de sabedoria, uma chave para compreender o que é um caminho espiritualmente rico e em paz. É justo reconhecê-lo.
Mas a realização é fraquinha, o argumento débil, os actores (Joaquim de Almeida incluído) desinteressantes, tudo é mal-feito, vejam-se os diálogos em espanhol mal pronunciado ou a referência a um papa no século IV ou V antes (!) de Cristo e a escrever em hebraico.
Se querem transpor o livro para cinema, têm de tentar outra vez.

7O último rei da Escócia / The Last King of Scotland

Aventuras do macaco branco

Um médico escocês acabado de formar, desejoso de aventura e de escapar da sombra do pai, vivendo em corpo e espírito os sensuais anos 70, vai trabalhar para um hospital rural no Uganda. E logo o seu caminho cruza-se com o do novo Presidente do Uganda, Idi Amin, e daí começa uma associação que dura vários anos, vividos no círculo mais íntimo deste ditador africano, como médico pessoal e da família, e também como conselheiro. O que no início é a plena satisfação dos seus desejos acaba por tornar-se num pesadelo, a certo ponto escapando por um triz de ter uma morte cruel segundo ritos tribais.
Filme inspirado em personagens e acontecimentos históricos, não precisa de ser rigoroso em relação à historicidade para ser o talvez mais efectivo documento duma doença incurável, o poder. É inútil ser-se médico de pacientes com esta doença. A personagem de Idi Amin (Forrest Whittaker é excelente) mostra-nos o que se revela nos seus portadores (ou possuídos): paranóia, mentira, maldade, desrespeito... E no final a sala está emudecida perante tal espectáculo, ainda atónita com o ódio que tais personagens podem fazer sentir.
Teria sido melhor para o médico (muito bem protagonizado por James McAvoy) ter voltado para o hospital no campo e continuado no caminho inicial? Pelo relance que temos da inglesa que ele lá conhecera, percebe-se que acabaria por ter fugido do Uganda à mesma, que teria assistido a outros horrores.
Pelo menos pôde contar ao mundo o que viu dum ditador, afinal, nem melhor nem pior que os outros. É tão bom viver em democracia!

8Cartas de Iwo Jima / Letters of Iwo Jima

Entre o general e o soldado

A mesma batalha, do outro lado. O que quase sempre é feito num mesmo filme, Eastwood separou em dois filmes. E, apesar de manter o ritmo algo moroso, é muito, muito eficiente. A intenção fica evidente no momento supremo — a leitura duma carta, que um soldado americano trazia consigo, da sua mãe, traduzida para os soldados japoneses — só a bandeira é que distingue os campos em contenda. A outro nível, oficiais japoneses cumprindo o seu dever de militares contra um inimigo que aprenderam a conhecer em tempos mais felizes, e que admiravam.
Pode tomar-se como mais uma obra a denunciar o absurdo da guerra, em tons propositadamente penumbrosos, mas é especial. E é indispensável ver o outro filme, como aliás vice-versa. Por exemplo para ver-se como o içar daquela bandeira foi totalmente diferente em significado para os dois lados, no jogo de escondidas que foi aquela batalha ao longo de várias semanas.
Este filme de mestre centra-se em duas personagens: o general que comandou as tropas japonesas, e um soldado raso. Duas vivências da batalha, contrastantes o mais possível, mas que se encontram em vários momentos. E, voltando ao tema do heroísmo, cada um teve oportunidade de ser herói à sua maneira. De tudo o que se podia salvar do fogo, o soldado raso elegeu o que era ao mesmo tempo mais banal e ao mesmo tempo mais importante. Como a carta ao rapaz americano também soube ser.
Pelo meio, todo o tipo de personagens, como eles encerradas pela avalanche de americanos, dum lado, pela falta de apoio estratégico, do outro, e pelos códigos de honra, dentro de si mesmos. Não deixa de ser irónico que um dos sobreviventes seja um oficial subalterno que esconde a sua cobardia com uma prática exagerada desses códigos.

9Assalto e intromissão / Breaking and Entering

O poder do perdão

A história podia ser mais ou menos linear: um esquema de fornecedores-assaltantes anda a atirar-se insistentemente ao património que vende a um atelier de arquitectura; os sócios do atelier tentam descobrir como é que andam a assaltá-los; depois de terem uma ponta da meada, mais à frente o peixe miúdo (só esse) é detido.
Mas a maneira como um desses sócios (Jude Law) trata do assunto é, no mínimo, original. Intromete-se na vida dum dos assaltantes. Amor com amor... é assim que a complexidade das relações entre as personagens aumenta drasticamente, em vários palcos de ilusionismo onde todos se enganam entre si. O realizador Anthony Minghella sublinha-o várias vezes através dos reflexos, em espelho ou nos vidros, dando ângulos que traem a mentira por detrás da máscara que se quer mostrar. Especialmente marcante é o diálogo marido-mulher, no quarto, ambos despindo-se das roupas mas indiferentes ao que vêem do outro, tão absorvidos que estão em passarem certa imagem de si mesmos. Provocador...
Uma menção especial sobre Juliette Binoche, excelente no papel duma refugiada bósnia, que não chega a perceber se de facto houve amor para além da intromissão (mútua) que teve com o arquitecto.
No fim, uma mentira bem pregada acaba por ser a linha torta com que acaba por escrever-se direito, mas no ar paira a dúvida sobre se alguma vez pode existir "apenas" amor entre as pessoas. Apesar de ser algo mal contada, a cena do perdão traz mais uma dimensão importante a esta fita. Perdão que, mesmo sendo verdadeiro não apaga os males da mentira, mas é um sinal de humanidade que vence barreiras que se supõem intransponíveis.
Situado na linha doutras criações inglesas notáveis, como Eyes Wide Shut e Closer (onde também esteve Jude Law), diria que este filme até consegue superá-los um pouco, porque prefere a subtileza ao aparato (fora as espectaculares demonstrações de free running), e porque junta esse elemento tão radical, que é o perdão.

10O bom pastor / The Good Shepherd

O guardador de segredos

A figura dum director operacional dos serviços secretos norte-americanos (ainda desde antes de serem a CIA), representado pelo sempre notável Matt Damon, é o centro deste filme. Centro duma teia que ajudou a construir, mas da qual também é prisioneiro. Para além da ilustração do sombrio e aterrador mundo da espionagem e contra-espionagem, é esta figura central que motiva a fita, longa, pausada, mas fascinante. Poderoso à sua maneira, temido e admirado pelos do seu lado como pelos inimigos, o protagonista sente, até nas vitórias, o desconforto de estar sempre a ser manipulado por todas as figuras que fazem parte da sua vida, sem excepção. Uma psicologia complexa que, em nome da sobrevivência e do dever, se refugia no silêncio.
Recheado de actores de nomes sonantes, em geral a um nível formidável, até abusa: nem Angelina Jolie, a fazer de amantíssima esposa, nem Robert de Niro, na figura do grande general, servem para papéis tão secundários. Em especial ela é uma escolha menos feliz do casting, independentemente da enorme competência como actriz, que não deixa de mostrar.

11Em busca da felicidade / The Pursuit of Happyness

A felicidade é um momento

A começar pelos rebuscados "postais" de São Francisco, que servem de fundo ao genérico de abertura, e a culminar no momento em que o protagonista sabe o resultado do seu esforço de vários meses (aquela expressão muda no olhar é indescritível), é um filme de muitas emoções, onde a realidade se mostra mais poderosa e significativa do que qualquer ficção que se pudesse imaginar. Não escamoteando o que é estar-se nos States sem dinheiro (mesmo quando se é credor de algum), um peso que o filme leva aos ombros ao longo da sua duração, de maneira cada vez mais opressiva, a principal motivação é mostrar que naquele país também há lugar para a esperança quando se joga pelas regras. O contraste entre o protagonista (admiravelmente representado por um Will Smith mais uma vez a anos-luz do "Fresh Prince") e os muitos, bem ou mal-vestidos, conhecidos ou desconhecidos, que sem propósitos de vida fazem do chamado sonho americano um palco de oportunismos rasteiros, é sublinhado por reflexões sobre os valores e princípios que são, inegavelmente, construtivos. Como a busca da felicidade.
Sendo o protagonista um negro num meio quase totalmente preenchido por "caucasianos", mas onde se diz que "qualquer um" pode ter sucesso, chega a parecer estranho que o tema racial nunca seja aparente, nem sequer nas praxes impostas pelo instrutor. Neste meio pelo menos, é muito mais importante uma camisa e gravata do que a pele que está por baixo.
Outro interesse desta história é que, acima de tudo, foi graças ao filho que o protagonista teve alento para vencer todas as improbabilidaes. E não nos escapa de certeza o olhar adulto com que a criança encara o dinheiro que o pai a certa altura consegue receber. Este filme é cheio de humanidade e boas mensagens.
Não pode passar em claro a recorrente displicência de quem anda a fazer as legendas em Portugal. Não é só neste filme, mas vale para citar um par de exemplos bem característicos deste triste fenómeno: porem Indiana quando se ouve Louisiana, ainda por cima quando é mencionado como estado vizinho do Texas, e traduzirem 250 para 2500. Devia pôr-se cobro a isto, ainda por cima sabendo como se perpetua nos DVDs que vão sendo editados.

12O mundo encantado de Beatrix Potter / Miss Potter

Uma grande ideia começa em geral por ser rejeitada

O destino único duma senhora que se chamava Beatrix Potter, a que René Zellweger, essa texana que se adapta tão bem a qualquer papel e faz furor em papéis de inglesa (verdadeiramente espantoso), empresta uma vivacidade também única. O filme é Renée, mas também são as animações, a darem um ambiente de magia que é encantador. O tema da peculiar veia criativa da artista, e a maneira como a grandeza da sua ideia conseguiu demonstrar-se através do sucesso dos livrinhos da sua autoria, apesar do desprezo que os "conhecedores" inicialmente lhe votavam (já não falando da atitude da família, mas isso seria de esperar em qualquer caso), é cativante, tal como é o papel que ela teve em preservar para os dias de hoje o Lake District, destino de férias de muitos ingleses. Há vidas que são muito bem vividas.
Não entendo porque é que nas legendas teimam em pôr Beatrix quando o que se ouve é Miss Potter.

13Hollywoodland

Entretenimento mediano

Muito (demasiado...) em paralelo a "Dália Negra", retrato da face subterrânea de Hollywood, onde a miragem do sucesso condiciona tudo, neste caso já depois da II Guerra Mundial. Um submundo que se remexe por detrás dos holofotes, onde não parece haver limites para a sordidez (neste filme, a maior de todas vem de uma mãe, veja-se bem). O facto de se basearem ambos em casos verídicos só serve para tornar esta "realidade" ainda mais nauseante.
Para além de entremear dois protagonistas que não se chegam a conhecer, um o actor que apareceu morto no seu quarto (Ben Affleck) e outro o detective que tenta provar que não foi suicídio (Adrien Brody), e pela curiosidade de vermos os primórdios de um novo modo de vida governado pela televisão, o principal interesse está no belo conjunto de actores, com destaque para Diane Lane (a souteneuse do dito actor), que como sempre tem tanto de encanto como de inteligência na arte de representar, e em especial para Adrien Brody — é uma delícia a riqueza de pormenores, sempre significativos, todos cheios de naturalidade, com que ele faz o seu papel. Quando se procuram comparações, vêm à ideia nada menos que um E. G. Robinson, um Marlon Brando, um James Stewart. Sem exagero.
Mais preciosidades da tradução: Sir Galahad foi o mais "careca" (boldest!) dos cavaleiros da Távola Redonda!

14O véu pintado / Painted Veil

Viagem interior

Bela história baseada num romance de Sommerset Maugham, projecto dos dois actores principais (Edward Norton e Naomi Watts), que protagonizam como casal tipicamente britânico, típico nas suas formalidades, infidelidades e incomunicabilidades. Situa-se algures nos anos 20 do século passado, naquela periclitante e efémera presença do Império que fez parte da "concessão internacional" em Xangai, passando depois para o interior rural da China, onde o marido (médico bacteriologista) pretende ajudar a debelar uma epidemia de cólera. E é aí que a viagem interior começa, e onde o amor finalmente surge. Lindo.
Beleza que é sublinhada pela maneira como é filmado, como se de uma pintura se tratasse, a que se associa o extraordinário desempenho dos actores principais, como sempre (menção também para Liev Schreiber no papel de sedutor), e a música, que até ganha honras de grafenola. Vale a pena.

15Dreamgirls

A Motown e a sua época

As vidas de vários artistas da Motown são compostas numa fábula que, com nomes mudados, retratam uma época de mudanças na música e na sociedade norte-americanas. Baseado no musical da Broadway homónimo, Diana Ross e as Supremes, Marvin Gaye, e sobretudo o estratega e dono da Motown, Berry Gordy, estão retratados duma certa maneira, conseguindo-se uma autenticidade que até poderia ser embaraçosa. A figura de Effie White, a gorducha que acaba por sair do grupo na altura em que fica grávida do patrão, é afinal uma mistura de Barbara Martin e Florence Ballard, suavizada aqui, exagerada acolá, uma deturpação inteligente que sublinha o carácter ficcional duma história que caracteriza o que se passava naqueles meios melhor do que se poderia imaginar. A figura interpretada por Eddie Murphy (bom talento para o canto, de resto), essa parece totalmente fictícia.
Admiravelmente filmado, com interpretações muito sólidas (Jamie Foxx continua a marcar pontos onde quer que entre), uma Beyoncé linda (às vezes o emagrecimento melhora), sofre muito por alongar-se demasiado, devia emancipar-se mais das suas origens de teatro musical.

16La vie en rose / La môme

Filme duma alma

Já outros filmes biográficos foram feitos sobre Edith Piaf, mas nenhum se preocupou tão especialmente em mostrar-nos o que ela era por dentro, no mais fundo da sua alma, precisamente a alma que punha a sair dum corpo tão franzino a voz mais emocionante que se podia imaginar. Este filme é uma dádiva maravilhosa por consegui-lo tão perfeitamente.
Grandes interpretações, em particular da actriz principal (Marion Cotillard), extremamente versátil.

17Ruptura / Fracture

Mentes preversas

Tanto para assassinar a mulher a sangue frio como para submeter-se a julgamento para ser ilibado desse crime, é preciso muito do calculismo dos mecanismos perfeitos. Mas às vezes há uma esfera que sai dos carris tão cuidadosamente montados. Continuando a usar metáforas, este filme é um jogo de xadrez em que julgamos estar à beira dum xeque-mate o tempo todo, e o jogo não pára de trazer lances inesperados. Está cheio de peões irrequietos... ou dito duma maneira mais real, há sempre falhas que podem ser exploradas por um adversário desesperado por não perder.
Para além das réplicas algo cínicas mas bem-humoradas (talvez mesmo, apesar delas), o entretenimento do espectador é completo com este argumento original e imaginativo. Os dois "jogadores", o criminoso (Hopkins) e o procurador (Gosling), são dum contraste dramático muito bem conseguido, à volta deles gravitando personagens patéticas ou meramente resignadas, como espectadores do que se vai passando no tabuleiro. E é pelos vários sacrifícios que acontecem, entre mortes físicas e a morte dum cliché empresarial, que a verdade finalmente vem ao de cima. Tudo isto está muito bem feito, é um prazer ver cinema assim.

18Zodiac

Obsessão devoradora

Longo demais para a real importância das diversas cenas, havia muito que uma boa tesoura poderia fazer para melhorar o resulttado. Bom nível nas cenas de acção, que são poucas de resto, e muito bom no aspecto psicológico. Mas, que dizer do resto? É um velhíssimo caso de polícia que não interessou a ninguém fora dos States, se calhar mesmo a ninguém fora da Califórnia. Basta comparar, por exemplo com Capote, mais velho ainda, mas muitíssimo mais interessante. Nem as boas interpretações chegam para salvar do aborrecimento. O tema é quase tudo.

19O labirinto do fauno / El labirinto del fauno

Um filme de salvação

O que é o mundo dos adultos diante da fantasia? A Guerra Civil de Espanha, com todas as suas crueldades, aqui vivida em prolongamento, em si mesmo cruel, quando ainda persistiam focos de resistência ao franquismo. Vidas ceifadas sem pestanejar, ódios, fome, privações, muito medo. Uma desumanidade que atingia todos, onde todos (adultos, recorde-se) participavam. Só por isso já seria uma fita interessante, se bem que indigesta.
Porém, há uma princesa dum reino de fantasia, exilada neste mundo de homens e mulheres. E o fauno como uma espécie de arcanjo enviado até ela, não esquecendo os pequenos anjinhos-colibri. O conto de fadas é tão bem contado, que o terror em que vivem os adultos parece irreal, tal como parece aos olhos das crianças.
E há o gesto salvador, o que permite o desenlace feliz. Dá gosto ver arte como esta. Mexicana, espanhola, de qualquer lugar. Arte!

20Ocean's 13

E ao 13º fizeram uma bodega

Se o transformarem uma remake numa sequel foi mesmo brilhante, agora que vemos a continuação vê-se que acabou o pavio da inspiração. Decepcionante! Superficial, inverosímil, previsível, e acima de tudo (apesar dumas cenas cómicas de vez em quando) chato.
Haveria um ponto a favor: mostrarem como a indústria do jogo faz batota. Mas nem isso cura o vício do jogo, claro.
Para esquecer.

21Teresa, o Corpo de Cristo / Teresa, el Cuerpo de Cristo

Uma obra-prima literária transposta em cinema

Biografia, não da figura histórica de Santa Teresa de Jesus mas da sua mística. Também, de como essa mística afrontava as conveniências mundanas, da luta que se travou nas consciências até que ela se afirmasse em definitivo. A narrativa pode parecer que culmina nesse ponto, com a fundação do primeiro convento feminino de carmelitas descalças; mas o percurso que nos é dado acompanhar não é o que leva à aceitação de Teresa pelo mundo, é o da alma de Teresa em direcção a Jesus Crucificado.
Se por um lado percebemos a relevância do seu estatuto social (nobreza), que lhe conferiu à partida uma educação e uma atitude independente, e lhe granjeou amizades protectoras, além de ajudar a torná-la aceitável para outros místicos de origem aristocrática como São Pedro de Alcântara, é o aprofundamento da Verdade, da única, interminável, sublime como difícil de seguir Verdade, o centro à volta do qual tudo gravita.
Esta biografia muito especial, muito caracteristicamente espanhola, é uma bela e convincente homenagem a essa mulher que atravessou o século XVI de maneira única, marcando o seu tempo mais pelo seu exemplo do que pelos seus tão celebrados escritos. Daí que só se refira de passagem a sua obra literária. Este filme encarrega-se de transmitir a experiência mística que a preenche.

22Viver ou morrer / Die Hard 4.0

Entretém mas podia ter sido mais interessante

Sequela decente, actualizada pelo protagonismo da informática e pelo envelhecimento do protagonista John McClane. Lá para o fim a retórica do filme de acção/destruição toma conta e esvazia o argumento, mas vale para a reflexão o que se vê sobre os hackers, os "ratos" das redes informáticas que se deliciam a ridicularizar a segurança das comunicações, nalguns casos tirando grandes benefícios "objectivos" dessa actividade. Tradicionalmente vistos como bandidos que se intrometem nos segredos alheios, também há quem saiba ver neles aliados providenciais no combate ao crime informático "de peso". Este filme mostra-o, e a contracenar com Bruce Willis está Justin Long, talentoso actor (a direcção de actores também é merecedora de encómios, toda a gente vai bem) no papel dum "ácaro" que tem a sorte de ficar sob a asa protectora do superdetective... e é claro, o ajuda dentro das suas competências.

23Bug

Díspar-arte

Não dá para ter uma só opinião sobre esta fita. É bastante irritante, para além de os vermos com comichões, o clima de crescente paranóia, mais própria dos anos 50 do que de agora. Mas a realização é muito cuidadosa, uma verdadeira obra de arte de Friedkin (e da montagem) que nos dá imagens duma beleza incrível. Ashley Judd é extremamente convincente na multiplicidade de personagens vividas pela sua personagem. Diria que vale a pena ver, apesar de tudo.

24À prova de morte / Death Proof

Mais um acontecimento Tarantino (dos melhores)

Cada filme de Tarantino é uma pequena revolução. Pequena porque propositada. E a prova de que tem algumas bem conseguidas no seu passado é a quantidade de imitações que vão aparecendo, nem sempre boas.
Nesta fita vemos grupos de mulheres "independentes", formando os seus círculos de amizade e soltando-se no mais explícito girlie-talk que já se viu em cinema. Comportamentos que não chegam a ocultar uma vontade de largarem isso tudo por um homem. A diferença neste retrato muito actual e extremamente bem feito, em relação aos velhos tempos, é que os homens agora precisam de valer mais do que sempre valeram. Elas sabem o suficiente para serem exigentes, o problema está na falta de escolha.
Mas Kurt Russell aparece em cena, na pele dum ex-duplo de cinema, vivido, bastante mais velho, mas que sabe usar os seus encantos. Fosse esse o perigo que ele representa... é que ele só se diverte quando demonstra que o seu carro é à prova de morte — à custa dos outros.
Outra revolução que este filme tenta fazer é no género de filmes a alta velocidade, não deixando de fazer referência ao clássico do género, The Vanishing Point. Isso acontece na segunda parte, em estradas secundárias muito estreitinhas, é espectacular e emocionante. Este soberbo cavalo de batalha é ao mesmo tempo uma homenagem aos duplos de cinema, até na pessoa de Zoe Bell, que fora a duplo de Uma Thurman em Kill Bill e teve de ser hospitalizada na vida real, na sequência duma lesão durante as filmagens. Tarantino convidou-a e ela mostra que está pronta para tudo.
Ao contrário do que é habitual, não há saltos no tempo, o argumento não é "demasiado imaginativo", há um equilíbrio que surpreende em Tarantino, o que, sem desprimor para as obras anteriores, é muito de louvar.
Não pode deixar de referir-se a lap dance da Butterfly (Vanessa Ferlito), simplesmente magnífica, e o grande momento de Kurt Russell, no alpendre, na cena logo antes. É para não perder.

25Os Simpsons: o filme / The Simpsons: The Movie

Simpsons = grande pagode

Pela primeira vez no formato longo (quem tiver paciência verá a promessa de sequela), os Simpsons cumprem a função de sempre, fazer rir quem se está a ver ao espelho. Diferenças principais da série TV, mas para pior: a necessidade de pôr o patriarca Homer numa missão heróica, e o excessivo protagonismo deste e da mulher — enfim, os Simpsons perdem nitidamente algumas virtudes de gozação pura. Hollywood e os seus códigos, que o diga Mr. Bean...
A minha cena favorita é a do Presidente dos States a dizer «a minha função é decidir, não é ler». E o mau da fita aprende depressa a manipular a decisão que se segue, claro...
Excelente trabalho de dobragem, levado ao requinte de imitar as vozes do original.

26Lady Chatterley / Lady Chatterley

Sexo carnal convertido em sexo espiritual

Escrito por um espírito livre (D. H. Lawrence), o romance em que se baseia esta fita oferece-nos duas personagens inesquecíveis, dois solitários cujo encontro num lugar onde só a Natureza era testemunha lhes revela a possibilidade de serem livres para se amarem. Momentos-chave desta evolução são o do primeiro beijo apaixonado e o da revelação mútua dos corpos nus. Quem tem a felicidade de poder amar como se descreve para estas personagens consegue uma espécie de paz interior, que nada consegue destruir.
O romance original conheceu três versões, e o filme baseia-se na segunda (John Thomas and Lady Jane), que brilha pelo equilíbrio entre temas caros a Lawrence, como a ligação da humanidade com a natureza, e a celebração que é o acto sexual.
A escolha dos dois actores principais — Marina Hands, bela, delicada e inteligente, Jean-Louis Collouc'h, maciço, telúrico e sensível — é só por si uma vitória. Mas a articulação das cenas e o ritmo da narrativa, que fluem sem sobressaltos, e o contraste com o mundo de mentiras, artifícios e maldades onde habitam todos os outros humanos, são excelentes também. De passagem, não deixa de notar-se a relação de intimidade que se vai construindo entre o marido da protagonista e a enfermeira (dois actores primorosos, Hyppolite Girardot e Hélène Alexandridis). Ele aceita que ela a barbeie, tem-na como secretária...
A única nota dissonante é a língua francesa. Custa bastante a imaginar que a acção se passa exclusivamente entre ingleses, e quase sempre na Inglaterra. Mas isso não passa dum detalhe, o filme é uma obra-prima. Aliás, uma produção britânica talvez não tivesse a mesma "verdade", com os tiques dos actores e, claro está, a perene repulsa de tudo o que é D. H. Lawrence.

27Golpe quase perfeito / The Hoax

Falsificação romanceada

Quiseram fazer o filme da génese do famoso livro-fantasma, a 'Autobiografia de Howard Hughes'. Clifford Irving, o principal autor desta falsificação, terá na altura (1971-2) alinhado na ideia de com este livro "incomodar" o presidente Nixon, levando indirectamente ao escândalo Watergate. Trata-se assim dum momento da História norte-americana com muito significado, e como o Irving da vida real era vivo e gostava que hoje se fizesse coisa semelhante ao actual presidente, nada mais natural do que ser contratado como "consultor técnico". Ao que parece não para o consultarem, pois segundo ele o filme quando não inventa distorce, é uma falsificação. Ironias? O que se fica a perceber é que a verdade pouco interessa. Só se conta com aldrabices.
Mas o filme em si, o seu lado artístico, não está mal. Uma realização sóbria, um Richard Gere intenso, elenco e encenação impecáveis. E, mesmo sendo um argumento de ficção, dá-nos uma perpectiva curiosa da época e suas personagens, a meio caminho entre a II Guerra e a modernidade que conhecemos, e em concreto a do dealbar duma crise institucional na presidência dos States que se prolongou por toda a década de 70. Esta ficção inspirada na realidade, ao menos, é melhor que muitas ficções made in Hollywood que por aí passam. Não sei se a verdade segundo Irving daria um filme melhor.

28Nem contigo nem sem ti / I Could Never Love You

Filme simpático

Michelle Pfeiffer, 49 anos, faz o papel duma mulher de 40 (pelo menos a actualização das idades parou por aí) a passar pelos mesmos transes de adolescente apaixonada, como se fosse a primeira vez, enquanto a filhota acaba de ter o período pela primeira vez e também se apaixonou pela primeira vez. Elas, que ainda há pouco se entretinham uma com a outra a brincar com bonecas... Paralelo engraçado, um filme muito dirigido ao público feminino, cujo genérico é uma parada de horrores directamente das clínicas de operações plásticas. Um pouco mais interessante é conhecermos o actor principal, Paul Rudd, muito hábil e versátil. Noutro patamar, Saoirse Ronan brilha a fazer de filhota. Mas globalmente é um mero passatempo de improvável memória.

29Alpha Dog

Antes premir um gatilho que fazer sexo oral ao chefe

O acontecimento em si impressiona: um sequestro que parece ter a conivência do sequestrado e decorre à vista de toda a gente, caso verídico que só podia acontecer quando a oportunidade se misturou com a estupidez e tudo foi oleado por ilusões sobre o brilho no mundo do crime. Filmado milimetricamente por Nick Cassavettes, centra-se em dois irmãos, um miúdo de quinze anos que se cansou de ser bem comportado e foge de casa, e o seu irmão mais velho, drogado, violento, e com uma crónica incapacidade para vingar nos negócios da droga. Por causa dos problemas deste o primeiro é raptado, mas por raptores amadorecos que não sabem o que fazer e, com medo de serem castigados, fazem precisamente aquilo que lhes vai trazer um castigo ainda maior.
Filme do absurdo de quem vive na superabundância do estado mais rico do país mais rico, filme de mitos que envenenam as consciências de jovens perante a passividade de pais sem preparação, eles próprios mortinhos por praticarem as suas próprias versões de prevaricação. Por ser verídico, não é lá muito agradável o que o enredo vai desfiando, mas por ser verídico é importante tomar a sério.

30Os fantasmas de Goya / Goya's Ghost

Entre um mundo e o outro

Começa a fita com o antigo regime em Madrid, que como todos os regimes semelhantes tremia só de pensar na Revolução Francesa. Monarquia absoluta e inquisição. Retoma à frente durante a ocupação napoleónica, com os protagonistas de antes em fuga, ou presos, ou vira-casacas. Dum mundo para o outro mediam uns 15, 20 anos, e os efeitos sobre as personagens são impressionantes. Excepto uma, um artista, o pintor Goya, que não muda. Como não mudam as personagens simbólicas do terror, da maldade e da mentira.
Pergunto a mim próprio o que se pretende dizer com o título (que no original vem no singular). Fantasmas? Àparte uma alusão à personagem de Javier Bardem, que é um homem bem vivo, não um fantasma, teremos de encontrá-los na observação que Goya fazia da humanidade à sua volta. E como tão bem mostra a sequência das suas obras, que quem ficar para ver durante os títulos finais admirará, a sua visão, quando não era o pincel polidinho de encomenda, adoptava o traço implacável duma realidade que só se podia entrever, e onde não havia lugar para a paz. Os fantasmas de Goya são aqueles que ele representou da observação da humanidade. O artista testemunhou toda a vileza, numa época e noutra, nas suas gravuras e pinturas, mas ele próprio pairava acima disso tudo, era intocável.
Milos Forman fez um retrato fascinante destas duas épocas e deste artista, um retrato livre mas acutilante. E é uma denúncia do terror da inquisição e das tropas de Bonaparte. As personagens centrais são as interpretadas por Javier Bardem, um padre ambicioso cujo zelo em pôr a inquisição a funcionar esconde uma alma danada, e por Natalie Portman, uma adolescente vítima desse zelo, protagonistas de sofrimentos impressionantes e que se vêem ironicamente unidos, até que a morte os separe. O essencial é aquilo que às vezes nos lembramos de chamar destino, merecido ou não, uma espécie de acaso no meio do turbilhão da sociedade. Só Goya, a quem Stellan Skarsgard empresta muito mais do que uma semelhança fisionómica, paira acima de tudo isso.

31A face oculta de Mr. Brooks / Mr. Brooks

Obra-prima para um tema muito difícil

Kevin Costner andou à procura dum papel destes uma boa década. Coadjuvado por um espectral William Hurt, encarna a complexa personagem dum homem que mata por vício. Não por necessidade, prazer, profissão ou ideal: mas pela mesma compulsão que leva incontáveis a puxar do cigarro, ir às 'slots', beber mais outro. Sempre a invocar Deus, sempre a lutar contra o vício, vai às reuniões de alcoólicos anónimos, com toda a humildade, só não diz a ninguém que vício é. Só a personagem de Hurt, o verdadeiro eu de Kostner, sabe.
Que ideia fantástica a deste filme, tão habilmente trabalhada que entre fascínio e surpresa nos mantém subjugados: as subtilezas nas expressões faciais (uma anatomia da mentira), o virtuosismo da iluminação, os constrastes com as outras personagens, nomeadamente a obstinada polícia (Demi Moore) e o 'voyeur' (Dane Cook), é tudo artisticamente perfeito. É claro que há 'clichés', como o exagero dos efeitos sonoros nalgumas cenas ou o anúncio duma reviravolta pelo abrir dos olhos de Kostner. Mas não deslustram.
Magnífico — bastaria citar o arrepio que se sente a ver Kostner e Hurt a gargalharem em uníssono. Brrr...

32Ratatui / Ratatouille

Maravilha a cliques de rato

Na Pixar gosta-se de boa comida, cultiva-se o riso saudável, há imensa fantasia e a técnica é mais-que-perfeita. O riso, o encanto, a proeza da naturalidade, são o que esta fita oferece ao melhor nível. Mas gostei especialmente de terem sugerido que o melhor da vida está na simplicidade, criativa é certo, mas acima de tudo simples. Afinal o destino é um bistro, e o momento culminante, uma viagem imprevista lançada pela primeira garfada de Ratatouille. Pura magia.
P.S. -- Para quem isso faça alguma diferença: na versão original dá para ouvir uma estupenda voz, a de Peter O'Toole. Um clássico ao serviço da personagem do classicismo. Nada mais justo.

33Ultimato / The Bourne Ultimatum

Vivam os duplos

Nem melhora nem piora dos anteriores Jason Bourne. A muito longa lista de duplos no genérico final mostra a ênfase posta pelos autores da fita. Faz-se de muita acção, violenta claro está, um enredo bocejante, e a sempre grande qualidade dos actores Matt Damon, Julia Stiles, David Strathairn e, vá lá, Joan Allen. Quem gosta de boas cenas de pancada ou de perseguições alucinantes (mesmo que inverosímeis) vai ficar feliz. Quem vai ao cinema para tentar ver algo que não seja banal tem de contentar-se com os actores para não lhe começar a dar formigueiro nas pernas.

34A juventude de Jane / Becoming Jane

Belo filme, mas onde é que eu já vi isto?

O título original diz tudo: este filme ajuda a compreender como Jane Austen se tornou uma autora literária excepcional. Uma ficção baseada no que terá sido uma paixão platónica pelo Sr. Lefroy, e na teoria geralmente aceite que o famosíssimo romance 'Orgulho e Preconceito' é autobiográfico dessa paixão, mostra a quem quiser ver como uma grande criação artística tem de ter por trás uma vida emocional extremamente rica.
O que é real nesta ficção tanto faz, a fita está admiravelmente construída, representada, filmada, Anne Hathaway empresta uma graciosidade, uma beleza, uma inteligência, numa palavra, a luz formidável que sai desta Jane reconstituída; o resto do elenco e os lugares, paisagens e interiores transportam-nos sem esforço àquele final do século XVIII, com os seus usos e dramas, e os ventos do romantismo a desafiarem as convenções burguesas.
Fatalmente, podia dizer-se que é uma versão contorcida de Pride and Prejudice, mas a ideia de mostrar a artista e a sua transformação interior é estupenda e está magnificamente servida.

35Estás Cada Vez Mais Frito, Meu! / Are We Done Yet?

Humor de plástico, como a comida

É difícil falar de coisas como esta. É um esforço mais ou menos honesto de fazer humor à medida do público norte-americano, até se dá ao luxo de misturar valores como lealdade e sinceridade de sentimentos. Mas se estão à espera que os públicos europeus alinhem da mesma maneira neste "espírito", esperem sentados. Ainda não chegámos a tanto.

36Espírito indomável / Rescue Dawn

O desconforto do testemunho real

Usando só os melhores exemplos: Cimino, Coppola, Stone, Kubrick e Spielberg deram-nos guerra-espectáculo, Mallick e Eastwood evoluiram para a guerra-filosofia, mas é com Ridley Scott e agora com este Herzog que nos aparece a guerra repulsiva, deprimente, suja, sem heroísmos. Obviamente, um espectáculo que requer estômago. Mesmo que se queira dar a volta através do final feliz, sem dúvida que o que prevalece é este contacto bem palpável com a miséria de viver como um bicho, sujeito a ser caçado a qualquer momento. Pena é que o filme se concentre tanto nisso, arrisca-se por vezes a ser visto como um documentário algo lento e maçador.
Christian Bale oferece-nos mais outro dos seus exercícios de emagrecimento forçado, e uma representação sóbria, contida até, bastante apropriada à personagem. Herzog dá-nos uma selva bem real, uma prisão onde apenas nos poupa do mau cheiro dos corpos e do resto. Mas é Steve Zahn, o continuamente acossado companheiro de Bale, quem mais impressiona. Ele meteu-se numa personagem trágica e desprezível com tal intensidade, que só de olhar para ele emociona.

37Um Azar do Caraças / Knocked Up

Um grande argumento

Personagens realistas, interessantes e bem exploradas, uma história (mesmo que algo comprida) sempre rica de ideias, os diálogos muito cómicos, um verdadeiro festival deste argumentista-realizador, Judd Apatow. Se o cartaz dá a entender que vamos ver uma comédia desinteressante, a surpresa pela positiva acaba por não se fazer esperar. Juntar uma "brasa" como Catherine Heigl com um "troglodita" como Seth Rogen é à primeira vista inverosímil, mas o pôr-se as duas personagens a amarem-se tão naturalmente lembra-nos como a verdade está quase sempre para lá das aparências, e que a mistura de álcool com hormonas pode dar uma clarividência que a razão nunca pode ter e convém até que não tenha.
Realização muito competente, tónicas de ternura com a conta e oportunidade certos, mas também um sentido de humor às vezes "esquisito".

38 Corrupção

Não é da treta, mas o assunto também não dá para muito melhor

Um filme nascido dum contexto tão específico, com motivações tão precisas e efémeras, tem de ser para consumo rápido. Só dará para comprar ou (melhor) alugar o DVD se se quiser compreender os diálogos que a maldita "sonoplastia" (somos um país de técnicos surdos) amassa, mesmo assim com a ajuda de legendas...
Mérito? Arte das imagens muito capaz, ritmo da narrativa vivo, Margarida Vila-Nova (que para bem dela e de todos já recuperou algum peso entretanto) a compor muito bem a sua Sofia, ganhando uma interessante solidariedade das espectadoras para com a protagonista.
Embora se conte com a cumplicidade da memória do espectador, há coisas que são demasiado abreviadas, e podia talvez ter-se usado uma liberdade de argumento mais artística, se bem que à inacreditada argumentista talvez não se possa pedir melhor. Nicolau é Nicolau, sem tirar nem pôr, mal se percebe o presidente dentro de Nicolau: actores mais versáteis como Herman ou Virgílio teriam sido melhor escolha.
Tudo somado, passa-se bem.

39Gangster americano / American Gangster

Dois filmes em um

Admirável realização, com os percursos separados do gangster (Washington) e do investigador (Crowe) repartidos com uma fluidez extraordinária. São dois filmes a andarem em paralelo, com a mestria de Ridley Scott a equilibrar todos os tipos de situações às mil maravilhas. Depois,o anti-clímax, que é quando os dois se encontram. Dois filmes que não se misturam. Àparte isso, uma vivência de cinema estupenda.

40Peões em jogo / Lions for Lambs

Uma reflexão

Dois diálogos, profundos, exigentes, sobre o que é o empenhamento político, entre pessoas que gostariam de fazer a diferença, desenrolam-se em simultâneo. Um passa-se em Washington, entre um senador responsável pela Defesa (Cruise) e a jornalista que em tempos lhe cantou loas (Streep), outro na Califórnia, entre um professor de Ciência Política (Redford) e um dos seus alunos (Garfield). Diálogos que nos levam a reflectir, enquanto, também nesse momento, decorre uma missão no Afeganistão, protagonizada por dois ex-estudantes do dito professor (Peña e Luke).
Acumulando funções como realizador, Redford segue na linha dos poucos mas muito bons filmes que tem feito, e ao mais alto nível: apesar de ser quase tudo conversa, o ritmo é vivo, quase nunca teatral, os diferentes espaços são admiravelmente explorados, a direcção de actores é uma maravilha, eles vestem os seus papéis com uma autenticidade sem falhas. É claro que o argumento do co-produtor Carnahan é o rei, mas o tratamento que lhe é dado, um pouco ao estilo de "Babel", consegue talvez mais em termos de mensagem do que o filme de Iñárritu, e com uma economia de meios notável.
Então, e quanto ao empenhamento político? Depois da conversa, a televisão já não é vista da mesma maneira, mas também se vê que o senador segue em frente apesar de já saber que se continua a fracassar por causa dos mesmos erros (tudo gira à volta do cano duma metralhadora), e que a jornalista se verga perante a evidência de ser apenas uma publicitária.
O jovem aluno é a grande incógnita, enquanto os outros todos já estão comprometidos com alguma coisa. Entretanto, a História não avança. A futilidade das mortes num canto perdido do Afeganistão, onde se pensava poder fazer a diferença. Os dois protagonistas dessas cenas até que o fizeram, mas na universidade que deixaram para trás.
Para reflectir, de muitas maneiras.

41A bússola dourada / The Golden Compass

Híbrido ligeirinho

Talvez dê para descrever como um cruzamento do Senhor dos Anéis com Harry Potter: uma proeza de produção como o primeiro, fantasias em estilo Brit como o segundo. O final abrupto anuncia uma saga com um ou mais episódios já a seguir, e manda-nos embora sem cerimónias — o que deixa um travo estranho. Vale a pena ver Nicole Kidman num papel de "má", assim como as animações (os "demónios", muito bem conseguidos). Aliás, as metáforas associadas aos "demónios" são o melhor lado do argumento.

42Promessas perigosas / Eastern Promises

Mais uma Máfia, mas defende-se muito bem (o filme e não só)

«Eu sou apenas o motorista», diz Viggo hipocritamente uma série de vezes. Motorista para todo o serviço, entre limpezas, transportes, confidências e até para deitar fora. Bem-vindos a esta gostosa representação da máfia russa: russa nas suas idiossincrasias, máfia como todas as máfias são. Tanto quanto me é dado apreciar, uma representação muito convincente, banhada na luz escura dos interiores e da noite londrina.
Cronenberg mantém-se fiel ao seu estilo, com corpos a serem dilacerados, violência física e psicológica, e claro, as tatuagens (ver genéricos finais, que vale a pena). Viggo Mortensen ultrapassa-se a si mesmo (Óscar?), Vincent Cassel também (Óscar?), e todo o restante elenco, com Naomi Watts e Armin Mueller-Stahl (o "padrinho") obviamente em destaque, é do melhor nível. Não sendo uma obra-prima, anda lá perto, e só à conta da cena na sauna merece um lugar em imensas antologias.

Nazaré

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